Estratégias de Cuidado Desenvolvidas por Profissionais da Rede de Atenção Psicossocial Diante do Uso de Substâncias Psicoativas
Care Strategies Developed by Professionals from the Psychosocial Care Network Regarding the Use of Psychoactive Substances
Estrategias de Atención Desarrolladas por Profesionales de la Red de Atención Psicosocial con Respecto al Uso de Sustancias Psicoactivas
Mariele Maciel da Silva1
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Roberta Borguetti Alves
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
Resumo
Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, com o objetivo de analisar as estratégias de cuidado desenvolvidas pelos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial diante do uso de substâncias psicoativas em um município localizado no Vale do Itajaí no estado de Santa Catarina, Brasil. Participaram da pesquisa 12 profissionais, de modo a saturar os dados. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada. A análise dos dados foi realizada por meio do método Grounded Theory, com a utilização do software NVivo 12. Estabeleceram-se três categorias de análise: perspectivas de cuidado; tratamento e reabilitação psicossocial; articulação da rede de atenção psicossocial. Evidenciaram-se diferentes perspectivas de cuidado entre os profissionais, assim como divergência entre os encaminhamentos dos usuários aos dispositivos de cuidado. Sugere-se a criação de uma linha de cuidado para pessoas em uso de substâncias psicoativas e um protocolo-base de atendimento, a fim de potencializar a articulação da rede.
Palavras-chave: transtornos relacionados ao uso de substâncias, atenção à saúde, rede de cuidado, equipe de saúde
Abstract
It refers to qualitative research, in order to analyze the strategic care of the Psychosocial Care Network (Rede de Atenção Psicossocial) professionals in charge of the psychoactive substance use in the city of Vale do Itajaí in the state of Santa Catarina, Brazil. In this research, 12 professionals have participated so they could saturate the data and its veracity. The data were collected through structured interviews and photograph instruments of the environment. The data analyzed were accomplished by the Grounded Theory with the use of NVivo 12 software. Three categories of analysis were established: perspectives of care, psychosocial treatment and rehabilitation, and articulation of the psychosocial care network. Different perspectives of care among professionals were evidenced, as well as divergence between the referrals of users to care devices. The creation of a line of care for people using psychoactive substances and a basic care protocol is suggested in order to enhance the articulation of the network.
Keywords: substance-related disorders, health attention, care network, health team
Resumen
Se trata de una investigación cualitativa, exploratoria, con el objetivo de analizar el mecanismo de atención desarrollado por los profesionales de la Red de Atención Psicosocial en relación al consumo de sustancias psicoactivas en un municipio ubicado en el Valle de Itajaí en el estado de Santa Catarina, Brasil. Doce profesionales participaron en la encuesta con el fin de saturar los datos. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas y el instrumento fotografiando ambientes. El análisis de los datos se realizó mediante el método Grounded Theory utilizando el software NVivo 12. Se establecieron tres categorías de análisis: perspectivas de atención, tratamiento psicosocial y rehabilitación, articulación de la red de atención psicosocial. Se evidenciaron diferentes perspectivas de atención entre los profesionales, así como divergencia entre las derivaciones de los usuarios a los dispositivos de atención. Se sugiere la creación de una línea de atención a personas consumidoras de sustancias psicoactivas y un protocolo de atención básica para potenciar la articulación de la red.
Palabras clave: trastornos relacionados con sustancias, cuidado de la salud, red de cuidado, equipo de salud
Introdução
O uso de substâncias psicoativas tem sido uma problemática no âmbito da saúde pública. Segundo dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), realizado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (INPAD), em 2014, constatou-se que 50% da população adulta brasileira consumia álcool; 16,9%, tabaco; 6,8% (8 milhões de pessoas) já consumiram maconha ao menos uma vez na vida; 3,8% (5,1 milhões) já fizeram uso de cocaína aspirada; e 1,4% (1,8 milhão) era usuária de crack. Entre essa população, estima-se que uma em cada 200 pessoas seja dependente ou faça uso abusivo de tais substâncias, demandando tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Laranjeira, 2014).
Diante desta problemática, sob os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e da reforma psiquiátrica brasileira, foi criada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no âmbito do Sistema Único de Saúde, instituída pela Portaria GM/MS n. 3.088, de dezembro de 2011 (Brasil, 2011a), a qual se fundamenta na lógica da autonomia do sujeito e no respeito aos direitos humanos. A Rede de Atenção Psicossocial caracteriza-se pelo conjunto de ações e serviços de saúde articulados em níveis de complexidade crescente voltados ao cuidado de pessoas com transtornos mentais e àqueles que fazem uso abusivo do crack, álcool e outras drogas. Busca promover a equidade e reconhecer determinantes sociais, assim como preconiza desfazer estigmas e preconceitos, desenvolver ações de educação permanente e monitorar e avaliar a efetividade dos serviços (Brasil, 2011a; Macedo, Abreu, Fontenele, & Dimenstein, 2017).
A Rede de Atenção Psicossocial é constituída por dispositivos assistenciais com diferentes níveis de atenção, de modo a considerar as necessidades e realidades regionais. Em âmbito de baixa complexidade, a RAPS do município pesquisado caracteriza-se pelas Estratégias Saúde da Família (ESF), que desenvolvem ações de promoção e proteção à saúde, prevenção e assistência à população do território de abrangência e têm como função identificar riscos, necessidades e demandas de saúde referentes ao uso abusivo de substâncias psicoativas. É composta também pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), que atua de maneira integrada, apoiando os profissionais das equipes de saúde da família, a fim de ampliar a abrangência e resolutividade das ações da atenção básica, coordenar o cuidado, elaborar, acompanhar e gerir projetos terapêuticos singulares por meio do apoio matricial, bem como acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção da RAPS. Já o Consultório de Rua constitui-se em uma equipe multiprofissional (eCR) que atua em unidades móveis, de forma itinerante e diante das necessidades de saúde da população em situação de rua. Amplia o acesso à saúde dessa população à rede de atenção e desenvolve também ações compartilhadas e integradas com os demais dispositivos da rede e com instituições componentes do Sistema Único de Assistência Social e outras instituições públicas da sociedade civil (Brasil, 2011a; Medeiros, Garcia, Kinoshita, Santos, & Hayashida, 2016).
Na média complexidade, volta-se ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS-AD). O CAPS-AD é um serviço especializado que tem por finalidade proporcionar atendimento à população, por meio de atividades terapêuticas e promotoras de saúde, tais como: atendimento diário aos usuários dos serviços, gerenciamento dos casos, oferecendo cuidados personalizados; condições para repouso e desintoxicação ambulatorial de usuários que necessitem; cuidados aos familiares dos usuários do serviço (Brasil, 2011a; Medeiros et al., 2016).
A Atenção de Urgência e Emergência: é composta pela Unidade de Pronto Atendimento (UPA), que se caracteriza pela realização de acolhimento, classificação de risco e intervenção imediata nas situações e agravamentos que assim o requeiram. A abordagem na emergência em saúde mental tem grande importância, pois oferece ao usuário a possibilidade de aderir a outros dispositivos de saúde para a realização de um tratamento. As ações de cuidados devem se articular com os serviços existentes no sistema, permitindo o encaminhamento dos usuários a outros serviços (Brasil, 2011a; Medeiros, et al., 2016).
Atenção Residencial de Caráter Transitório: é constituída pelo Serviço de Atenção em Regime Residencial, caracterizado pela Comunidade Terapêutica (CT), a qual tem como objetivo oferecer cuidados contínuos de saúde a pessoas com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade social ou familiar. Este dispositivo deve fazer parte da operacionalização dos Projetos Terapêuticos Singulares construídos junto aos CAPS e UBS e atuar de forma articulada com os demais pontos de atenção (Brasil, 2011a; Medeiros, et al., 2016).
Assim, o trabalho em saúde caracteriza-se pelo ato de cuidar, visto que o trabalhador opera um núcleo tecnológico no seu processo de trabalho, composto por trabalho morto e trabalho vivo. O trabalho vivo é o trabalho em ato, no seu exato momento de produção, na atividade do trabalhador. Já o trabalho morto é um trabalho já realizado, ou seja, resultado de um trabalho humano anterior. Experiências inovadoras de mudanças em sistemas e serviços de saúde têm demonstrado que a ação dos profissionais, como o objetivo de uma nova forma de produção do cuidado, desenvolve um modo novo de significar o mundo do trabalho na saúde. Ao mesmo tempo em que produzem o cuidado, os profissionais produzem a si mesmos como sujeitos (Merhy, 2013).
Dessa forma, é necessário se dispor de todos os recursos tecnológicos disponíveis para a produção do cuidado, considerando as tecnologias leves que se apresentam como práticas de acolhimento, escuta e diálogo, significando, sem deixar de considerar, contudo, a importância das demais tecnologias. É primordial que o cuidado não se caracterize apenas como um produtor de procedimentos, e sim que seja uma linha de cuidado (Franco & Merhy, 2013). De acordo com Franco (2013), o cuidado sempre se produz em rede, nos três níveis de atenção haverá microrredes que atuam na produção do cuidado entre usuários e profissionais de saúde. Portanto, é preciso transitar pelo território subjetivo do trabalho vivo na saúde, potencializando redes vivas de cuidado que se desenham no território.
Considera-se que as práticas de cuidado desenvolvidas nesses dispositivos são permeadas por uma série de questões sociais e políticas que influenciam diretamente na maneira como os profissionais percebem e abordam o problema, impactando nas ações que serão realizadas e, consequentemente, na vida dos sujeitos que necessitam de cuidados relacionados ao uso de substâncias psicoativas. Os dispositivos de saúde são espaços aglutinadores de políticas, práticas, saberes, equipe técnica e usuários. É na instituição que profissionais exercem e legitimam formas de entender e de exercer uma política de cuidado e quais as intervenções possíveis, em que teorias e políticas traduzem-se em ações, estigmas e representações sobre as drogas (Machado & Boarini, 2013).
Para evidenciar a relevância científica, pesquisaram-se artigos empíricos e de relatos de experiência dos últimos cinco anos nos portais, Portal de Periódicos, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior( CAPES), Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-PSI) e ScienceDirect, que dão acesso a bases de dados científicos. Dentre os artigos científicos disponíveis que abordam o tema, apenas nove artigos discorrem sobre as estratégias de cuidado desenvolvidas por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial diante do uso de substâncias psicoativas.
No entanto, nenhum artigo desenvolveu sua pesquisa de campo em mais de um dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial, fazendo deste trabalho um colaborador para a área científica estudada. A partir disso, justifica-se a relevância de estudos que visem demonstrar um panorama sobre as concepções/práticas dos profissionais de saúde, sem restrições quanto a categorias profissionais, serviços e práticas desenvolvidas.
Com base nestas reflexões, o presente estudo teve como objetivo geral analisar as estratégias de cuidado desenvolvidas por profissionais da RAPS aos usuários que fazem uso de substâncias psicoativas em um município do Vale do Itajaí no estado de Santa Catarina, Brasil. E, a partir disso, buscou-se explorar as ações de promoção à saúde, prevenção e reabilitação psicossocial, descrever o processo de cuidado realizado pelos profissionais da RAPS aos usuários que fazem uso de substâncias psicoativas e identificar as ações de articulações dos dispositivos de cuidado diante da temática do uso de substâncias psicoativas.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de natureza aplicada, pois tem o intuito de descrever e explorar as estratégias de cuidado desenvolvidas por profissionais da RAPS aos usuários que fazem uso de substâncias psicoativas. Tem abordagem qualitativa e foi realizado por meio de pesquisa de campo, aprofundando, assim, a temática abordada, de forma que siga os objetivos estabelecidos (Sampieri, Collado, & Lucio, 2013).
Participantes
O universo dos participantes foi constituído por profissionais da saúde do município pertencente à Região de Saúde de Foz do Itajaí que atuassem, no mínimo, seis meses em dispositivos que fazem parte da RAPS e que se dispusessem a participar da pesquisa e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). No município pesquisado, a RAPS caracteriza-se por oito dispositivos de cuidado, sendo estes: a) Atenção Básica em Saúde com os dispositivos Equipes de Saúde da Família, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família e o Consultório de Rua; b) Atenção Psicossocial Especializada por meio do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Álcool e Outras Drogas; c) Atenção de Urgência e Emergência através da UPA 24 horas; d) Atenção Residencial de Caráter Transitório: Comunidade Terapêutica. Não se obteve retorno dentro do prazo estipulado para realização da pesquisa pelos dispositivos SAMU e Hospital Regional. Desse modo, foram entrevistados 2 profissionais em cada dispositivo, totalizando doze participantes. Os profissionais caracterizam-se por três enfermeiros, um técnico de enfermagem, quatro psicólogos, um terapeuta ocupacional, um profissional de educação física, um médico. Dentre os doze participantes, nove do sexo feminino e três do sexo masculino, com a média de idade de 35 anos e 7 meses. Já a média de tempo de trabalho caracteriza-se por 5 anos e 2 meses.
Instrumento
Como instrumento de investigação, foi utilizado o seguinte recurso: um roteiro de entrevista semiestruturado, o qual foi dividido em quatro tópicos norteadores, sendo eles: ações de promoção de saúde e prevenção do uso de substâncias psicoativas; estratégias de cuidado às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas; estratégias voltadas à reabilitação psicossocial; e ações de articulações dos dispositivos de cuidado.
Coleta dos Dados
O presente estudo foi autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde e, posteriormente, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Mediante o aceite sob o protocolo 3.086.550 (CAAE 02795518.5.0000.0120), foi realizado o contato com os profissionais dos dispositivos pertencentes à Rede de Atenção Psicossocial. A participação da pesquisa foi de caráter voluntário, sendo garantido, através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o anonimato dos participantes, bem como a ausência de remuneração diante da participação da pesquisa. As entrevistas foram realizadas no período de janeiro a março de 2019, em uma cidade da região de Foz do Rio Itajaí, no Estado de Santa Catarina. A coleta dos dados foi realizada individualmente, no local de trabalho de cada participante. As entrevistas foram gravadas de forma previamente autorizada e posteriormente transcritas para análises.
Análise dos Dados
Para a análise de dados, foi utilizada a Grounded Theory ou Teoria Fundamentada nos Dados, que, de acordo com Strauss e Corbin (2008), consiste em auxiliar os pesquisadores, esclarecendo aspectos relevantes na fase de análise de dados. Nesta pesquisa, foram aplicadas as fases de codificação seletiva, em que se buscou classificar os temas importantes trazidos pelos entrevistados, transformando-os em categorias e subcategorias os principais temas que emergem dos dados. Para auxílio da codificação de dados, foi utilizado o software NVivo 12, que se configura útil para criar grandes bases de dados estruturadas hierarquicamente, nas quais se inserem documentos para que sejam analisados. Este software codifica unidades de conteúdo, como textos e outros materiais, utilizando como base o esquema elaborado pelo pesquisador.
Resultados e Discussão
Para compreender o processo de cuidado dos profissionais diante das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas e como se constitui a articulação da RAPS de um município na região da Foz do Vale do Itajaí, a análise foi dividida em três categorias: perspectivas de cuidado; tratamento e reabilitação psicossocial; articulação da rede de atenção psicossocial. Na categoria perspectivas de cuidado, foi evidenciada a compreensão que os profissionais têm sobre as pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, assim como o entendimento sobre o tratamento realizado com estas pessoas. Já na categoria estratégias de cuidado delimitaram-se as ações realizadas pelos profissionais dos diferentes dispositivos às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. Por fim, a categoria articulação da RAPS buscou dialogar sobre como ocorre o cuidado compartilhado e corresponsabilizado entre os pontos de atenção.
Perspectivas de Cuidado
Acerca da lógica de cuidado adotada às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, evidenciaram-se divergências entre os profissionais de diferentes dispositivos. No que se refere ao discurso dos profissionais atuantes no dispositivo Comunidade Terapêutica (CT), a lógica é pautada na abstinência total, na qual a “recuperação integral” do usuário se dá pela privação total ao uso de substâncias psicoativas.
A lógica deste dispositivo vai ao encontro das alterações realizadas na Política Nacional de Saúde mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, esclarecidas pela Nota Técnica n. 11/2019, que foi publicada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, na qual estabelece a abstinência total como uma opção de estratégia de cuidado da política de atenção às drogas, além do incentivo financeiro para comunidades terapêuticas (Brasil, 2019).
Além disso, para estes profissionais, a compreensão do cuidado parte de uma visão moral-cristã, na qual, além de se recuperar do uso da substância, há a necessidade de normatizar comportamentos e valores. Religião, família e trabalho fazem parte dos discursos formados a respeito dos usuários, sendo os conflitos em tais esferas tomadas como causadores ou consequências de ações tidas como desviantes, como o uso de drogas, contribuindo para que a droga seja posta como o problema central, o que também justifica a necessidade de normatização do comportamento, como é evidenciado na fala de P1:
Na visão da comunidade terapêutica cristã, é além do não uso de todas as drogas, desde as ilícitas quanto as lícitas e hoje as sintéticas, além disso, é uma restauração moral e fazer com que haja uma restauração de valores, inclusive, não só usar ou não usar a droga.
Neste trecho, demonstra-se a noção de individualização do problema, que mantém o sujeito como unicamente responsável por seu fracasso perante as drogas. É evidente a importância de que os sujeitos tenham autonomia o suficiente para tornarem-se autores da própria história, entretanto, a partir desse discurso, ignoram-se elementos político-econômicos e histórico-sociais que se relacionam ao uso e se retira a responsabilização da instituição pelo processo de cuidado, pois, se os sujeitos não se adaptam ao tratamento e não concebem o fenômeno da mesma forma, a disfunção parece estar neles, não na instituição (Vasconcelos, Paiva, & Vecchia, 2018).
Já a partir da narrativa de profissionais de diferentes dispositivos (ESF, NASF, eCR, CAPS AD) foi possível perceber que havia uma aproximação da perspectiva relacionada à redução de danos como uma lógica do cuidado. Esta compreensão orienta o processo de cuidado junto às pessoas que fazem uso de drogas, a partir da ampliação dos espaços no qual se efetiva o cuidado. Tal pressuposto implica também em uma modificação da relação que se estabelece entre quem cuida e quem é cuidado, de modo a produzir uma horizontalidade e respeito ao protagonismo do sujeito. Para tanto, considera-se a necessidade e a demanda dos usuários, assim como as possibilidades para compor um acompanhamento com combinações em comum acordo, estabelecendo, assim, o processo terapêutico, o qual se ilustra na fala de P3: “O CAPS AD ele trabalha com esses dois focos, com a abstinência ou a redução de danos dependendo do objetivo que a pessoas traz durante as conversas e durante o acolhimento inicial”.
Nesta perspectiva, os profissionais salientaram o respeito ao usuário à não imposição da abstinência, pois entendem que o foco do processo de cuidado dependerá do objetivo do usuário. Nos discursos destes profissionais (NASF, eCR), é trazida a percepção de que a droga não é o agente determinante para a construção do cuidado; dessa forma, parte-se do pressuposto de que a relação do usuário com a substância nem sempre se constituirá em uma relação de dependência. Em vez disso, são pensadas múltiplas possibilidades de relação do sujeito com as drogas, o que amplia os objetivos de suas práticas.
Em outros trechos analisados, também foram encontrados alguns relatos que destacaram a redução de danos como um modo de minimizar os efeitos do uso de drogas, no sentido de diminuir a relação de dependência existente entre o sujeito e a substância. A partir desta lógica, o protagonista é o sujeito; dessa forma, o processo de cuidado tem como foco fazer com que o sujeito tenha vínculos e desenvolva atividades que não girem em torno da substância, conforme pode ser visto na fala de P5:
Então eu vejo que a redução de danos ela puxa o sujeito para ter esses vínculos, para ter essa capacidade de se alimentar e, assim, possibilitar uma qualidade de vida sem que você obrigue o sujeito a parar de fazer o uso porque essas pessoas que fazem uso, ela já vem de uma história de muitas violências, então a redução de danos ela vem um pouquinho para não violentar o sujeito mais e mais, porque às vezes tu tirar a droga do sujeito é uma violência para ele...
Machado e Boarini (2013) reforçam este entendimento ao apresentar a redução de danos como uma estratégia em saúde pública que questiona consensos colocados de antemão em torno do usuário e das drogas e, além disso, reconhece diferentes relações de uso de drogas, traduzindo-se em posturas, políticas e programas, que têm como objetivo contribuir para a transformação da visão de mundo da sociedade diante das drogas, possibilitando a expressão das pessoas que usam drogas, sobre as formas de uso, necessidades, desejos, direitos e deveres. Significa estabelecer vínculo, facilitar o acesso às informações e orientações, estimular a ida ao serviço de saúde, utilizando propostas diversificadas e construídas com cada usuário e sua rede social.
Estratégias de Cuidado
Na análise das entrevistas, foram identificadas, em cada dispositivo, diferentes estratégias de cuidado. Estas estratégias serão detalhadas a seguir, de acordo com os resultados encontrados em cada dispositivo.
As estratégias de cuidado desenvolvidas pelos dispositivos pertencentes à Atenção Básica caracterizam-se pelo acolhimento, atendimentos compartilhados, atendimentos domiciliares e intervenções grupais, além das estratégias de promoção à saúde e prevenção ao agravo de doenças. Para os dispositivos da atenção básica, o processo de acolhimento caracterizou-se pela construção de vínculo com o usuário por meio de uma escuta ativa, colocando-se à disposição para atender a qualquer demanda, independentemente do uso de substância psicoativa.
De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2017), a construção do vínculo possibilita que o usuário tenha maior participação e autonomia no processo de decisões sobre sua saúde, pois este conceito qualifica-se pela construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e profissionais, o que está diretamente ligado à relação de corresponsabilização pela saúde e resolutividade, conceitos fundamentais para a efetivação da atenção básica como porta de entrada preferencial da rede de atenção à saúde (Brasil, 2017).
No que diz respeito aos atendimentos domiciliares, verificou-se que os profissionais do NASF realizam esta atividade a partir da solicitação das equipes da ESF, conforme consta na fala de P10:
Normalmente, o NASF é acionado pela estratégia e aí a gente tenta fazer essa aproximação com o usuário ou com a família, isso em forma de visita domiciliar, principalmente, para já irmos conhecendo o ambiente, dependendo da necessidade e da abertura que essa família também der.
Esta prática de ir até o usuário também se expressa no cotidiano de trabalho da eCR, através da necessidade de acessar pessoas que vivem em situação de rua. Outra prática em comum entre estes dispositivos é o atendimento compartilhado, que se configura como uma oportunidade de ter um contato entre usuário e equipe de apoio, necessitando de pelo menos dois profissionais atendendo juntos, além do usuário ou seus familiares.
Referente às estratégias de promoção à saúde e prevenção ao agravo de doenças, foram citadas ações realizadas pelos profissionais da atenção básica (ESF, NASF, eCR), dentre elas, a distribuição de insumos básicos de higiene e alimentos, ingestão de água, realização de grupos voltados para o controle e remissão ao uso de tabaco.
As ações de promoção à saúde voltam-se também para a realização de grupos de práticas corporais e de terapia comunitária integrativa, em que o enfoque não está necessariamente no uso de substâncias psicoativas. Há também a realização de grupos desenvolvidos por iniciativa dos próprios usuários e a realização do acompanhamento longitudinal aos usuários, de acordo com suas necessidades. Apesar da existência de grupos voltados para a promoção da saúde, a não participação dos usuários em práticas grupais é enfatizada nas unidades básicas de saúde. De acordo com os profissionais, os motivos relacionados à baixa participação em grupos envolvem dificuldade em se expor, requerimento somente para atendimento clínico e falta de interesse nas temáticas propostas para os encontros grupais.
Para os dispositivos da Atenção Psicossocial Estratégica, o processo de cuidado inicial configurou-se pela coleta de informações clínicas, tratamento dos sintomas de intoxicação aguda, estabilização de crises de abstinência e prescrição de medicalização. A partir da demanda, necessidade e disponibilidade de cada usuário, é realizado o Projeto Terapêutico Singular, conforme pode ser observado na fala de P4: “É o PTS que fala, né, então cada um, dependendo do seu grau de uso, vai ter um projeto que a pessoa que o acolher vai fazer e vai ser discutido em reunião todos os dias…”.
A elaboração de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) caracteriza-se como estratégia de organização dos processos de trabalho nos serviços de saúde. Baseia-se na ideia de expansão da compreensão e da experiência do adoecer para além dos processos biológicos e orgânicos, levando em conta as liberdades individuais, o direito de escolha e o protagonismo dos sujeitos. O PTS deve ser construído em conjunto, entre o profissional e o usuário, considerando que há diferentes sujeitos e diferentes maneiras de se relacionar com a droga, portanto, necessário também que sejam desenvolvidas estratégias diferenciadas, a depender das situações e contextos de uso (Brasil, 2011b).
Referente às intervenções grupais desenvolvidas por este dispositivo, os entrevistados apontaram que realizam grupos de acolhimento aos novos usuários, grupos voltados para temáticas específicas, como prevenção à recaída e redução de danos, oficinas terapêuticas, além de grupo para familiares, a fim de possibilitar suporte e apoio à família no processo de cuidado. Em relação às ações desenvolvidas com enfoque na promoção à saúde e à prevenção ao agravo de doenças, identificaram-se grupos de educação em saúde, o incentivo à realização de testes rápidos referente ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), sífilis, hepatite e tuberculose. A partir do calendário nacional referente à prevenção de doenças, os profissionais desenvolvem ações voltadas às temáticas estabelecidas a cada mês. São realizados também eventos entre profissionais e usuários em datas comemorativas, os quais os profissionais consideram como ações promotoras de saúde.
A partir destas atividades desenvolvidas e em conformidade com Araújo e Pires (2018), destaca-se que a realização de uma prática interdisciplinar no dispositivo é fundamental para a promoção da saúde de forma integral. Além disso, considera-se importante que não se fragmente o conhecimento, devido à diversidade de profissionais que podem estar envolvidos neste cuidado e à complexidade de se trabalhar com a saúde como um todo. Por isso, faz-se necessária a construção de relações interdisciplinares voltadas para a promoção de uma ação que transcende a especificidade do saber, a partir de uma atuação ampla e contextualizada.
No que concerne ao dispositivo Comunidade Terapêutica (CT), o acolhimento configura-se por uma triagem que tem como objetivo a investigação de demandas clínicas voltadas para o uso de substâncias psicoativas, aconselhamento referente a uma demanda pontual e orientações referentes às etapas do processo de tratamento. As atividades em grupos são caracterizadas pelos grupos terapêuticos voltados para trabalhar sentimentos, prevenção de recaídas, práticas laborais, além dos grupos religiosos, prática presente em dispositivos desta modalidade. Conforme pode ser observado na pesquisa de Ribeiro e Minayo (2015), as Comunidades Terapêuticas foram criadas com o intuito de dar uma resposta às problemáticas provenientes da dependência de drogas, construindo assim um ambiente que é necessariamente livre das drogas, caracterizando-se por uma forma de tratamento em que o usuário é considerado como o principal responsável pela sua recuperação. Trata-se de um sistema estruturado, com limites precisos e funções bem delimitadas, regras claras e afetos controlados, através de normas, horários e responsabilidades − toda estrutura é para que o usuário se situe totalmente no tratamento.
No que diz respeito às atividades de promoção à saúde e prevenção ao agravo de doenças, as ações são voltadas para realização de atividade física, como idas à praia e caminhadas, distribuição de insumos básicos de higiene e alimentos, ingestão de água e estratégias de prevenção à recaída. Na CT, realizam-se grupos de educação em saúde cujo foco é a informação sobre saúde do homem e principais doenças que o acometem. É desenvolvida na própria CT a Educação de Jovens e Adultos (EJA), que se caracteriza por uma modalidade de ensino criada pelo Governo Federal, a qual perpassa todos os níveis da Educação Básica do país, destinada aos jovens, adultos e idosos que não tiveram acesso à educação na escola convencional na idade apropriada (Brasil, 2013). Esta prática está de acordo com o que preconizam as diretrizes utilizadas para o funcionamento da RAPS, no que se refere à garantia aos direitos humanos, combate a estigmas e preconceitos.
Em referência ao dispositivo Unidade de Pronto Atendimento (UPA), as ações desenvolvidas para este público caracterizam-se em um acolhimento inicial para a estabilização de crise de abstinência ou um quadro de intoxicação aguda, avaliação e manejo de situações clínicas. Logo após, é realizado encaminhamento do usuário para outro profissional, neste caso, para o médico ou para outro dispositivo, frequentemente para o CAPS, sob a influência de dois fatores determinantes, a falta de capacitação dos profissionais deste dispositivo para atender tal demanda e a percepção dos profissionais de que seu trabalho tem menos resolutividade e eficácia em comparação ao trabalho de profissionais de saúde mental.
Da mesma forma, a pesquisa de Barbosa e Souza (2013) destaca que os profissionais de UPA não têm formação suficiente para realizar atendimento a essa população. A dificuldade de se realizar uma abordagem de forma ampla é apontada pelos profissionais como decorrência da pouca disponibilidade de tempo. Já em relação às ações de prevenção e promoção à saúde desenvolvidas, estas restringem-se a orientações durante as consultas médicas devido à dinâmica de atendimento neste dispositivo. Os profissionais entendem que desenvolver ações de promoção à saúde e prevenção ao agravo de doenças é papel de dispositivos da atenção básica, como pode ser observado na fala de P11:
Mas acredito que façam isso nos postinhos de saúde, acolhimento mais, com um psicólogo, com alguém que tenha mais domínio com isso, porque o meu domínio mais de urgência e emergência, se o paciente sofrer um PCL eu domino, né, reanimação, né, aí eu fico devendo…
Considera-se importante que haja a ampliação do entendimento por parte dos profissionais da UPA sobre o seu papel no atendimento a usuários de substâncias psicoativas e a integração deste dispositivo junto à RAPS, haja vista a procura dos usuários por este serviço.
Articulação da Rede de Atenção Psicossocial
A categoria Articulação da Rede de Atenção Psicossocial foi constituída com base na caracterização de como se constitui a articulação de diferentes dispositivos. No que diz respeito à articulação da ESF com a RAPS, evidenciaram-se divergências de condutas entre os profissionais participantes da pesquisa. A profissional P8 (UBS) entende como necessário priorizar que o usuário seja acompanhado no território pelos profissionais do Ambulatório Especializado de Saúde Mental e NASF, já a participante P7 entende que os usuários devem ser encaminhados para o serviço de referência, no caso deste município, o CAPS AD, conforme pode ser visto na fala de P7:
Encaminhamos para o CAPS muitas vezes, mas tem muito usuários que pedem para serem internados, a gente não encaminha para a internação porque a nossa rede de apoio é o CAPS AD, não é internação em clínica e quem tem que fazer isso é o CAPS, então aqui a nossa rede é o CAPS e a gente encaminha para o CAPS.
Desta forma, fica claro que os profissionais da ESF percebem o CAPS AD como sua principal rede de apoio, mesmo que o usuário encaminhado para o CAPS AD apresente o desejo de realizar o tratamento em outro dispositivo da rede, como a Comunidade Terapêutica. Esta prática é demonstrada também no discurso dos profissionais de atenção à urgência e emergência, conforme relato a seguir: “A gente encaminha, ainda assim, quando é da vontade deles, né, muitas vezes a gente deixa eles passarem a noite e no outro dia pede uma ambulância e encaminha direto para o CAPS”.
Esta lógica do encaminhamento também foi evidenciada na pesquisa de Cela e Oliveira (2015), no qual se constatou que os usuários que não conseguem ter suas necessidades atendidas pela atenção primária são encaminhados para outros serviços do município. Este mecanismo de encaminhamento mútuo de usuários é um dos elementos para a efetiva reorganização das práticas de trabalho, com o intuito de promover a integração dos sistemas e das redes de saúde. Porém, esta prática ainda está sendo construída, com muitas dificuldades nos fluxos de informações e grandes fragilidades nos protocolos clínicos existentes. Percebe-se que esses encaminhamentos são realizados apenas com o intuito de diminuir a elevada demanda existente nestes dispositivos e que não há uma corresponsabilização do cuidado.
No que diz respeito à articulação da rede, os profissionais do Consultório na Rua entendem como necessário ter um dispositivo especializado que coordene o cuidado referente à população em situação de rua. Além disso, outro aspecto a ser considerado para que a articulação com a rede seja efetiva é a disponibilidade do profissional em atender estes usuários, pois há profissionais que expressam resistência em atender esta população, por falta de capacitação ou até mesmo por estigmas e preconceitos, como pode ser visto na fala de P5:
A gente está criando isso, é um processo, às vezes vai, às vezes retrocede, mesmo porque eles mesmo dizem ‘a gente não quer mais ir lá’ e daí a gente vai trabalhando tudo de novo, porque qualquer experiência negativa, isso retrocede, então para eles as experiências negativas criam uma memória também negativa e a gente também vai ter que começar tudo de novo.
Dessa forma, torna-se necessário sensibilizar os demais serviços da rede para acolher a população atendida pelo dispositivo. Essas atitudes compreendem informar, esclarecer e tornar a rede disposta às possibilidades de trabalho intersetorial, contribuindo para que o usuário transite pelos dispositivos da maneira mais autônoma possível, sem que tenha de recorrer à eCR para mediar o acesso aos serviços da rede. A partir disso, espera-se ampliar a problematização junto à rede e à comunidade referente às questões de estigma e preconceito (Brasil, 2012; Machado & Rabello, 2018).
Sob a perspectiva do CAPS AD, a articulação com a rede configura-se a partir da necessidade de realizar a alta terapêutica, na qual o usuário é encaminhado à ESF do seu território para que haja um acompanhamento longitudinal. O encaminhamento acontece também para o CAPS II do município, quando há uma demanda de usuários com transtornos mentais graves associados ao uso de substâncias psicoativas.
O dispositivo de atenção de caráter transitório encontra-se na RAPS inicialmente por meio da articulação com o serviço de desenvolvimento social, serviço este que encaminha os usuários para a internação em comunidades terapêuticas, sendo que este encaminhamento é realizado por meio de uma triagem inicial, na qual são realizados exames clínicos. A relação das comunidades terapêuticas com os serviços de urgência e emergência e com a ESF do território se constitui quando há necessidade de um atendimento emergencial, conforme pode ser observado na fala de P1: “Qualquer situação eles nos ligam e a gente ajuda, qualquer situação que nós precisamos, de repente uma consulta emergencial, de um atendimento emergencial, a gente liga se identifica e eles já nos esperam”.
Outro ponto a ser mencionado é que não há articulação entre a CT e o CAPS AD, sendo que isto se dá pela diferença de perspectiva de cuidado e estruturação de funcionamento destes dispositivos. O CAPS AD constitui-se como um serviço de porta aberta, diferente da Comunidade Terapêutica, que se pauta na internação como estratégia de tratamento.
Em conformidade com Quinderé, Jorge e Franco (2014), o trabalho realizado em rede pelas equipes de saúde necessita de intervenções com vistas a promover a articulação e o envolvimento dos diferentes serviços e setores para efetivar uma RAPS resolutiva e com qualidade da atenção à saúde. Os caminhos a serem percorridos são acionados sempre de acordo com cada caso, de maneira a não colocar em destaque apenas no uso de substâncias, pautados nas necessidades dos usuários e nos recursos disponíveis para o seu cuidado. A RAPS é inerente ao processo de trabalho em saúde, de modo que não há trabalho sem que se constitua uma rede em torno do seu objeto.
Considerações finais
De acordo com os objetivos da pesquisa, buscou-se analisar as estratégias de cuidado desenvolvidas por profissionais da RAPS aos usuários que fazem uso de substâncias psicoativas em um município do Vale do Itajaí. A partir disso, foi possível constatar que a maneira de se trabalhar o cuidado ao usuário se constitui a partir das concepções dos agentes envolvidos no processo. Tais concepções podem ser caracterizadas a partir da dualidade entre as perspectivas relacionadas à abstinência total e à redução de danos.
Em relação às estratégias de cuidado utilizadas pelos profissionais, percebeu-se que as ações se diferem de acordo com o dispositivo e sua finalidade. De modo geral, as estratégias caracterizam-se pelo acolhimento, atendimento individual, atendimentos domiciliares e compartilhados entre dois ou mais profissionais em intervenções grupais, estratégias de promoção à saúde, estratégias de prevenção ao agravo de doenças e práticas de reabilitação psicossocial.
Referente à articulação da RAPS, identificou-se que há divergência entre os profissionais no que diz respeito a qual dispositivo encaminhar o usuário. Constatou-se também que os dispositivos deste município consideram o CAPS AD como serviço de referência quando se trata de demandas relacionadas às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. No município pesquisado, há o colegiado de saúde mental, no qual participam alguns profissionais dos dispositivos pertencentes à RAPS. Este colegiado realiza reuniões intersetoriais para a discussão e construção de planos terapêuticos para os casos que estes dispositivos tenham em comum, com o objetivo de articular as ações em saúde mental, sendo este um importante componente para a articulação entre os diferentes dispositivos de cuidado.
Contudo, é possível identificar desafios e fragilidades na atuação dos profissionais pertencentes à RAPS, como as mudanças político-governamentais do país que influenciam diretamente na alteração das políticas de saúde vigentes, assim como na lógica de cuidado instituída, gerando, como consequência, alterações no processo de cuidado aos usuários. Destaca-se também a dificuldade da realização de práticas voltadas para a reinserção social e profissional, haja vista que os profissionais tendem a focar em práticas apenas com o enfoque na substância psicoativa.
Diante dos resultados obtidos, salienta-se a importância de que os profissionais compreendam o seu papel no que diz respeito ao cuidado às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, além de criar linhas de cuidado para possibilitar que o trabalho em rede seja efetivado. Para que isso aconteça, sugere-se a realização de educação permanente voltada para a temática do uso de substâncias psicoativas e um protocolo-base de atendimento referente a essa demanda, com o objetivo de potencializar a articulação da rede como um todo.
Acerca das limitações da pesquisa salienta-se que não se realizou a coleta de dados com profissionais da atenção hospitalar e estratégias de desinstitucionalização, de modo a não contemplar todos os dispositivos de cuidado da RAPS. Assim, sugere-se que nas próximas pesquisas seja considerado este ponto de atenção. Recomenda-se também a investigação acerca das estratégias de cuidado da RAPS a partir da perspectiva dos gestores de saúde e dos usuários, para que tais resultados possam gerar reflexão sobre a constituição do cuidado na RAPS a partir da ótica de todos os atores envolvidos no processo.
Referências
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Sobre as autoras:
Mariele Maciel da Silva: Especialista em Saúde pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: marielem@outlook.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-9898-0243
Roberta Borghetti Alves: Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Atualmente, é professora do curso de Psicologia e do Mestrado Profissional de Psicologia da UNIVALI. E-mail: rborghettialves@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1866-699X
Recebido em: 28/09/2020
Última revisão: 08/06/2021
Aceite final: 08/07/2021
1 Endereço de contato: Rua Professora Maria Flora Pausewang, s/n, Trindade, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, CEP: 88036-800. Telefone: (48) 3721-8284. E-mail: marielem@outlook.com
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v13i3.1529