Entre Assistência Social e Saúde Mental: Produzindo Práticas de Cuidado
Between Social Assistance and Mental Health: Producing Care Practices
Entre Asistencia Social y Salud Mental: Produciendo Prácticas de Cuidado
Nicolle Catanio1
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
Bruna Moraes Battistelli
Luciana Rodrigues
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo
Este artigo tem como objetivo discutir a produção de cuidado na Política de Assistência Social (AS), especificamente, na Proteção Social Básica. Para tanto, utilizamos o método cartográfico, pois, para analisar a constituição de práticas de cuidado, faz-se necessário acompanhar seu processo de produção. Cuidado, aqui, é entendido na relação com estudos de Emerson Merhy, constituído em um entre, a partir do encontro das Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social. Desta forma, produzir cuidado na AS implica uma atuação imbricada no contexto das/os usuárias/os que olhe e intervenha junto a questões como pobreza, fome e desemprego – produtoras de condições precárias de vida e sofrimento mental –, colocando em discussão como escutamos e narramos as histórias que ouvimos. Assim, é preciso uma profunda análise dos lugares que ocupamos e das diferenças raciais que estruturam nosso país, para que não sejamos violentos em nossas práticas de cuidado.
Palavras-chave: cuidado, assistência social, cartografia
Abstract
This article aims to discuss the care production in Social Assistance (AS) Policy, more specifically, in the Basic Social Protection. For this, we use the cartography method to analyze the constitution of care practices. In this study, the care is understood by the studies of Emerson Merhy, constituted in a between, from the meeting of the Public Health and Social Assistance Policies. Producing care in the AS implies an intermingled action in the context of the users in order to look and intervene with issues such as poverty, hunger and unemployment − producers of precarious living conditions and mental suffering −, putting into discussion how we listen and narrate the stories we hear. Thus, we need a deep analysis of the places we occupy and the racial differences that structure our country, so that we are not violent in our care practices.
Keywords: care, social assistance, cartography
Resumen
Este artículo tiene como objetivo discutir la producción del cuidado en la Política de Asistencia Social (AS), específicamente en la Protección Social Básica. Para esto, usamos el método cartográfico para analizar la constitución de las prácticas de cuidado. El cuidado aquí es comprendido a partir de los estudios de Emerson Merhy, constituido en uno entre, a partir del encuentro de las Políticas Públicas de Salud y Asistencia Social. Producir atención en el AS implica una acción entremezclada en el contexto de los usuarios que miran e intervienen en cuestiones como la pobreza, el hambre y el desempleo − productores de condiciones de vida precarias y sufrimiento mental −, poniendo en discusión cómo escuchamos y narramos las historias que escuchamos. Así, es necesario un análisis profundo de los lugares que ocupamos y las diferencias raciales que estructuran nuestro país, para que no seamos violentos en nuestras prácticas de atención.
Palabras clave: cuidado, asistencia social, cartografiá
Introdução
O objetivo deste artigo é discutir a dimensão do cuidado na Política de Assistência Social, especificamente na Proteção Social Básica, executada pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Trata-se de uma reflexão teórica que surge a partir de um Trabalho de Conclusão de Residência (TCR) apresentado ao Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), produzido pela primeira autora e orientado pela segunda − e que teve como comentarista e membro de banca de avaliação a terceira autora.
A discussão proposta é animada pela pergunta feita pela primeira autora durante seu processo de especialização: “O que faz uma residente em Saúde Mental Coletiva dentro de um CRAS?”. Assim, para pensar a produção de cuidado em um CRAS, foi preciso sair da “caixa” da Saúde, pensar em estratégias de trabalho que colocassem a Reforma Psiquiátrica, na perspectiva da Luta Antimanicomial, em pauta no contexto da Assistência Social (AS), e pensar sobre o impacto da desigualdade social e racial na saúde mental das pessoas. Foi necessário criar formas de trabalhar, na perspectiva da Saúde Mental Coletiva, assim como é apontada por Fagundes (1995, p. 3), que designa tal conceito como um:
. . . processo construtor de sujeitos sociais desencadeadores de transformações no modo de pensar, sentir e fazer política, ciência e gestão no cotidiano das estruturas de mediação da sociedade, extinguindo e substituindo as práticas tradicionais por outras capazes de contribuir para a construção de projetos de vida.
Para a realização deste estudo, optamos por seguir uma inspiração cartográfica embasada na obra de Rolnik (2011). Cuidado, então, no nosso entendimento, é forjado em um entre, a partir do encontro das Políticas Públicas de Saúde e de AS. Rolnik (2011, p. 66) afirma que a cartógrafa precisa “ . . . descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender”. Neste contexto, entender não tem a ver com explicar ou com revelar, a cartógrafa visa acompanhar um processo (no nosso caso, de produção de práticas de cuidado). Assim, para pensar sobre o tema proposto, as cartógrafas que lhes escrevem farão uso de histórias criadas a partir de suas experiências/memórias com o campo da AS, em um encontro com teóricos que se preocupam em pensar o cuidado na Política Pública da Saúde. Além disso, nós nos inspiramos na obra de Evaristo (2014; 2016), que escreve histórias de mulheres negras e nos ensina o trabalho de artesania que compõe o fazer de quem se propõe a produzir narrativas sobre sujeitos que sempre foram tratados de forma estereotipada pela literatura hegemônica. Uma escrita que privilegia a aproximação com o oral, acolhendo as experiências como matéria de produção textual. Assim, a escrita de narrativas articula histórias e memórias coletivas, tensionando com a lógica individualizante ocidental que situa história e memória como algo do indivíduo. Em particular, nós nos inspiramos no livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres, em que a autora tece contos com histórias de mulheres negras em diversas situações e relações sociais.
Nestes encontros vivenciados, muitas questões vieram à tona: a criminalização da pobreza, as repercussões do racismo na vida das pessoas, a segregação das pessoas tidas como “loucas”, as desigualdades sociais como produtoras de sofrimento. Um sofrimento coletivo, que perpassa a vida das/dos usuárias/os, evidenciando a necessidade de adicionarmos a discussão sobre cuidado na rotina dos serviços da AS. Por que não nos debruçarmos sobre a constituição de cuidado na AS? Para tanto, situamos a Política de Assistência Social, principalmente a Proteção Social Básica (PSB), na qual está incluído o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), serviço conhecido pelas autoras e que serviu de inspiração para este artigo. Após, discutiremos o que entendemos como cuidado e sua relação com as práticas na Política de Assistência Social.
Situando a Política de Assistência Social
A Política de Assistência Social brasileira, como política pública, nem sempre se configurou da maneira que a conhecemos atualmente. Historicamente, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), ela foi pautada nas ideias de caridade, solidariedade e filantropia (Lonardoni, Gimenes, Santos, & Nozabielli, 2006; Paganini & Vieira, 2016). Isso significa que, no país, a assistência era dirigida aos pobres, aos viajantes, aos doentes e aos incapazes (Lonardoni et al., 2006). Assim, a lógica que imperava era a da benemerência: tirava-se a responsabilidade estatal e reproduziam-se as ideias de merecimento, favor e voluntariado, além de se conceber a pobreza “enquanto algo normal e natural ou uma fatalidade da vida humana” (Oliveira, 2005, p. 25).
A partir desta concepção, foram instaurados os processos de marginalização, dominação e subalternização dos mais pobres (Oliveira, 2005), que se traduzem na desigualdade social existente no Brasil. O Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada [IPEA] (2011), no documento “Retrato das desigualdades de gênero e raça”, traz um indicador que aponta que, em 2006, 70% das famílias que recebiam o benefício do Bolsa Família eram chefiadas por pessoas negras. Ou seja: a desigualdade de gênero e a de raça são uma realidade do nosso país e precisam ser colocadas em pauta nas políticas públicas (IPEA, 2011), tendo em vista a interseccionalidade que consiste numa abordagem que permite perceber como os marcadores sociais (tais como gênero, raça, classe, idade) perpassam o contexto em que os sujeitos estão inseridos, desnudando a desigualdade social (Perpétuo, 2017).
Carneiro (2011) afirma que o IPEA demonstra que a pobreza no Brasil está calcada no alto grau de desigualdade, apontando que isso é resultado da implementação de políticas de cunho universalistas. A autora refere que a escolha pelo crescimento econômico tem impacto inferior do que o combate à desigualdade em nosso país. Um ponto importante salientado pela autora diz respeito ao acirramento da desigualdade social em decorrência da focalização das políticas públicas e consequente status universalista dessas:
A defesa intransigente das políticas universalistas no Brasil guarda, por identidade de propósitos, parentesco com o mito da democracia racial. Ambas realizam a façanha de cobrir com um manto “democrático e igualitário” processos de exclusão racial e social que perpetuam privilégios. Postergam, igualmente, o enfrentamento das desigualdades que conformam a pobreza e a exclusão social. (Carneiro, 2011, p. 99).
Na experiência que tivemos/temos com a AS, essa lógica assistencialista surge no cotidiano como força atuante e instituída, provocando questionamentos. Na maioria das vezes, de forma sutil, nos entremeios cotidianos, de maneira que nos coloca a pensar sobre as concepções de desigualdade e suas implicações com o racismo que tem estruturado as relações cotidianas de nosso país. Desta forma, agarrado nas instituições e nos sujeitos, o assistencialismo pode nos pegar de surpresa e trazer consigo as expressões de preconceitos e estigmas sociais. Perguntas como “Quais seriam os critérios para deferir um auxílio-alimento?” e “Como isso é atravessado por estigmas sociais?” nos acompanham neste processo de entender como a lógica assistencial se expressa através de práticas de cuidado.
A lógica muda, então, quando a CF/88 institui o sistema de Seguridade Social, composto pela AS, pela Saúde e pela Previdência Social. A Seguridade Social tem, portanto, o intuito de assegurar os direitos relativos a estas três esferas (Lonardoni et al., 2006; Brasil, 1988), e consolida a AS no campo dos direitos sociais. E, muitas vezes, torna-se importante interlocutora para que as/os usuárias/os tenham acesso à Saúde e Previdência Social, pois costuma ser a partir do CRAS que usuárias/os conseguem entender a relação entre os diferentes eixos da Seguridade Social e os direitos a que têm direito. Salientamos a coexistência das lógicas citadas, conforme os atores que operam com a política, e as diferentes dimensões dela, a relação com seus documentos e com a execução são campos de encontro entre as lógicas que compõem o campo da AS.
Em relação à AS, a CF/88 institui que será prestada a quem dela precisar, independentemente de contribuição à seguridade social, além de prever diretrizes acerca das ações da AS: a descentralização político-administrativa e a participação da população na formulação e controle dessas ações. Historicamente, sabe-se que a questão social não foi considerada nas formulações políticas do Brasil. Contudo, a partir da CF/88, a AS adquire o caráter de política pública e, em 1993, é promulgada a Lei n. 8.742 − a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (Brasil, 2009a).
Em 2003, com a IV Conferência Nacional de Assistência Social, que teve como temática “Assistência Social como Política de Inclusão: uma Nova Agenda para a Cidadania – LOAS 10 anos”, deliberou-se a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), buscando efetivar, entre outras questões, a intersetorialidade das políticas públicas, a descentralização político-administrativa e os níveis de complexidade (básico e especial), com o objetivo de efetivar a AS como política pública (Brasil, 2003; 2005). Assim, em 2004, nasceu a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), e o SUAS surgiu para materializar a LOAS. Neste sentido, o SUAS organiza, estrutura e normatiza os elementos necessários às ações socioassistenciais, além dos eixos estruturantes, que consistem na “ . . . matricialidade familiar, descentralização político-administrativa e territorialização, novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil, financiamento, controle social, desafio da participação popular, política de recursos humanos e informação, monitoramento e avaliação” (Brasil, 2005, p. 40).
É possível perceber, portanto, que a AS é uma política pública extremamente nova, que almeja efetivar e garantir direitos dos sujeitos e, ao mesmo tempo, tem tantas fragilidades que lhe são impostas, que o trabalho se torna cada vez mais complexo. A descontinuidade de alguns benefícios e a precarização do trabalho são dois exemplos dos desafios que se chocam com as possibilidades de fortalecimento do SUAS. Apesar dessas fragilidades, acreditamos que uma forma de fortalecermos essa política é justamente nos apropriando dela, colocando-a em prática e exigindo do Poder Público maneiras de efetivá-la de fato. Neste sentido, é importante destacar que a PNAS tem uma perspectiva socioterritorial, considera o território como o espaço de sua intervenção, além de dar visibilidade aos segmentos invisíveis à sociedade: pessoas em situação de rua, adolescentes em conflito com a lei, indígenas, quilombolas, idosos, pessoas com deficiência (Brasil, 2005).
A LOAS e a PNAS apontam para a necessidade de se aproximar e enxergar o território como o lugar onde as vulnerabilidades se expressam, além de olhar para os “invisíveis” como parte de uma situação coletiva, e não apenas individual (Brasil, 2005). Neste sentido, expressam uma mudança na lógica da AS: coloca-se de lado o assistencialismo e clientelismo que pautavam as ações, serviços e benefícios, e passa-se a considerar o contexto social, já que se preconiza a inserção de equipamentos estatais nos territórios de maior vulnerabilidade (Fiuza & Costa, 2015; Silveira, 2017). Neste sentido, faz-se necessário apontar que, em 2009, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprovou a Resolução n. 109, que diz respeito à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. Essa tipificação normatiza o funcionamento dos serviços da AS (Brasil, 2013).
Diante disso, surgem questionamentos que buscam refletir sobre o cenário do SUAS: como ofertar um serviço de qualidade quando o CRAS tem mais de cinco mil famílias referenciadas? Como tornar o espaço CRAS um lugar de referência para a comunidade? E por onde se começa a construir um SCFV? Como vincular usuárias/os? Que ações podemos desenvolver a partir daquilo que percebemos? Qual a função de um residente em saúde mental coletiva na Proteção Social Básica da AS? Como ofertar alguma ação que, em função de nossa futura saída do serviço, pode não ter continuidade? Como seguir fortalecendo uma política pública que, no atual contexto político, vem sendo desmantelada, enxugada, reduzida?
No cenário político atual brasileiro, vemos um crescente em ameaças à garantia dos direitos sociais, diminuição de orçamentos, culpabilização de usuárias/os do Bolsa Família, colocando a AS novamente no campo da caridade, em que há usuárias/os “merecedores” e “não merecedores”. Que estratégias de resistência podemos desenvolver contra essa lógica, que insiste em tentar sucumbir essa política? (Battistelli & Cruz, 2019).
Produzindo Práticas de Cuidado na Política de Assistência Social
Diante do cenário que vivemos, de um avanço neoliberal de enxugamento de serviços públicos, principalmente no SUAS, e a herança assistencialista que ainda insiste em atuar em muitas práticas, nós nos questionamos sobre como é possível pensar e apostar em práticas de cuidado para além das normativas de gerenciamento da vida. Que cuidado produzimos em nossa prática de trabalho social com as/os usuárias/os? Na relação com o território? Esse cuidado dá conta das demandas das famílias? Conseguimos reconhecer a existência de um sofrimento mental que advém das vulnerabilidades sociais vivenciadas pela população? Um sofrimento coletivo perpassado por marcadores sociais como gênero, raça, sexualidade, entre outros. Conseguimos fazer essa análise quando propomos as intervenções nas diferentes complexidades da Política de Assistência?
Quando falamos em “cuidado” e “produção do cuidado”, precisamos dizer que nossa escrita é guiada pelas contribuições de Emerson Elias Merhy (médico brasileiro e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro) e suas considerações sobre esta temática. Merhy é um médico sanitarista, que fez (e faz) inúmeras contribuições à temática da produção do cuidado no campo da Saúde. Aqui, tomamos emprestados seus conceitos, para articulá-los e costurá-los com o campo da AS, com o intuito de dar contorno à nossa vivência.
Para ele, tal como o título de um de seus textos, “O cuidado é um acontecimento e não um ato” (Merhy, 2013, p. 69), não é somente um saber técnico que se pode aplicar num objeto, mas sim algo que se estabelece no espaço intercessor que acontece nos encontros entre trabalhadoras/es e usuárias/os. Nesse espaço intercessor, as ferramentas e os saberes do agente produtor do cuidado (neste caso, as/os trabalhadoras/es) se encontram com as “intencionalidades, conhecimentos e representações” do agente consumidor (a/o usuária/o) (Merhy, 2013, p. 71).
Ele ressalta isso quando diz que o objeto da saúde não é a cura, mas sim a produção de cuidado. Esta, por sua vez, pode ser o meio pelo qual as/os usuárias/os encontrem sua cura. Além disso, aponta que, quando duas pessoas – trabalhador/a e usuário/a – se encontram, existe a possibilidade de criação de momentos que se dão sempre no entre eles, tais como
. . . momentos de falas, escutas e interpretações, no qual há a produção de uma acolhida ou não das intenções que estas pessoas colocam neste encontro; momentos de cumplicidades, nos quais há a produção de uma responsabilização em torno do problema que vai ser enfrentado; momentos de confiabilidade e esperança, nos quais se produzem relações de vínculo e aceitação (Merhy, 2004, p. 115).
Ainda nesta direção do “entre”, podemos recorrer a Deleuze e Parnet (1992). Os autores fazem uso da imagem da orquídea e da vespa, para nos explicarem como esses movimentos são produzidos. É no “entre” que os agenciamentos acontecem. É no “entre”, na combinação do “isto com aquilo” (Tadeu, 2002, p. 56), que se encontram “ . . . movimentos, ideias, acontecimentos, entidades” (Deleuze & Parnet, 1992, p. 14). No caso da orquídea e da vespa, há, entre elas, uma troca, uma incorporação. Uma se contagia com a outra. É isso que acontece no movimento entre trabalhador/a e usuário/a. É uma aposta nos acontecimentos que vão surgir dessa relação que se opera o cuidado.
O profissional da Saúde, então, deve ser um operador de cuidado − não um agente de cura (Merhy, 2004) − que opera com a ideia de encontros “entre” e “com”. No caso da AS, acreditamos que o trabalhador também tenha um papel de operador de cuidado e, ao invés de buscar a cura como na Saúde, no campo da AS ele deve se afastar da ideia de ser um agente da “salvação” da pobreza e da miséria. Merhy se vale muito da descrição de cenas e na construção de imagens, que colocam em perspectiva o que ele compreende como produção do cuidado. Neste sentido, ele fala sobre três “valises tecnológicas múltiplas” (Merhy, 2013, p. 144), que compõem a atuação do trabalhador.
Em cada valise, há um conjunto de ferramentas, que compõem diferentes tecnologias: na primeira valise, há tecnologias duras: as ferramentas são mais concretas, tal como o estetoscópio; na segunda, tecnologias leveduras, compostas pelo saber técnico/especializado que a trabalhadora e o trabalhador carregam a partir de sua formação; a última, por sua vez, diz respeito às tecnologias leves, que são produzidas em ato e que só existem quando há um encontro, como dito anteriormente, entre trabalhadora e trabalhador e usuária/o (Merhy, 2013), e é onde acontece o “trabalho vivo em ato” (Merhy, 2004, p. 115). A imagem das valises nos auxilia a pensar sobre nossa atuação, pois, a partir dos encontros, “ . . . o trabalhador pode se ver, ao ver suas ações no outro” (Merhy, 2006, p. 88). Acreditamos que essa seja uma pista para uma produção de cuidado implicada com o compromisso e a responsabilização com a/o usuária/o, que engloba o escutar o outro em suas vontades e desejos, mas que também passa pela reflexão crítica de nossas posturas como trabalhadoras/es.
As contribuições de Merhy ao campo da produção de cuidado auxiliaram a compreender as cenas que se desdobram nas histórias narradas pela primeira autora em seu TCR. Valendo-se de Merhy, acreditamos que seja possível enxergar como se dá a construção do cuidado de uma forma geral, mas também consideramos importante somarmos a essa discussão as questões de gênero e raça, e a maneira como elas perpassam o cuidado. Se queremos propor o cuidado como acontecimento (Merhy, 2013), precisamos nos atentar para o que o compõe, para aquilo que se coloca no entre, quando diferentes corpos se encontram.
Para contextualizar o que entendemos como cuidado, durante a escrita do TCR, foram inventadas três histórias de mulheres que tinham como intenção operar com o que estávamos discutindo (e estamos apresentando neste artigo). As três histórias ficcionalizadas no TCR são de Cláudia, Beatriz e Joana, personagens que nos ajudam a contar a experiência vivida sem que incorramos em improbidades éticas. Três mulheres, negras, moradoras de bairros periféricos e que são usuárias da Política Nacional de Assistência Social. Além disso, elas têm em comum uma vivência enlaçada na Saúde Mental. Cláudia tem um filho com diagnóstico de esquizofrenia − e ela própria se diagnostica com depressão; Beatriz já esteve internada em hospital psiquiátrico e Joana é usuária de um Centro de Atenção Psicossocial Adulto (CAPS II). Uma relação ainda pouco explorada no campo de pesquisa sobre a AS. Contar as histórias dos encontros que tivemos com essas mulheres coloca em pauta, além da temática do cuidado, a transversalidade de gênero e raça nas políticas sociais. Quando estamos olhando para uma Política, é importante que olhemos também os marcadores sociais que a atravessam. No campo da PNAS, por exemplo, podemos constatar que o público atendido é, em sua grande maioria, composto por mulheres negras (IPEA, 2011).
O território vivenciado por estas mulheres fica localizado em uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Atualmente, a população da cidade é de 130.957 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2010), sendo que cerca de cinco mil famílias pertencem ao território de abrangência do CRAS onde ocorreu o campo que originou o TCR que inspira este artigo. Contudo, a partir de dados de um relatório produzido por este serviço, estima-se que 2.306 famílias estejam incluídas no CadÚnico. Destas, 802 famílias têm renda per capita de R$ 89; 507, de R$ 89,01 até R$ 178; 541, de R$ 178,01 até ½ salário mínimo; e 456, acima de ½ salário mínimo. Um território que nos relembra que a desigualdade social tem raça e gênero. Como rompemos com a dinâmica colonial de produção de cuidado que trata do gerenciamento das vidas como se estas fossem constituídas de modo universal? Nossa discussão é quanto à proposição de um cuidado que possa se constituir no encontro entre corpos múltiplos, com privilégios e experiências de opressão muito diversos. Uma mulher branca e pobre e uma mulher negra e pobre vivem a situação de desigualdade social e os efeitos deste de modos muito diversos, pois, para a mulher branca, ainda há o privilégio da brancura que a diferencia no acolhimento nos serviços e na oferta de benefícios.
Afinal, se essas questões se manifestam nos diversos indicadores, tais como educação, mercado de trabalho e habitação (IPEA, 2011), por que não atravessariam também nosso “cuidar?”. O atendimento, acolhimento, o cuidado prestado às pessoas, levando em consideração sua raça e seu gênero, é o mesmo? Lembramos de, certa vez, perceber diferença no acesso e no tratamento de dois usuários. O primeiro, um homem branco, recebia um auxílio-alimento (de forma eventual, mas com certa frequência), sem precisar justificar os motivos pelos quais necessitava do benefício, enquanto outra usuária, uma mulher negra, era alvo de questionamentos: por que ela não conseguia comprar comida? Como ela gastava o dinheiro dela? Se ela não sabia administrar seu dinheiro, por que deferir um auxílio alimento? Para seguirmos nossa discussão, contaremos a história de dona Cláudia, tecida a partir de diferentes matérias da nossa experiência com a política de Assistência Social.
Dona Cláudia: A Repetição e o Cuidado
O texto intitulado “Da repetição à diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado” (Merhy, Feuerwerker, & Cerqueira, 2010) nos faz lembrar de dona Cláudia. Uma mulher, negra, franzina e que tem cerca de 50 anos, que vai ao CRAS uma, duas, três vezes ao mês. Às vezes, passam meses sem que ela acesse o serviço. Contudo, em cada ida, é atendida por uma técnica diferente, mas o motivo que a leva até lá é sempre o mesmo: o filho que tem diagnóstico de esquizofrenia.
O primeiro registro dela no CRAS é de 2016. Naquela oportunidade, dona Cláudia procurou o serviço para obter informações sobre vagas de emprego. Já na segunda vez, sua busca pelo serviço foi em função do filho: queria orientações sobre internação compulsória2, pois o filho vinha fazendo uso de drogas. Na terceira vez, queria encaminhar um Benefício de Prestação Continuada (BPC) para ele, além de solicitar auxílio-alimento. Nos acolhimentos seguintes, a questão do filho foi ficando mais evidente. Dona Cláudia traz em seu relato que já não mora mais em sua casa, pois o filho passou a ameaçá-la de morte, além de ter passado por uma internação em saúde mental na semana anterior. As crises do filho são frequentes e ele costuma brigar com pessoas na rua, ameaçar a família e fazer uso de drogas. Apesar de já ter sido atendido algumas vezes no Centro de Atenção Psicossocial Adulto (CAPS II), ele não costuma acessar o serviço, assim como também não vem ao CRAS.
Em 2018, ela retornou ao CRAS, sua ida envolveu o filho. Ela foi buscar auxílio, pois ele estava em surto e seguia ameaçando-a. A partir disso, o CRAS contatou a Promotoria de Justiça, a Defensoria Pública e o CAPS II, além de orientar dona Cláudia a fazer contato com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Ela procurou os outros pontos da rede, mas algo a faz sempre retornar ao CRAS. Provavelmente, porque ver o serviço como um espaço que lhe escuta, mesmo que não “resolva” a demanda, faz com que ela busque o CRAS. Dona Cláudia procura por qualquer pessoa da equipe técnica que se mostre disponível para escutá-la, que pode se sentar por alguns minutos e ouvir o que ela tem para contar. Procura (e encontra) no CRAS um espaço para falar de seus medos, angústias e preocupações. As situações que dona Cláudia relata nos enchem de perguntas: essa escuta e acolhimento deveriam ser feitos aqui? Não é papel da Saúde? Mas eu não posso não escutar. . . Alguém olha para dona Cláudia para além da fala relacionada ao filho? Algum serviço dá conta de escutar o sofrimento de dona Cláudia? Ou só cuidamos do filho dela? Ou então será que, indiretamente, ao cuidar do filho, não cuidamos dela?
Do ponto de vista de Merhy (2004), o ato de cuidar envolve o momento em que o cuidado acontece. “Cuidar” implica no “trabalho vivo em ato” (2004, p. 115), que pode se dar na relação entre trabalhador/a-usuário/a e que produz acolhimento e responsabilização da situação demandada. Apesar de ser um serviço da Política de Assistência Social, o CRAS cria condições para dona Cláudia ser cuidada: oferece acolhimento e um espaço onde ela pode contar com alguém para escutá-la. Merhy (2004) aponta que todo profissional é capaz de ser um cuidador, de produzir cuidado e, ao mesmo tempo, seu cuidado tem um “recorte” profissional, um lugar que norteia como a demanda apresentada é vista, entendida e trabalhada. Neste sentido, nas evoluções do prontuário de dona Cláudia, é possível observar que ela já foi acolhida por diversos profissionais, de diferentes núcleos, o que demonstra que, independentemente do tipo de formação, todo trabalhador é capaz de produzir cuidado.
Além disso, Merhy et al. (2010) escrevem, em seu texto, que essa multiplicidade da capacidade de produzir cuidado a partir de diferentes olhares traz a chance de se compreender e se comunicar com a/o usuária/o. E esta multiplicidade, por sua vez, contribui para a “ . . . construção de relações de confiança e conforto” (Merhy et al., 2010, p. 33). Ou seja: o encontro de cada profissional do CRAS com dona Cláudia, mesmo que pareça repetitivo, é o que a acolhe. Na repetição se produz escuta, acolhimento e cuidado, mesmo não havendo solução ou resposta. Só é possível que dona Cláudia cuide do filho porque é cuidada pelas trabalhadoras do serviço. Assim, para situações como a de Dona Cláudia, o CRAS é o serviço de porta aberta para a escuta.
Há muitas semelhanças com a história de Dona Cláudia (Merhy et al., 2010). No texto citado, a história envolve Maria e sua mãe. Maria é uma mulher de aproximadamente 30 anos, gestante e paciente psicótica − como o filho de dona Cláudia. A mãe de Maria procura o serviço de saúde toda semana, durante anos, ao mesmo tempo que expressa verbalmente o desejo de não querer mais cuidá-la. Na cena narrada, a mãe de Maria interrompe uma reunião de equipe, com falas que, aparentemente, demonstram não querer mais cuidar da filha. A equipe também entra nesse jogo: aponta que o caso de Maria é um caso sem solução. Naquele momento, a equipe não tem espaço para perceber que é na busca semanal pelo serviço que a mãe encontra uma brecha, um espaço para cuidar da filha. É na repetição que se produz cuidado, mesmo que pareça não existir movimento:
É possível produzir diferença naquilo que se repete, assim como diz o poeta: repetir, repetir, repetir, até fazer diferente! O encontro que produz cuidado deve ser sustentado por uma aposta de que é possível produzir diferença, mesmo ali onde, em princípio, nada se movimenta. (Merhy et al., 2010, p. 32).
Para ser possível produzir cuidado num encontro, os autores nos apontam um caminho, que envolve desestabilizar nossas certezas sobre o outro. É somente o outro que pode nos indicar pistas sobre o que é importante em sua vida (Merhy et al., 2010). A história da mãe da Maria, assim como a de dona Cláudia, mostra-nos que, ao acolhermos suas falas, percebendo que há uma dor ali, são produzidas “linhas de fuga” (p. 32). As linhas de fuga nos ajudam a pensar em outro agir, em outras estratégias, que não precisam ser, necessariamente, advindas somente de conhecimento técnico.
Se é no encontro que se produz cuidado, devemos nos atentar para o que Ayres (2004) nos aponta: nunca somos apenas profissionais aplicadores de conhecimentos técnicos quando estamos em contato com o outro; nossa intervenção precisa ser articulada entre aspectos técnicos e não técnicos. E é isso que acontece com dona Cláudia. Cada trabalhadora a recebe e acolhe à sua maneira, muitas vezes, ofertando um momento de escuta implicado, sem julgamentos e atento. Assim, acolher mulheres como Cláudia exige um pensar interseccional, que permita que as opressões de raça, gênero, classe, idade e saúde mental sejam analisadas caso a caso, particularizando o acolhimento proposto, mesmo em estratégias coletivas, como propõe a AS. Enquanto a desigualdade social for racializada como no Brasil, não podemos pensar nossas práticas de forma universalista, pois há particularidades que precisam ser centrais quando propomos cuidado e acolhimento em um serviço da AS.
Cuidado e Assistência Social: Possibilidades para Acolher um Sofrimento Coletivo
Escrever sobre estes encontros é uma aposta que fazemos. Uma aposta no trabalho coletivo, em uma memória que perpassa uma política jovem como a AS. Por que razão inserir residentes em Saúde Mental Coletiva na AS se não para apostar, para experimentar, para questionar e para produzir? Uma pergunta que nos fez chegar ao tema do cuidado e à necessidade de pensá-lo em sua relação com as desigualdades sociais e no enfrentamento delas.
Uma das diretrizes da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva da UFRGS é a inserção dos profissionais residentes em dois cenários de prática de maneira concomitante. A partir da pactuação do programa de residência e da gestão do município, as residentes foram inseridas em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) e em um CRAS. Esta configuração nasceu da necessidade de uma maior aproximação das redes de Saúde e AS do município, que enxergou, na inserção das residentes, a possibilidade de criar um elo, uma interlocução entre as políticas, que pudesse favorecer o trabalho em rede e que também proporcionasse um olhar mais humanizado e singularizado às/aos usuárias/os.
Nossa experiência com a AS nos indica que a maioria das trabalhadoras e trabalhadores da AS pouco ou nada tem a oferecer de concreto as/aos usuárias/os dos serviços; na maioria das vezes, a escuta é o possível. Em tempos de precarização da política e acirramento das vulnerabilidades sociais, as/os trabalhadoras/es pouco conseguem avançar na garantia de direitos básicos, sendo o exercício da escuta e acolhimento essenciais para a população atendida. Assim, acompanhar serviços desta política é ver o retorno de famílias que peregrinam por entre diferentes políticas e que passam a ser frequentes no CRAS por sua possibilidade de acolhimento e escuta, por sua capacidade de ofertar cuidado a um sofrimento que não deve ser entendido como individual, mas sim como coletivo.
Assim, precisamos pensar em caminhos, e as orientações técnicas para o CRAS (Brasil, 2009b) nos indicam alguns: o enfoque interdisciplinar é o que deve dar o contorno da atuação dos profissionais da AS, tendo em vista a complexidade das vulnerabilidades e riscos sociais, e a necessidade de os profissionais não se fecharem em seus núcleos de formação. Além disso, também faz um alerta para a Psicologia: a atuação de psicólogas/os não deve ser pautada no atendimento psicoterapêutico. Essa recomendação é baseada na ideia da clínica privativa tradicional, evitando, assim, patologizar as questões sociais (Brasil, 2009b). Isso significa que produzir cuidado na AS implica, no que toca à Psicologia, romper com a lógica privativa da clínica tradicional e costurar uma atuação imbricada no contexto das/os usuárias/os, a qual enxergue e acolha questões concretas, tais como pobreza, fome e desemprego, que produzem condições precárias de vida e geram sofrimento mental.
Para produzir cuidado em um contexto de extrema vulnerabilidade, é preciso reconhecer nossos lugares ao escrevermos. “De onde eu falo?” é a questão. Nossa perspectiva é pautada por uma ética da delicadeza (Gusmão & Souza, 2008), pois pensar em cuidado é colocar em jogo como escutamos e narramos as histórias que ouvimos. É preciso haver humildade ao escrevermos sobre − mesmo que do ponto de vista de nossa experiência − histórias que não são nossas, mas que tomamos emprestadas. Adichie (2009) nos conta sobre as visões que a América tem do continente africano − uma história envolta em fome e miséria − e nos alerta sobre o perigo de contarmos uma única história. O perigo está em enxergarmos apenas aquilo que limita, que cerceia, que coloca o outro como incapaz. E isso também passa pela questão de ser branco e de não reconhecer que vivemos numa estrutura racista que concede privilégios às pessoas brancas. Se não nos questionarmos sobre como o “ser branco” influencia nossas práticas, corremos o perigo de seguir contando apenas uma única história − a versão hegemônica, branca, que não enxerga a pluralidade de outras vidas. Um alerta importante para trabalhadoras e pesquisadoras da política de AS: para produzir cuidado que acolha as diferenças que se apresentam, é preciso uma profunda análise dos lugares que ocupamos e das diferenças raciais que estruturam nosso país.
Uma pista importante nos oferta Adichie (2009) quando afirma que, sim, há histórias de catástrofes, mas também há tantas outras que não são de adversidades e, nas palavras dela, “ . . . insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram . . .” (2009, n.p.). No caso do trabalho na AS, também há esse perigo: suas histórias nos mostram muito mais do que apenas sofrimento, mostram resistência, cuidado, encontros. E precisamos estar atentas/os às multiplicidades de vidas que também são produzidas a partir de elementos como raça e gênero das pessoas.
Battistelli e Cruz (2019) fazem vários questionamentos que envolvem preocupações e nos incentivam à reflexão sobre os encontros com as histórias das/os usuárias/os. Tomamos emprestadas duas dessas questões, pois acreditamos que elas cabem nesse momento e que nos dão pistas sobre o cuidado na AS: “Como estamos contando as vidas com as quais nos encontramos nos serviços de assistência?” e “Que histórias permitimos que os usuários nos contem?” (Battistelli & Cruz, 2019, p. 23). A partir dessas perguntas, constatamos que cuidar é contar essas outras histórias: as histórias que as/os usuárias/os dividem conosco, o “lado B” daquilo que parece ser a história única. As autoras afirmam que cuidar é olhar para além dos estereótipos, é escutar sem preconceitos, fugindo das amarras do controle, apurando nossos sentidos para escutarmos essas histórias.
Considerações Finais
Pensar a produção de cuidado na AS foi o modo encontrado para refletirmos sobre a intersecção entre saúde mental e AS, tendo como princípio orientador não ferir as diretrizes desta política quanto ao trabalho de psicólogas/os, ou seja, não produzir práticas terapêuticas que se caracterizem como clínica. Nosso intuito foi ofertar uma discussão sobre cuidado, saúde mental e AS que colocasse em análise a necessidade de ampliarmos os cuidados em rede, ampliando o conceito de saúde mental, atentando para o fato de que as desigualdades sociais e a vulnerabilidade econômica são produtores de sofrimento psíquico.
Deste modo, pensar cuidado e saúde mental no campo da AS deve ser pautado por uma constante análise de privilégios por parte de trabalhadoras/es para que possam ofertar espaços de escuta que não sejam violentos com as/os usuárias/os. Dona Cláudia poderia ser uma mulher atendida em qualquer CRAS de nosso país: demandas como as dela são recorrentes e precisam ser pensadas em sua singularidade, não perdendo de vista que os efeitos das desigualdades sociais produzem sofrimentos que são sentidos em uma dimensão coletiva.
Para finalizar, desejamos que psicólogas/os possam entender cuidado a partir do desenvolvimento da capacidade de percebermos o outro como dono de sua própria história, vontades e desejos, além do reconhecimento e consequente reflexão de que existe uma estrutura de privilégios raciais e de desigualdade social que impacta na forma como o sujeito experiencia sua vida − e que podem se manifestar também em sua saúde mental. Desejamos que possamos seguir questionando nossas práticas de cuidado, no sentido de potencializarmos uma atuação ética e reflexiva que permita que encontros sejam produzidos pautados no respeito, no acolhimento e na corresponsabilização.
Referências
Adichie, C. (2009). O Perigo da História Única [arquivo de vídeo]. Recuperado de https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt
Ayres, J. R. D. C. M. (2004). Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface –Comunicação, Saúde, Educação, 8(14), 73-92.
Battistelli, B. M., & Cruz, L. R. (2019). Cartas à Assistência Social. In L. R. da Cruz, N. Guareschi, & B. M. Battistelli (Orgs.), Psicologia e Assistência Social: Encontros possíveis no contemporâneo (pp.15-35). Petrópolis: Vozes.
Brasil. (1993). Lei n. 8.742 (7 de dezembro). Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm
Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Brasil. (2001). Lei n. 10.216 (6 de abril). Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/cCivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10216.htm
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2003). In Anais IV Conferência Nacional de Assistência Social. (p. 9-23). Brasília, DF: Conselho Nacional de Assistência Social. Recuperado de http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/iv-conferencia-nacional/conferencias-nacionais/iv-conferencia-nacional/deliberacoes-e-mocoes.pdf
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2005). Política Nacional de Assistência Social. Brasília, DF: MDS; Secretaria Nacional de Assistência Social [SNAS]. Recuperado de https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009a). LOAS Anotada: Lei Orgânica de Assistência Social. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social. Recuperado de https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/LoasAnotada.pdf
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2009b). Orientações técnicas: Centro de Referência de Assistência Social - CRAS. Brasília, DF: MDS; SNAS. Recuperado de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes_Cras.pdf
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2013). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, DF: MDS; SNAS. Recuperado de https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro.
Deleuze, G., & Parnet, C. (1992). Diálogos. São Paulo: Editora Escuta.
Evaristo, C. (2014). Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas Editora.
Evaristo, C. (2016). Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Editora Malê.
Fagundes, S. (1995). Exigências Contemporâneas. Saúde Mental Coletiva, 2(2), 2-4.
Fiuza, S. C. R., & Costa, L. C. (2015). O direito à assistência social: O desafio de superar as práticas clientelistas. Serviço Social em Revista, 17(2), 64-90.
Gusmão, D. S., & Souza, S. J. (2008). A estética da delicadeza nas roças de Minas: Sobre a memória e a fotografia como estratégia de pesquisa-intervenção. Psicologia & Sociedade, 20(número especial), 24-31.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Sapucaia do Sul. IBGE. Recuperado de https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sapucaia-do-sul
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2011). Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília, DF: IPEA. Recuperado de http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf
Lonardoni, E., Gimenes, J. G., Santos, M. L. D., & Nozabielli, S. R. (2006). O processo de afirmação da assistência social como política social. Serviço Social em Revista, 8(2), 35-43.
Merhy, E. E. (2004). O ato de cuidar: A alma dos serviços de saúde. In Brasil, VER–SUS Brasil: Cadernos de textos (pp. 108-137). Brasília, DF: Ministério da Saúde.
Merhy, E. E. (2006). Cuidado com o cuidado: O caso da fila do toque e a implicação do ato de cuidar. In E. M Vasconcelos, L. H. Frota, & E. Simon (Orgs.), Perplexidade na Universidade: Vivências nos cursos de saúde (pp. 84-89). São Paulo: Hucitec.
Merhy, E. E., Feuerwerker, L. C. M., & Cerqueira, M. P. (2010). Da repetição à diferença: Construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In A. G., Silva, V. C. Ramos, & V. Damasceno (Orgs.), Semiótica, afecção & cuidado em saúde (pp. 60-75). São Paulo: Hucitec.
Merhy, E. E. (2013). O cuidado é um acontecimento e não um ato. In T. B. Franco, & E. E. Merhy (Orgs.), Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde (pp. 172-82). São Paulo: Hucitec.
Oliveira, I. M. de (2005). Assistência social pós-LOAS em Natal: A trajetória de uma política social entre o direito e a cultura do atraso. (Tese de Doutorado em Serviço Social, Programa de Pós-Graduados em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP).
Paganini, J., & Vieira, R. S. (2016). O processo de inserção da assistência social no campo da política pública no Brasil. Revista Espacios, 38(3), 1-8.
Perpétuo, C. L. (2017). O conceito de interseccionalidade: Contribuições para a formação no ensino superior. In Anais V Simpósio Internacional em Educação Sexual: Saberes/trans/versais currículos identitários e pluralidades de gênero. (p. 26). Maringá: Eduem.
Rolnik, S. (2011). Cartografia sentimental. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
Silveira, J. I. (2017). A inviabilização e o desmonte do SUAS em tempos de aumento da demanda por assistência social. [Entrevista cedida a] Patricia Fachin. Revista IHU On-Line, São Leopoldo. Recuperado de http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572155-a-reducao-orcamentaria-e-uma-nova-proposta-de-assistencia-social-residual-e-nao-estatal-entrevista-especial-com-jucimeri-isolda-silveira
Tadeu, T. (2002). A arte do encontro e da composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. Educação & Realidade, 27(2), 47-57.
Sobre as autoras:
Nicolle Catanio: Especialista em Saúde Mental Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente é psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Nova Vida, Viamão. E-mail: nicolle.catanio@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7759-5968002-7759-596
Bruna Moraes Battistelli: Doutoranda e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Instituições em Análise pela UFRGS. Graduada em Psicologia pela UFRGS. E-mail: brunabattistelli@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0973-0934
Luciana Rodrigues: Doutora e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: lurodrigues.psico@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0061-1402
Recebido em: 09/05/2020
Última revisão: 11/08/2020
Aceite final: 21/08/2020
1 Endereço de contato: Avenida Borges de Medeiros, 855/51, Centro Histórico, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Telefone: (54) 98122-1160. E-mail: nicolle.catanio@gmail.com
2 Internação compulsória é uma modalidade de internação psiquiátrica que é determinada pela Justiça, é feita sem o consentimento da/o usuária/o e sem a necessidade de pedido de terceiros (Brasil, 2001).