(Des)Institucionalização: Teorias e Práticas dos Profissionais da RAPS

(Des)Institutionalization: Theories and Practices of RAPS Professionals

(Des)Institucionalización: Teorías y Prácticas de los Profesionales del RAPS

Stefhane Santana da Silva1
Jonatha Rospide Nunes

Fundação Escola de Saúde Pública (FESP)

Resumo

Introdução: A Reforma Psiquiátrica é um processo político e social complexo, sendo uma combinação de múltiplos fatores, instituições e forças de diferentes origens, incidindo em territórios diversos. Diante disso, este trabalho buscou identificar no discurso dos trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Palmas, Tocantins (TO), a relação entre as concepções teóricas do campo da saúde mental, as práticas cotidianas no serviço e a promoção da desinstitucionalização no cuidado em saúde mental. Método: A pesquisa foi efetivada nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II) e Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas III (CAPS AD III), por meio de entrevista semiestruturada, realizada com dez profissionais, e para análise das respostas empregou-se o método da análise do discurso. Resultados: foram divididos em quatro categorias, perpassando pela compreensão acerca da reforma psiquiátrica, desinstitucionalização e teoria e prática utilizadas pelos profissionais. Discussão: A pesquisa apresenta respostas díspares em relação à compreensão e definição conceitual, especialmente do processo de desinstitucionalização. Conclusão: A Reforma Psiquiátrica está em curso no Brasil, necessitando avançar gradualmente, apesar das adversidades.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica, desinstitucionalização, saúde mental, atenção psicossocial

Abstract

Introduction: The Psychiatric Reform is a complex political and social process, being a combination of multiple factors, institutions and forces from different origins, affecting different territories. Thus, this work sought to identify the discourse of the Psychosocial Care Centers (CAPS) of Palmas, Tocantins (TO), an approach between the conceptions of the field of mental health, the daily practices and the promotion of the deinstitutionalization of mental health care. Method: The research was carried out in the Psychosocial Care Center (CAPS II) and Psychosocial Care Center Alcohol and other Drugs III (CAPS AD III), through a semistructured interview with ten professionals and for the analysis of the answers, the discourse analysis method was used. Results: were divided into four categories, going through the understanding about psychiatric reform, deinstitutionalization, and theory and practice used by professionals Discussion: The research presents disparate answers regarding the understanding and conceptual definition, especially, the process of deinstitutionalization. Conclusion: The Psychiatric Reform is underway in Brazil and gradual progression is necessary, despite adversities.

Keywords: psychiatric reform, deinstitutionalization, mental health, psychosocial care

Resumen

Introducción: La reforma psiquiátrica es un proceso político y social complejo, siendo una combinación de múltiples factores, instituciones y fuerzas de diferentes orígenes, centrándose en diversos territorios. Así, este trabajo buscó identificar en el discurso de los trabajadores de los Centros de Atención Psicosocial (CAPS) de Palmas, Tocantins (TO), la relación entre las concepciones teóricas en el campo de la salud mental, prácticas diarias en el servicio y la promoción de la desinstitucionalización en la atención de la salud mental. Método: La investigación se realizó en Centro de Atención Psicosocial II (CAPS II) y Centro de Atención Psicosocial alcohol y otras drogas (CAPSAD III), a través de una entrevista semiestructurada, realizada con diez profesionales, y para el análisis de las respuestas se utilizó el método de análisis del discurso. Resultados: se dividieron en cuatro categorías, pasando por la comprensión sobre la reforma psiquiátrica, la desinstitucionalización y la teoría y la práctica utilizada por los profesionales. Discusión: La investigación presenta diferentes respuestas en relación con la comprensión y la definición conceptual, especialmente del proceso de desinstitucionalización. Conclusión: La reforma psiquiátrica está en marcha en Brasil, necesitando progresar gradualmente, a pesar de las adversidades.

Palabras clave: reforma psiquiátrica, desinstitucionalización, salud mental, atención psicosocial

Introdução

Após 20 anos de ditadura militar (1964-1985), o País iniciou um movimento de redemocratização dos espaços de decisão política, de ascensão dos movimentos sociais vinculados à luta da classe trabalhadora e ao ressurgimento da luta dos profissionais da saúde e usuários por um Sistema Único de Saúde universal, gratuito, igualitário e de qualidade (Melo, 2011). Tal movimento tem possibilitado diversas mudanças quanto à construção de novo modelo de sociedade, suscitando novas práticas de atenção à saúde, uma vez que, até a década de 1980, no Brasil, baseavam-se em práticas curativistas, individuais e fragmentadas dos sujeitos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2013). Como resultado, a assistência em saúde mental fundamentava-se na hospitalização e em intervenções psiquiátricas clássicas, sustentando-se nos moldes asilar e hospitalocêntrico (CFP, 2013). Nesse contexto, as práticas em saúde mental coletiva se inscrevem como transição paradigmática da psiquiatria, sustentando um conjunto de ações teórico-práticas, político-ideológicas e éticas, visando à substituição do modelo asilar, designando assim o conceito psicossocial (Costa-Rosa, Luzio, & Yassui, 2003). Tal posicionamento propõe que, em vez de manter o foco na doença, é preciso compreender os aspectos psíquicos e também socioculturais nos quais os sujeitos estão inseridos, promovendo a ruptura com o paradigma “doença-cura” e substituindo por “existência-sofrimento” (Costa-Rosa et al., 2003).

Compreende-se que, dentro do campo da saúde mental, o aumento quantitativo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), implantados em todo o País, é um avanço importante da Reforma Psiquiátrica (RP), porém não é sinônimo de mudança paradigmática (Silva & Rosa, 2014). É necessário que se leve em consideração a complexidade desse processo que está para além do gradual fechamento dos hospitais psiquiátricos, ou seja, da destruição das estruturas físicas manicomiais, especialmente por se tratar ainda de uma cultura manicomial, (Pelbart, 1990). Mesquita, Novelino e Cavalcante (2010) corroboram com a ideia de que a RP deve ser percebida como um processo político e social complexo, tendo em vista que se trata de uma combinação de múltiplos fatores e instituições incidindo em territórios diversos. Este processo se caracterizou como uma militância, tanto em termos da politização da questão da loucura e de crítica às instituições psiquiátricas quanto da transformação social, num sentido mais amplo (Yasui, 2010).

De acordo com Yasui (2010), na sua dimensão política, a RP brasileira surge no interior da reforma sanitária e dos movimentos sociais ligados à luta contra a ditadura. Portanto, a complexidade do processo da RP abrange quatro dimensões: teórico-conceitual; técnico-assistencial; jurídico-política; e sociocultural (Amarante, 2007). Tais dimensões permeiam o campo das ações de cuidado, as produções teóricas, incluindo os marcos lógicos e legais que conformam a política de saúde mental e também as construções sociais em torno do fenômeno da loucura, demonstrando a necessidade da desconstrução de estigmas presentes no imaginário social. Diante disso, existe um grande esforço em não reduzir a RP à desospitalização, considerando também a atenção à saúde em equipe multiprofissional, integralidade, responsabilidade da equipe vinculada a um território, intersetorialidade e articulação em rede, do nível primário ao especializado (Vecchia & Martins, 2009).

Diante de tal cenário, torna-se evidente a importância da RP para o avanço e o fortalecimento das políticas em saúde, visando à conquista de direitos, considerando, para tal, as potencialidades que as lutas sociais têm para a transformação da realidade. Desse modo, a realização do estudo mostra-se relevante, pois possibilita a ampliação da discussão sobre a desinstitucionalização, fomentando novas reflexões acerca do lugar ocupado pela RP diante das ações assistenciais ofertadas e da própria construção da política de saúde mental, evidenciando ainda as transformações advindas do processo de reforma e os possíveis desafios diante da conjuntura política do País, contextualizados a partir das vivências dos profissionais envolvidos. A pesquisa aqui apresentada aborda a relação entre o aporte teórico em saúde mental dos profissionais e as ações que são realizadas com base nestas teorias, especialmente quanto à promoção da desinstitucionalização. Na medida em que não existe teoria sem uma prática que a legitime, não existe prática sem teoria que a embase. Com isso, torna-se importante identificar as concepções de saúde mental que permeiam os discursos dos profissionais desta área, bem como sua relação com a prática cotidiana na produção de cuidado.

Método

Esta pesquisa foi realizada após aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em campo multicêntrico, sendo no Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II) e no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas III (CAPS AD III), ambos localizados na cidade de Palmas, Tocantins (TO). Constitui-se um estudo com abordagem qualitativa dos dados, que, segundo Godoy (1995), se preocupa principalmente com o estudo do fenômeno em seu espaço natural, valorizando o contato direto do pesquisador com o ambiente e com a situação que está sendo investigada.

Trata-se de pesquisa aplicada, de cunho exploratório, na qual se utiliza o estudo de campo para a coleta de dados, englobando uma amostra de dez participantes, sendo oito do sexo feminino e dois do sexo masculino. Os principais critérios de inclusão foram a formação profissional em nível superior e o desenvolvimento da função de Técnico de Referência, definido como aquele que realiza o monitoramento do usuário, do projeto terapêutico individual, o contato com a família e a avaliação das metas traçadas no projeto (Brasil, 2004). Os principais critérios de exclusão referem-se ao profissional que tem apenas ensino médio ou técnico e desenvolve somente atividades administrativas ou de serviços gerais, e, com isso, as entrevistas alcançaram categorias profissionais, como enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.

Para a coleta dos dados que compõem o presente estudo, foi utilizado o recurso da entrevista semiestruturada, na qual o roteiro foi construído pelos autores da pesquisa, sendo este dividido em quatro eixos, de acordo com as quatro dimensões da RP apresentadas anteriormente e contendo 11 questões abertas e/ou descritivas. O roteiro com as perguntas foi organizado da seguinte forma: Eixo I-Teórico-Conceitual: 1) Qual a sua compreensão acerca do processo da Reforma Psiquiátrica? 2) Como você define o processo de desinstitucionalização? 3) Qual a relação entre esses conceitos e a sua prática na promoção da desinstitucionalização? Eixo II-Técnico-assistencial: 4) Quais as principais diretrizes que você/serviço tem como base para ofertar o atendimento aos usuários? 5) Quais os desafios para o avanço da Reforma Psiquiátrica? 6) Como as suas práticas se relacionam com o avanço da Reforma? Eixo III-Jurídico-política: 7) Qual a sua percepção acerca das políticas públicas/legislação referentes aos usuários com demanda em saúde mental? 8) Quais são as principais modificações na política de saúde mental após a aprovação da Lei n. 10.216 em 2001? Eixo IV-Sociocultural: 9) Qual lugar as pessoas com transtorno mental ocupam na sociedade? 10) Qual a relação entre a Reforma Psiquiátrica e a desconstrução dos estigmas que envolvem as pessoas com transtorno mental? 11) Quais atividades você enquanto profissional do campo da saúde mental tem desenvolvido nesse sentido?

A análise dos resultados baseia-se no método da análise de discurso, que contextualiza a fala, buscando compreender a forma como as pessoas agem e pensam, englobando a história, o contexto e a posição social (Gondim & Fisher, 2009).

A coleta dos dados ocorre em consonância com os critérios da Lei n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos, e após aprovação pelo Comitê de Ética, constando em parecer n. 27-06/2017. Todas as respostas foram gravadas por meio de um aparelho telefônico, via gravador de voz, e, posteriormente, transcritas em sua íntegra. Em seguida, deu-se a análise dos dados, a partir da articulação entre o que foi coletado e os aspectos teóricos atrelados ao processo da Reforma Psiquiátrica em suas quatro dimensões, apoiando-se no método da análise de discurso, que se utiliza da fala dos sujeitos para a compreensão de suas ações e pensamentos. Para Indursky e Ferreira (1999), o discurso é o objeto teórico da análise do discurso (AD), que considera o funcionamento linguístico (ordem interna) e as condições de produção em que se realiza (ordem externa), caracterizando sua singularidade que é tanto histórica quanto linguística.

Resultados

A partir do processo analítico dos dados, foi possível desenvolver quatro categorias, sendo elas: compreensão acerca da reforma psiquiátrica; conceito de desinstitucionalização; embasamento teórico; práticas cotidianas. E ainda se criou uma subcategoria: desconhecimento acerca da legislação em saúde mental. Além desta divisão, cada participante da pesquisa foi caracterizado com um nome fictício para preservar a sua identidade, seguido do ano em que a entrevista foi realizada.

A primeira categoria corresponde aos significados e às atribuições relacionados à compreensão dos profissionais acerca do processo da RP, a saber: direito à liberdade; tratamento digno e vínculos familiares e sociais, localizando a inserção da RP na política de saúde. A segunda categoria refere-se à conceituação de desinstitucionalização, englobando atividades externas ao CAPS, acesso a outros dispositivos e ressignificações subjetivas. A terceira relaciona-se com o embasamento teórico utilizado pelos profissionais como norteador de suas práticas, sendo citada de forma recorrente a Lei n. 10.216/01 (Brasil, 2001) e a Portaria n. 130 (Brasil, 2012). Logo em seguida, está a subcategoria referente ao desconhecimento acerca da legislação em saúde mental, apresentando-se como um ponto divergente da própria categoria, porém permanecendo de forma entrelaçada, sendo necessária uma análise ampla e contextualizada para a compreensão de tal fenômeno. A quarta categoria corresponde às práticas cotidianas dos profissionais nos serviços, como a realização de grupos, oficinas, escuta qualificada, atendimentos individuais e matriciamentos.

Discussão

Compreensão acerca da reforma psiquiátrica

Esta categoria apresenta uma grande variação de respostas, sendo possível perceber a compreensão dos profissionais do serviço acerca da reforma psiquiátrica. Respostas recorrentes ligadas à garantia de direito a um tratamento de saúde digno; direito à liberdade e também à inserção familiar e social.

Tais respostas trazem consigo um âmbito revolucionário diante da conjuntura política do País à época e representam, ainda, grandes mudanças no que se refere tanto à desconstrução dos estigmas das pessoas com transtorno mental quanto ao próprio serviço, uma vez que foram criados dispositivos substitutivos aos hospitais psiquiátricos, como é o caso dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (Brasil, 2001). O trecho a seguir ilustra esta questão:

A reforma psiquiátrica foi um movimento de redemocratização tanto do país quanto da saúde mental, né? Da mudança dos asilos, dos manicômios para os equipamentos substitutivos, que hoje nós temos os centros de atenção psicossocial, então saímos da prática da exclusão. (Ramires, 2017).

Segundo Lancetti (1990), a principal fonte inspiradora da experiência brasileira de RP foi a desinstitucionalização italiana que propunha não apenas trocar o local de tratamento das pessoas com transtornos mentais, mas transformar o modelo de compreensão acerca da problemática da loucura, cuidar, pensar e lidar com ela.

Diante do exposto até aqui, retornamos para a discussão acerca das quatro dimensões presentes no processo da RP citadas anteriormente por Amarante (2007), relacionando-as com as respostas dos participantes, a saber: teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. A primeira dimensão diz respeito à construção de um novo paradigma no campo das ciências sociais, no que se refere ao olhar direcionado ao sujeito em sofrimento psíquico, rompendo com o modelo biomédico, visando construir um novo norte que compreenda a saúde como um processo (saúde-doença), fruto das condições de vida e do lugar ocupado por cada sujeito social (Amarante, 2007). Dois conceitos têm sido fundamentais para a compreensão dessa dimensão: o primeiro diz respeito à desinstitucionalização, pautada na tradição basagliana, que defende formas diferenciadas de acolher, cuidar e tratar do sujeito; e o segundo relaciona-se com o conceito de doença mental, assim como as práticas profissionais, as relações entre os sujeitos e atores envolvidos, em que se transformam os serviços e os sujeitos durante este processo (Melo, 2012). O conteúdo dessa dimensão foi mencionado por quatro entrevistados, podendo ser observado no trecho a seguir:

Foi algo muito importante que aconteceu, revolucionário, que mudou a forma de tratamento... Porque eu acho que hoje eles têm voz, a família também tem acesso, e não só ao tratamento nos serviços completos, eles podem questionar e podem gostar ou não. (Carla, 2017).

Na dimensão técnico-assistencial, presente no discurso de dois profissionais, concentra-se a construção de serviços substitutivos ao manicômio, uma vez que, tradicionalmente, o modelo de tratamento em saúde mental esteve pautado no isolamento, na tutela, vigilância, repressão e disciplina (Melo, 2012). Yasui (2010) destaca que esta dimensão propõe uma nova práxis, uma nova organização dos serviços, defendendo a ideia do CAPS como principal dispositivo de implementação da política nacional de saúde mental, sendo mais do que um serviço, implicando a tessitura de uma rede.

A dimensão jurídico-política, citada apenas por um profissional, pode ser compreendida como uma série de mudanças na legislação sanitária, civil e penal, no que diz respeito aos novos conceitos e ações que vinculavam a loucura com a periculosidade, a incapacidade social e a irresponsabilidade (Amarante, 2007). Essa dimensão tem grande impacto no campo das medidas e das ações estratégicas da RP no Brasil, tratando-se de uma implicação social no cotidiano dos sujeitos envolvidos na luta pela transformação social (Melo, 2012).

Por último, Amarante (2007) considera que a dimensão sociocultural, reportada por três participantes, traz à tona a construção de um novo lugar social para a loucura e para o sujeito louco, por meio do imaginário social e de sua relação com a sociedade. Tal compreensão é relatada, especialmente, no que tange à desconstrução de estigmas, conforme demonstra o trecho que se segue: “Olha, a reforma foi para fazer essa desconstrução, né? Desses estigmas. Eu acho que a reforma aconteceu para isso, né? E tipo assim, foi boa, porque esses estigmas, eles, eles são menores hoje do que antes da reforma, né?” (Roberta, 2017).

Segundo Melo (2011), essa dimensão está intimamente ligada às ações e às estratégias de cunho cultural, objetivando trabalhar socialmente o estigma produzido ao longo dos séculos em torno da loucura, defendendo ainda as possibilidades de tratamento e cuidado, para além dos espaços manicomiais.

Conceito de Desinstitucionalização

No que diz respeito à concepção dos participantes acerca da desinstitucionalização, cinco entrevistados evidenciaram a conceituação no sentido de problematizar o processo de alienação dentro e fora dos serviços, relacionando-se também com a desconstrução dos estigmas e ressignificação subjetiva. Exemplificando-se nos trechos a seguir: “Eu entendo a desinstitucionalização como um processo ontológico, não como um processo técnico apenas; não basta a gente mudar uma lei, a gente tem que mudar uma cabeça, a gente tem que mudar uma forma de entender o tratamento.” (Marcelo, 2017).

É possível perceber a partir dos relatos que o conceito de desinstitucionalização se baseia nos ideais da RP, propondo um processo de desconstrução de práticas manicomiais e formação de novos saberes, priorizando a subjetividade e a autonomia do indivíduo, bem como o livre exercício de sua cidadania (Guedes et al., 2010).

Para Amarante (2009), a desinstitucionalização não se restringe à reestruturação técnica de serviços, de novas e modernas terapias: torna-se um processo complexo de recolocar o problema, de reconstruir saberes e práticas, de estabelecer novas relações. Por isso é, acima de tudo, um processo ético-estético de reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos, novos sujeitos de direitos e novos direitos para os sujeitos (Amarante, 2009). O processo de desinstitucionalização propõe novos contextos de vida para as pessoas com transtorno mental, bem como para seus familiares, e pretende implicá-los no tratamento, modificando as relações de poder entre os usuários e as instituições (Silva & Rosa, 2014).

Ainda na perspectiva de conceituar desinstitucionalização, evidenciou-se em quatro relatos uma definição relacionada às atividades extra-CAPS, vinculando e viabilizando o acesso do sujeito a outras instituições, como se observa a seguir:

Ah, desinstitucionalização?! O fato da pessoa não ficar presa naquela instituição só, né?!...Pode ter atividades externas também. (Maria, 2017).

“É exatamente tirar das instituições, essas práticas de não deixar preso dentro das instituições, as práticas, as pessoas, os processos de sair dos muros. (Gabriela, 2017).

Vale ressaltar que Furtado et al. (2017) apontam ainda que uma concepção de cuidado em saúde mental, de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica, pressupõe vínculos com outros serviços, instituições e recursos do território. Com isso, “Serviços e políticas públicas norteadas pela atenção psicossocial devem priorizar a intersetorialidade como uma estratégia fundamental na construção de projetos de saúde, de solidariedade e de participação social, tornando os sujeitos ativos na produção de saúde” (Severo & Dimenstein, 2011, p. 650).

O processo de desinstitucionalização envolve um cuidado em saúde mental que seja integral, isto é, que leve em consideração as diferentes dimensões da pessoa que estão inseridas no processo de saúde-doença. Assim sendo, é fundamental a participação, de acordo com a necessidade, de diversos profissionais envolvendo múltiplas áreas do conhecimento (medicina, psicologia, serviço social, enfermagem), junto a outros setores, como arte, cultura, educação, justiça, assistência social. Partindo desse pressuposto, desinstitucionalizar é também estabelecer intersetorialidade e trabalho em rede, o que implica a adoção de modelos de atenção integral baseados no território (Dimenstein & Liberato, 2009). Espaços, equipamentos e instituições relacionadas à cultura, geração de trabalho e renda, esportes e lazer constituem-se importantes aliados do serviço (Furtado et al., 2017).

Outro ponto que merece destaque é o fato de que um dos participantes apresentou dificuldades em definir o conceito de desinstitucionalização. Este dado nos permite inferir que, na categoria dos profissionais da saúde mental, existe uma disparidade entre os discursos dos entrevistados, apresentados em alguns trechos, ou seja, concepções distintas das que são preconizadas pela RP e, ainda, as possíveis diferenças sobre desospitalização, como exemplifica o trecho a seguir:

Ah esse processo assim, de desinstitucionalização, é muito complexo também, né? Porque tipo assim, desinstitucionalizar é muito... é... vem de... de... de contra-referência, para mim é de contra-referência. Porque tipo assim, desinstitucionaliza, né? E aí como é que fica essa questão, né? Para a sociedade, eu não tenho muita visão disso aí, se é uma melhora ou uma piora para sociedade, né? Na minha opinião, acho que não melhora muito não. (Roberta, 2017).

É importante destacar, ainda, que há uma incongruência ao se referir a um processo de desinstitucionalização dentro do serviço substitutivo, uma vez que estes foram criados com o objetivo de desconstrução das práticas manicomiais e construção de novos saberes, ou seja, desinstitucionalizar. Porém, a desinstitucionalização nos CAPS pode significar um avanço nas práticas no âmbito da saúde mental, pois os próprios profissionais identificaram a reprodução do modelo manicomial, a partir dessa reflexão.

Embasamento Teórico

Pode-se inferir uma diversidade de posicionamentos quanto ao embasamento teórico utilizado pelos participantes, porém, no que tange às leis e portarias, quatro profissionais citaram a Lei n. 10.216/01 (Brasil, 2001), que garante proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Há, ainda, a portaria n. 130 (Brasil, 2012), de 26 de janeiro, que redefine o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 h (CAPS AD III) e os respectivos incentivos financeiros, como ilustra o trecho a seguir:

Nós temos uma política nacional de saúde mental bem ampla que abarca tanto os transtornos mentais como os usuários de álcool e outras drogas, né? A 10.216, a portaria 130 tem várias legislações aí que abarcam todas essas demandas... então a 10.216 veio para bater o martelo dos direitos, de reafirmar o direito das pessoas com transtornos mentais e necessidades decorrentes do álcool e outras drogas. (Roberta, 2017).

A Lei Federal n. 10.216, de 2001 (Brasil, 2001), também conhecida como Lei Paulo Delgado, oficializou o atendimento psiquiátrico comunitário no Brasil, com o tratamento mais humanizado, proteção às pessoas com transtornos mentais, priorizando os serviços comunitários ao invés da internação, a implantação de serviços substitutivos, como os CAPS e suas bases de funcionamento, bem como a regulamentação das internações compulsórias (Brasil, 2001). Por sua vez, a portaria n. 130, de 2012 (Brasil, 2012) redefine o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 h (CAPS AD III) como equipamento reordenador da rede, ampliando também o acesso de crianças e adolescentes a ele, através do funcionamento 24 horas, dispondo também sobre os respectivos incentivos financeiros (Brasil, 2012).

Deste modo, a Lei n. 10.216/01 consolidou um modelo de atenção aberto e de base comunitário, proporcionando mudança nos modos de cuidado aos usuários (Cusinato, 2016). Souza e Afonso (2015) afirmam que, com a mudança do modelo assistencial, surge a preocupação com a formação profissional, a fim de garantir uma assistência eficaz e promover a saúde, sem perda da dignidade dos usuários do serviço de saúde mental. Ballarin, Carvalho, Ferigato e Miranda (2011, p. 162) afirmam que:

O deslocamento da assistência de um modelo hospitalocêntrico para um modelo de atenção extra-hospitalar tem propiciado a implementação de tecnologias psicossociais interdisciplinares, que implicam na constituição de novas formas de se pensar, tratar e cuidar de pessoas em sofrimento psíquico.

A pesquisa evidencia que o conhecimento teórico e técnico implica não apenas o entendimento e a maior efetividade da implementação prática das políticas e dos modelos propostos, mas também a possibilidade de autorreflexão e de reavaliação constante da práxis cotidiana das atividades assistenciais (Bezerra, 2007). Destarte, o avanço da RP, bem como o processo de construção de uma política de saúde mental, requer, além de recursos materiais e técnicos, o desenvolvimento de saberes e práticas inovadoras dos profissionais de saúde (Souza & Afonso, 2015).

Desconhecimento Acerca da Legislação em Saúde Mental

A partir das respostas analisadas, notou-se que seis dos participantes desconhecem a legislação referente à Política de Saúde Mental, colocando em pauta a fragilidade dos processos formativos, capacitações e também a falta de identificação com essa área de atuação. Como demonstram os relatos a seguir:

A gente vê assim que a pessoa passar num concurso e é jogada para trabalhar aqui, mas nem sempre a pessoa tem afinidade com esse trabalho e não tem o conhecimento teórico suficiente para trabalhar aqui, entendeu? (Maria, 2017).

Não sei, diretrizes que falam sobre saúde mental, não é? Eu não sei não, não sei qual que é a portaria. (Fernanda, 2017).

É importante lembrar que a legislação do Sistema Único de Saúde (SUS) exige práticas inovadoras e que essas não se fazem sem novas práticas pedagógicas na formação dos profissionais, na educação em saúde, na produção de conhecimento, na educação permanente e na prestação de serviços (Ceccim & Feuerwerker, 2004).

Nesse sentido, Silva, Oliveira e Kamimura (2014) afirmam que a necessidade de capacitação dos profissionais do campo da saúde mental é reconhecida e reafirmada em todos os documentos do Ministério da Saúde/SUS, sendo a adequada formação técnica e teórica o desafio da implantação do novo paradigma do cuidado. Na perspectiva de Medeiros, Nascimento, Pávon e Silveira (2016), o processo de capacitação dos profissionais no campo da saúde deve partir das problematizações e das ações que emergem no cotidiano dos sujeitos, colocando a educação permanente como um fator fundamental para a consolidação do SUS, tornando necessária a reversão das teorias biologicistas da educação na saúde para uma teoria da integralidade na educação dos profissionais de saúde (Ceccim & Feuerwerker, 2004). Ainda nesta direção, Medeiros et al. (2016) ressaltam que:

. . . o investimento ético-político em processos reflexivos de formação sobre a saúde mental se situa em um contexto de afirmação do direito à cidadania e à tentativa de afastamento das políticas exclusivamente assistencialistas e normalizadoras, que tendem a reduzir a questão do sujeito da loucura a processos medicamentosos e disciplinares, com efeitos recorrentemente estigmatizadores e de exclusão social. (p. 476).

Diante do exposto, é preciso observar os fatores que levam a um possível desconhecimento dos profissionais acerca da legislação, uma vez que isso pode refletir na reprodução de práticas manicomiais. Com o intuito de garantir o avanço da reforma psiquiátrica, além da criação de novos serviços nesta área da saúde, é preciso dispor de um quadro de profissionais com uma visão integral de tratamento e com uma postura distinta do modelo asilar, com possibilidades de acolher e acompanhar adequadamente os usuários (Furtado & Campos, 2005).

Nesse cenário, o papel do técnico se transforma, no sentido de desinstitucionalização dos serviços em saúde mental e no modo diferente de interpretar a loucura, não usando o saber como técnica normativa, mas como possibilidade de criação de subjetividades (Torre & Amarante, 2001). Visando à melhoria do cuidado, torna-se necessário o investimento na atualização dos profissionais de saúde mental, tanto do nível básico quanto superior, uma vez que, sem esse aporte teórico, o atual modelo psicossocial estará fadado à ineficiência (Silva, Oliveira, & Kamimura, 2014).

Práticas Cotidianas

Diante da variedade de respostas, é preciso levar em consideração que existem diversas práticas e formas de cuidado prestado aos usuários, porém as mais recorrentes são mencionadas por sete participantes, apontando para o formato de grupo, oficinas, escuta qualificada, atendimentos individuais e ainda matriciamentos, como pode ser observado a seguir:

Como uma forma de ressignificação de vidas que é o que eu trabalho dentro das oficinas de expressão artísticas, de psicodrama que eu trabalho, é a arte através do corpo, a arte através delas, das pinturas... a expressão artística, né? Eu gosto muito de trabalhar com dinâmica de grupo. (Gabriela, 2017).

Tavares (2003) afirma que a valorização da arte está presente na saúde mental como fonte de inspiração e forma de cuidar, sendo reconhecida como a manifestação mais libertadora e realizadora da nossa condição humana. Ainda de acordo com este autor, a arte oferece a possibilidade de reinvenção da existência do sujeito, potencializando suas singularidades no processo de construção da cidadania, favorecendo a implementação de novos dispositivos assistenciais em saúde mental.

A arte provoca experiências socializadoras e compartilháveis, como meio de produção e inserção social das pessoas com transtorno mental (Tavares, 2003). Além da arte, os profissionais se utilizam de outras estratégias em suas atividades grupais, como a atividade física, de acordo com as seguintes declarações:

Meus grupos são voltados para atividade física porque não fica tão ligado ao transtorno, então eu mostro para eles: Olha, vocês conseguem. Jogam bola, a gente faz atividade, a gente vai para piscina, é, eu tento mostrar tanto para eles quanto para família que eles são capazes. (Dayana, 2017).

De acordo com Lourenço, Peres, Porto, Oliveira e Dutra (2017), a prática da atividade física como modalidade terapêutica direcionada às pessoas com transtorno mental vem sendo compreendida como um meio de gerar benefícios para a saúde. Para Lourenço et al. (2017), “A busca de reinserção social por meio da atividade física junto às situações ligadas à saúde mental, pode ser vista, portanto, como possibilidade de resgate de eficácia terapêutica das relações sociais” (p. 2). Atento a esses dados, o CAPS procura atender os usuários proporcionando-lhes o pleno exercício da cidadania e maior interação entre a família e a comunidade (Brasil, 2004). Nessa perspectiva, “. . . a atividade física, quando dirigida às pessoas institucionalizadas, ameniza a sensação de isolamento, tornando-as mais envolvidas e cooperativas nas atividades em que participam, melhorando disposição física, aumentando a autoestima, bem como reduzindo a ociosidade” (Lourenço et al., 2017, p. 2).

Cardinal (2008) ressalta que os CAPS consistem em um serviço baseado na humanização e preservação do convívio social, efetivando o contato na comunidade, no local de trabalho, no ambiente familiar. A prática referente à realização de matriciamentos e o processo de acolhimento aos usuários e familiares se evidencia no trecho:

A gente faz os matriciamentos, a gente faz os atendimentos com a família para explicar, para orientar... aqui nós somos técnicos de saúde mental, então assim a gente procura ter esse acolhimento com os usuários, fazer os matriciamentos para tá inserindo eles na sociedade, as oficinas para ajudar no processo terapêutico, e eu acho que assim, o que a gente mais tem aqui no CAPS é esse acolhimento, que muitos falam para gente, então assim, colocar o usuário como pessoa comum e não como um doente, né? (Carla, 2017).

De acordo com a Política Nacional de Humanização, o acolhimento se caracteriza por uma postura ética que está relacionada com a autonomia e corresponsabilização, promovendo a participação ativa do usuário na elaboração, execução e avaliação do cuidado. Para tanto, a escuta e o reconhecimento das queixas é elemento central para a criação do vínculo entre profissional e usuário e, consequentemente, a responsabilização desse no processo de cuidado (Brasil, 2010).

Santos e Nunes (2011) afirmam que a criação dos CAPS representa parte das conquistas ainda em curso do Movimento pela RP, sendo compreendidos como espaços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, que têm um tipo de clínica centrada na família, na comunidade e nos usuários. Uma das atividades realizadas por esse serviço é o matriciamento ou apoio matricial, como foi citado anteriormente, que o caracteriza como um novo modo de produzir saúde em que duas ou mais equipes criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica, em um processo de construção compartilhada (Brasil, 2011). É preciso considerar que a produção do cuidado proporciona ao SUS a qualificação da escuta dos usuários, visando contribuir com a identificação dos problemas e a reorganização do processo de trabalho, sendo o acolhimento um dispositivo para a formação de vínculo e a prática de cuidado entre o profissional e o usuário (Ignácio & Bernardi, n.d.).

Além disso, foi possível evidenciar que existe um contraponto, uma vez que cinco participantes relataram ações que se distanciam da proposta da RP, como a dificuldade em atuar com a política de redução de danos, tratamento medicamentoso que, por sua vez, atrela-se às formas de controle dentro e fora da instituição. O trecho a seguir ilustra um desses pontos: “Quando a gente vai ver as práticas de pessoas que estão mais antigas assim nesse processo ainda é algo não tão reforma assim, sabe? Ainda é algo mais implicado numa coisa institucional e não de redução de danos, enfim”. (Adriano, 2017).

Ao considerar que a implementação dos preceitos da Redução de Danos (RD) no Brasil não foi um processo tranquilo, tratando-se de uma estratégia de saúde pública que, apesar de eficaz, tem encontrado muitos obstáculos, evidencia-se que há uma contradição entre a política proposta pelo Ministério da Saúde e o que preza a legislação referente às drogas no país (Espindola, 2010). É indispensável analisar as políticas antidemocráticas sobre drogas, que se firmaram no seio da própria democracia brasileira, assim como os interesses políticos e econômicos implícitos em seu interior (R. V. Melo, 2011). Contudo, os CAPS AD são dispositivos institucionais de assistência a usuários de álcool e outras drogas, tendo como sua diretriz a política da RD, o trabalho em rede com outros serviços e com a comunidade. Dessa forma, a abstinência não deve ser mais a única meta possível do tratamento (Espindola, 2010).

Nessa perspectiva, a RD seria um caminho direcionado à “educação para autonomia”, visando elucidar as diferentes relações estabelecidas com a droga e as diversas possibilidades de ações educativas (R. V. Melo, 2011). Em seguida, adentramos num outro ponto da categoria, uma vez que o participante relata sobre a questão do tratamento medicamentoso e sua forma de condução, o que desconsidera o discurso do usuário em alguns momentos, conforme a seguinte declaração:

Eu vejo colegas que dizem assim para o paciente ‘você vai parar de tomar quando você entrar no consultório e pedir para o médico para tirar’ entende? E aí, até lá aquele paciente tem que ficar tomando a medicação que está para ele e não está legal. (Marielle, 2017).

Em conformidade com o que R. V. Melo (2011) coloca, o poder disciplinar de algumas instituições que lidam com esse tipo de demanda tenta adestrar o corpo daquele que faz uso da droga, impondo-lhe limites e regras para sua utilização. A partir deste fato, infere-se que há relação com a construção histórica existente em torno da temática, uma vez que o discurso médico, em épocas anteriores, tinha uma conotação normatizadora, ao invés de preventiva, quanto ao abuso de substâncias psicoativas.

Considerações Finais

Tendo em vista a complexidade inerente ao que o estudo se propõe discutir, é preciso ficar claro que esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar ou finalizar a discussão, pois se entende que a Reforma Psiquiátrica ainda está em curso, necessitando avançar cada vez mais, mesmo em face da difícil conjuntura política, econômica e social atualmente vivenciada no Brasil. O que se espera é que o trabalho aqui apresentado possa favorecer a produção de futuras pesquisas com o intuito de que os posicionamentos por parte dos profissionais que lidam com a loucura possam ser aprimorados, de maneira a propiciar o fortalecimento gradativo do processo da RP no Brasil.

Vale sinalizar que a discussão realizada foi feita a partir de um recorte dos dados coletados, e estabelecer essa delimitação não foi uma tarefa fácil, tendo em vista o volume de informações e sua diversidade. Foi possível perceber respostas díspares, o que pode indicar algum grau de dificuldade quanto à compreensão de conceitos, principalmente acerca da distinção entre desinstitucionalização e desospitalização. Tal disparidade pode ser permeada por uma fragilidade quanto à apropriação das concepções teóricas, apresentada a partir de respostas incipientes e fragmentadas dos participantes. Contudo, é preciso uma ampla análise diante desse fenômeno, que pode ter múltiplos fatores como causa. Um deles seria a debilidade dos processos formativos e de formação continuada dos profissionais.

Além disso, o avanço da RP tem sido ameaçado. Um exemplo disso é que, recentemente, o ministro Osmar Terra lançou uma resolução que foi aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), em que prevê o foco do tratamento aos usuários e capacitações profissionais sob a perspectiva da abstinência, de internações involuntárias e incentivo financeiro às Comunidades Terapêuticas (Rodrigues, 2018). Tais posicionamentos podem encontrar certa conexão com algumas práticas desenvolvidas nos serviços. Porém, os próprios participantes identificaram as controvérsias entre as ações que estão no caminho trilhado pela RP e ações que estão na contramão desse processo. Uma vez que há essa percepção, há também um horizonte de mudança que pode se configurar em terreno fértil para a construção de resistências contra os ataques direcionados à democracia brasileira, ao SUS e à Política Nacional de Saúde Mental.

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Sobre os autores:

Stéfhane Santana da Silva: Mestranda em Ensino em Ciência e em Saúde na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Especialista em Saúde Mental pela Fundação Escola de Saúde Pública (FESP). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Atualmente é assessora técnica de pesquisa em psicologia e políticas públicas do Conselho Regional de Psicologia da 23ª Região (CRP23) e psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas III (CAPS AD III). E-mail: stefhane-santana@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7375-5314

Jonatha Rospide Nunes: Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Preceptoria no SUS pelo Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa (ISLEP); e em Processos Educacionais Inovadores pelo Centro Universitário Católica do Tocantins (UNICATÓLICA). Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Atualmente é Tutor Gestor de Aprendizagem do Programa de Saúde Mental do Plano Integrado de Residências em Saúde da Fundação Escola de Saúde Pública (FESP), de Palmas, e Sócio-Fundador do Devir Espaço Terapêutico. E-mail: jonatharospidenunes2015@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9793-1551

Recebido em: 11/10/2019

Última revisão: 1º/05/2020

Aceite final: 07/06/2020


1 Endereço de contato: Quadra 104 norte, NE 07, Lote 42, Sala 11, Plano Diretor Norte, Palmas, Tocantins. Telefone: (63) 98494-4067/3215-7622. E-mail: stefhane-santana@hotmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v13i3.1127