Efeitos e Dilemas da Violência na Produção de Cuidado nas Estratégias de Saúde da Família

Effects and Dilemmas of Violence in the Production of Care in Family Health Strategies

Efectos y Dilemas de la Violencia en la Producción del Cuidado en las Estrategias de Salud de la Familia

André Amorim Martins

Vitória Silva Martins

Josiane Aparecida Elias D’ Alessandro

Universidade do Estado de Minas Gerais

Resumo

A violência engloba vários fatores e se caracteriza como um grande desafio para trabalhadores da área da saúde. No âmbito da gestão em saúde, o Ministério da Saúde define a Ficha de Notificação de Violências e Agravos como um instrumento de uso compulsório por parte dos profissionais da área, para mapeamento de casos e criação de estratégias de atuação. Este estudo buscou analisar, por meio de Grupos Focais com equipes de Estratégia de Saúde da Família, a temática da violência aliada ao preenchimento das Fichas de Notificação. Os resultados da pesquisa apontam para a subnotificação de casos de violência e dilemas éticos em torno do preenchimento, fatos que prejudicam de forma substancial a produção do cuidado pelas equipes. Portanto, vislumbra-se que as equipes de Estratégia de Saúde da Família necessitam de capacitação e compreensão sobre a intersetorialidade nas ações sobre violências.

Palavras-chave: violência, Estratégia de Saúde da Família, ética, Psicologia da Saúde

Abstract

Violence encompasses several factors and is characterized as a major challenge faced by health workers. In the context of health management, the Ministry of Health defines the Violence and Injury Notification Form as an instrument for compulsory use by professionals in the area, for mapping cases and creating action strategies. This study sought to analyze, through Focus Groups with Family Health Strategy teams, the theme of violence and the filling out of the Notification Forms. The research results point to the underreporting of cases of violence and ethical dilemmas around filling, which substantially impairs the production of care by the teams. Therefore, it is envisaged that the Family Health Strategy teams would need training and understanding about the intersectoriality in actions on violence.

Keywords:

Keywords: violence, Family Health Strategy, ethics, Health Psychology.

Resumen

La violencia abarca varios factores y se caracteriza como un gran desafío que enfrentan los trabajadores de la salud. En el ámbito de la gestión en salud, el Ministerio de Salud define el Formulario de Notificación de Violencia y Lesiones como un instrumento de uso obligatorio por parte de los profesionales del área, para el mapeo de casos y la elaboración de estrategias de acción. Este estudio buscó analizar, a través de Grupos Focales con equipos de la Estrategia de Salud de la Familia, el tema de la violencia y el llenado de los Formularios de Notificación. Los resultados de la investigación apuntan para el subregistro de casos de violencia y dilemas éticos en torno al llenado, lo que perjudica sustancialmente la producción del cuidado por parte de los equipos. Por lo tanto, se prevé que los equipos de la Estrategia de Salud de la Familia necesiten capacitación y comprensión sobre la intersectorialidad en las acciones sobre la violencia.

Palabras clave: violencia, Estrategia de Salud Familiar, ética, Psicología de la Salud

Introdução

O tema violência tem sido reconfigurado diante da complexidade dos problemas de saúde e pode ser acentuado de acordo com fatores relacionados ao estilo de vida, condição econômica, ambiente e qualidade de vida dos sujeitos. A introdução deste tema na agenda da saúde foi necessária a partir do atendimento de lesões, sequelas e óbitos causados por atos de violência. Por meio de técnicas biomédicas, estas ocorrências passaram a ser ­incluídas nas categorias de Classificação Internacional de Doenças (CID) como “causas externas”. O tema da violência ganhou mais relevância devido a ações de movimentos sociais, como os de combate aos agravos contra crianças, mulheres e idosos. Movimentos feministas, que reforçaram o diagnóstico situacional, dando visibilidade à violência de gênero e suas graves consequências psicológicas, físicas e danos à integridade das vítimas (Minayo, 2007).

A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) define violência como: “o uso intencional de força física ou poder, real ou como ameaça contra si próprio, outra pessoa, um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tem grande probabilidade de resultar em ferimentos, morte, danos psicológicos, desenvolvimento prejudicado ou privação” (p. 5). O “uso do poder” também pode incluir a negligência ou atos de omissão, além de atos violentos mais óbvios de perpetração. Assim, “o uso da força física ou do poder” deve ser entendido de forma a incluir a negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e psicológico, bem como o suicídio e outros atos de auto abuso (OMS, 2002, p. 5).

A OMS apresenta as tipologias de violência, sendo classificadas em três categorias, de acordo com o indivíduo que a comete: (a) violência autoprovocada; (b) violência interpessoal (aquela em que o indivíduo incorre em si mesmo e/ou em um pequeno grupo − em familiares, na maior parte dos casos); (c) violência coletiva (social, política e econômica). Já os atos violentos são classificados como abusos e maus-tratos, sendo os abusos apontados como físicos, psicológicos e sexuais, e os maus-tratos como negligência e falta de cuidados adequados (OMS, 2002).

A construção de ações estratégicas de saúde e de combate à violência passou por longos processos de estudo e pesquisa. Por meio do levantamento de informações, mapeamento de situações de violência, construção de modelos de atividades de prevenção, acompanhamento e atendimento dos casos, foi possível produzir um instrumento capaz de mensurar a quantidade de agravos. A Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas é uma importante ferramenta utilizada pela vigilância do sistema de saúde, constante no rol de procedimentos do Ministério da Saúde, bem como na Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violência (Ministério da Saúde, 2002), no programa “Por uma Cultura de Paz, Promoção da Saúde e Prevenção da Violência” (Ministério da Saúde, 2009) e na Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) (Ministério da Saúde, 2015).

O preenchimento da Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas é compulsório aos profissionais da saúde e está previsto em legislação específica, que justifica sua importância. Segundo o Ministério da Saúde (2017), as notificações realizadas possibilitam o mapeamento da magnitude, gravidade e situação epidemiológica dos casos de violência, viabilizando a construção de estratégias de intervenção, ou seja, os serviços de saúde podem contribuir para o amadurecimento e implementação de novas iniciativas de enfrentamento das violências, uma vez que a Atenção Básica reúne condições para articular com os demais setores da ação integral à saúde (Mendonça et al. 2020). Tal notificação não tem função de denúncia, mas de garantia de direitos, visando registrar a situação identificada ou notificada como violência, para assim produzir informações epidemiológicas e fortalecer as ações da rede de proteção social (Laguardia et al., 2004; Ministério da Saúde, 2007).

Martins et al. (2016) identificaram que, em nível municipal, as políticas públicas de saúde voltadas para a resolução de demandas de violência denotam a falta de ações viáveis, efetivas, além da transferência de responsabilidades entre os setores e as secretarias da rede pública, dentre eles: o Conselho Tutelar, Assistência Social ou Polícia. Os autores identificaram ainda que, em diversos casos, a opressão da gestão foi uma possível forma encontrada para “solucionar” o problema.

A presente pesquisa teve como objetivo compreender o processo de notificação/investigação das violências nas Estratégias de Saúde da Família (ESF), bem como os dilemas e efeitos que recaem nos processos de cuidado realizados pelos profissionais.

A Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas, ferramenta que integra o sistema de ações, que visa facilitar o processo de investigação e criação de estratégias de enfrentamento da violência, esbarra em diversas complexidades referentes à produção de dados sobre o tema. Embora a produção de políticas públicas demonstre estar consolidada, não se expressa da mesma forma na estrutura do funcionamento prático.

O caminho a ser seguido pretende aprofundar a investigação e problematização sobre os processos de micropolítica que produzem tensionamentos e disputas na área da saúde sobre a violência, principalmente no que diz respeito à produção de cuidados, que é vista como deficitária no cenário da pesquisa, devido à complexidade e amplitude de conceitos diferentes e alta subnotificação.

Percurso Metodológico

O contato com o campo de estudo deu-se por meio de programas de estágio obrigatório que possibilitaram o vínculo da instituição de ensino e dos pesquisadores com o sistema de saúde da região onde ocorreu a pesquisa. A partir desse contato, surgiram projetos e possibilidades de ampliar a visão sobre como são construídas as práticas de saúde nas Estratégias de Saúde da Família, onde os estagiários eram inseridos. Com as vivências no território, observou-se a alta prevalência de situações de violência e baixa produção de ações sobre o tema, tanto no que se refere à notificação quanto no processo de construção de cuidado.

De acordo com Carnut (2017), cuidado em saúde é uma função que os profissionais de todas as categorias da área da saúde devem considerar e inserir em sua prática, em que “cuidado”, nesse sentido, não se refere ao conceito de intervenções, mas sim de interação com o sujeito a que se propõe cuidar, de modo que possibilite a interpretação do binômio saúde-adoecimento por meio da valorização da subjetividade do sujeito.

Para compreender o processo de construção de cuidado e investigar como o tema da violência era inserido no cotidiano das Estratégias de Saúde da Família, utilizou-se o Grupo Focal (GF), que se caracteriza como uma técnica de pesquisa qualitativa, não diretiva. Este método visa colher dados a partir das interações grupais sobre determinado tema. Utiliza um roteiro semiestruturado que busca estimular debates, memórias e dados de natureza focada, produzindo conteúdos de forma exploratória, por meio da análise da linguagem e interações grupais, de forma a auxiliar na compreensão do fenômeno estudado (Gondim, 2002).

A aproximação da realidade estudada, mediante interpretações das pessoas envolvidas no contexto e das interações produzidas pelo GF, facilita a emersão de pontos de grande relevância para a discussão de temáticas como a da violência. Deste modo, o GF pode ser considerado uma ferramenta de grande potencial para a coleta de dados e produção de pesquisa científica na área da saúde (Souza et al., 2019).

No município pesquisado, havia, em 2017, 32 ESF no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). O critério de seleção das unidades para a realização do GF foi: verificar em quais equipes havia o cadastro completo de profissionais na ESF, agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliar ou técnico(a) de Enfermagem, enfermeiro(a), médico(a). Ao final do processo, foram selecionadas 26 unidades para a realização dos Grupos Focais, sendo seis unidades excluídas, por não apresentarem o cadastro de todos os profissionais acima citados. Realizaram-se 13 GF em 2018 e 13 GF em 2019. A definição das Equipes de ESF ocorreu por meio de sorteio pelo site www.sorteador.com.br. As unidades que participaram da pesquisa compõem tanto a região urbana quanto a região rural do município em questão.

O contato com as unidades de saúde para marcar os GF foi feito por meio de ligações telefônicas, cujos contatos estavam disponibilizados nas plataformas digitais da prefeitura da cidade. No entanto, foram encontrados entraves durante o processo, sendo que, em algumas unidades, não havia linha telefônica, e outras passavam por manutenções. Em alguns casos, a forma de contato com a UBS foi identificar trabalhadores daquelas unidades que concordassem intermediar os agendamentos com a equipe. Assim, a pesquisa pode alcançar todas as UBS propostas.

Os GF ocorreram concomitantes às datas e aos horários das reuniões mensais da equipe, com o intuito de não prejudicar a dinâmica e o funcionamento da unidade e otimizar a obtenção de dados com o envolvimento do maior número possível de trabalhadores. Cada GF contou com o número mínimo de quatro e máximo de 15 participantes. Ao final, tivemos a presença de 204 participantes. A grande maioria dos participantes era mulheres, e, dentre elas, muitas eram agentes comunitárias de saúde que residiam na região da pesquisa e apresentaram conteúdos pertinentes para a produção da pesquisa, como a história de construção e desenvolvimento dos bairros e das Unidades de Saúde e Estratégias de Saúde da Família, perfil populacional, entre outras características importantes para compreender o funcionamento do território.

A realização dos GF contou com a participação de um moderador, que conduziu as discussões e era responsável pela gravação. Havia também pesquisadores responsáveis pela observação da equipe durante a realização do GF, sua interação e discussão sobre o tema, coleta de dados das características e estrutura da UBS e localização no território. Como materiais, foram utilizados: gravador digital de áudio, blocos de notas, canetas e ferramentas eletrônicas para reprodução de áudio e transcrição dos dados.

As gravações em áudio dos encontros foram autorizadas pelos participantes por meio do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que também autorizou sua transcrição. As transcrições dos dados sobre a equipe e sobre a unidade foram documentadas e armazenadas para análise e construção do artigo. Esta pesquisa recebeu apoio via Editais PAPq/UEMG 2017 e PIBIC/UEMG 2018, aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa UEMG CAAE: 79992417.3.0000.5115.

O processo de análise de conteúdo foi realizado segundo o método de Análise Temática, que consiste em:

Descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado. Consistia na verificação da frequência de repetição da unidade de significação e a presença de determinados temas denota estruturas de relevância, valores de referência e modelos de comportamento presentes ou subjacentes no discurso (Minayo, 2014, p. 316).

Realizou-se o estudo minucioso e exaustivo dos áudios e transcrições dos dados da pesquisa de campo. Nesta análise, foi possível identificar as relações que aproximam as ESF, tanto no que diz respeito à dinâmica de trabalho nas diferentes regiões do município em interface com a violência quanto pelas características socioeconômicas e pelos fatores potencializadores da violência nas áreas atendidas pelas ESF. Estas informações nos permitiram conhecer os atravessamentos que permeiam o cumprimento dos protocolos sobre violências no território e os motivos que podem justificar o fenômeno das subnotificações no município pesquisado.

Os dados obtidos no processo de pré-análise foram organizados em tabelas de acordo com as categorias de violência extraídas dos materiais e das informações resultantes do trabalho de campo. Foram destacados os principais tipos de violência explicitados pelas equipes de saúde no cotidiano de trabalho com a comunidade (Tabela 1). Desta feita, pode-se dar início ao processo de interpretação das informações e comparação dos dados obtidos na primeira etapa da pesquisa.

A exploração do material permitiu a delimitação de palavras-chave e o conhecimento mais aprofundado dos contextos que envolvem o tema investigado, nesse caso, as notificações de violência no município, a falta destas e como a questão da violência impacta o desenvolvimento do processo de cuidado proposto pelas equipes das Estratégias de Saúde da Família. A escolha das regras de contagem de palavras relacionadas ao tema da violência teve como critério o agrupamento de palavras e características que se encaixam em conceitos de violência previstos em lei, como no caso da Lei Maria da Penha, n. 11340/2007 (violência contra mulheres); Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8069/1990 (violência contra crianças e jovens); Estatuto do Idoso, Lei n. 10741/2003 (violência contra o idoso); dentre outras diretrizes que tratam de violência e suas consequências biopsicossociais.

Resultados e Discussão

Os temas suscitados durante a organização do material foram: o desenvolvimento de ações pela ESF nos casos de violência e a relação da equipe de saúde com os usuários; a compreensão do processo de cuidado das equipes de Estratégia de Saúde da Família e a implicação dos profissionais da equipe nos casos identificados como violência; a violência sofrida pelos funcionários; a atuação da gestão municipal de saúde sobre a violência e a produção de políticas públicas de saúde.

Tabela 1

Dados Sobre as Características Relatadas nos GF Sobre as Violências em 2018 e 2019

Tipos de Violências Citadas Durante os GF

Quantidade

Violência verbal contra a equipe de saúde

20

Violência contra mulher

17

Violência contra idoso

14

Homicídio

13

Violência contra criança

9

Assalto

9

Violência intrafamiliar

8

Violência doméstica

7

Violência sexual

7

Violência psicológica contra equipe de saúde

7

Suicídio

6

Violência física

5

Violência física contra equipe de saúde

1

Violência da equipe de saúde contra usuário

1

Tipo de Violência Prevalente no Território

Violência doméstica

21

Violência verbal contra a equipe de saúde

17

Assalto

7

Violência psicológica contra a equipe de saúde

6

Homicídio

3

Violência sexual

1

Fichas de Notificação

Tem conhecimento da Ficha de Notificação e não notifica

20

Tem conhecimento da Ficha de Notificação e notifica

3

Não tem conhecimento da Ficha de Notificação

1

Fatores Potencializadores da Violência

Tráfico de drogas

14

Uso abusivo de álcool e outras drogas

6

Situação de vulnerabilidade social

5

Rota facilitadora de fuga para assaltantes

2

Tipos de Violências Encontradas no Território Pesquisado

Como apresentado na Tabela 1, foram encontrados vários conceitos de violências relatadas e interpretadas de acordo com os tipos de violência definidos na Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas. Isto pode estar atrelado ao fato de a violência ser um fenômeno complexo, multifacetado e apresentar especificações amplas. Com a realização dos Grupos Focais, a equipe pesquisadora buscou entender o que era compreendido como violência, como se dava o processo de construção de cuidado e intervenções sobre os eventos que ocorreram na Equipe de Saúde da Família:

Participante 39: “Eu não sei se cabe na pesquisa de vocês, mas violência verbal tem demais de paciente com o pessoal da recepção. . . . Eu acho que é isso que a gente falou, não só fisicamente, mas moralmente também”.

Participante 158: “Desrespeito, falar mais alto . . . o tom que o paciente se expressa. É necessariamente não logicamente violência física, mas é violência, né, desrespeito, agressividade e o jeito dele se colocar com você”.

Participante 188: “Violência é qualquer ação que possa provocar danos físico ou mental a terceiros ou a si próprio”.

Foram citados 14 tipos de violência, as quais foram enquadradas como (a) violências interpessoais e autoprovocadas (violência física, homicídio, suicídio, assalto e violência ­sexual); (b) violência doméstica/intrafamiliar (violência contra a mulher, violência contra o idoso, violência contra criança); (c) violência extrafamiliar/comunitária (violência verbal contra equipe de saúde, violência psicológica contra equipe de saúde, violência física contra equipe de saúde, violência, assaltos e outras ocorrências que atravessam dois ou mais conceitos e extrapolam as definições preestabelecidas).

A Utilização das Fichas de Notificação, seus Entraves e Atravessamentos

A ESF é um equipamento de saúde tido como uma possibilidade potencial de reorganização do modelo assistencial em saúde e tem como proposta construir práticas de saúde, promovendo a integralidade de ações, por meio da participação na comunidade e do acolhimento das questões objetivas e subjetivas das pessoas em seu contexto social, propondo estratégias que proporcionam o cuidado de uma forma mais abrangente (Santos et al., 2018). No início da pesquisa, era esperado, pelos pesquisadores, que a Estratégia de Saúde da Família fosse vista pela população como uma porta de entrada para o acolhimento em casos de violência, uma vez que tem como objetivo o cuidado integral da família, com ações de prevenção e promoção da saúde (Vieira Netto & Deslandes, 2016).

No entanto, com a realização dos Grupos Focais, por meio da análise das falas das participantes da pesquisa sobre seu trabalho e as implicações sobre a temática da violência, foi constatado, pela equipe pesquisadora, que a ESF tem conhecimento somente da entrada de pacientes com suspeita de violência, quando estes já passaram por outros pontos da rede, tais como em equipamentos da atenção secundária e terciária e/ou por meio dos registros dos agravos em órgãos da Segurança Pública, como ilustra a fala da participante 89:

Tinha uma enfermeira aqui; primeiro passa para a enfermagem, pois são elas que fazem os acolhimentos, quando a gente vê que é um caso que precisa de maior discrição as meninas já fecham a porta e me chamam, contam o caso. A gente vê quais são os recursos que a gente tem. Antes a gente escrevia o caso e mandava para a UPA. Atualmente mudou, nós temos que entrar em contato com o [nome do hospital] e referenciar um assistente social, e lá eles fazem os atendimentos.

Após a análise dos dados, verificou-se que os casos identificados ou relacionados à violência são encaminhados diretamente para as unidades de atendimentos sentinelas, como a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e hospitais gerais, que recebem os casos de urgência e emergência por violência. As equipes dos ESF ficam responsáveis pelo acompanhamento do caso e das condições de saúde do usuário a posteriori.

As equipes participantes citaram a falta de respaldo da rede de saúde como um todo. Os profissionais demonstraram grande insatisfação na condução dos casos e na forma com que outros setores da rede abordam o tema. Foi percebida dificuldade na condução dos casos para outros pontos assistenciais, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), o que impacta o fluxo de notificações e a produção de ações intersetoriais para o enfrentamento dos casos de violência.

Silva e Maeta (2010) ressaltam a necessidade de uma articulação muito bem construída entre as redes de atenção e de promoção de saúde com outros setores, como Educação, Assistência Social, Conselho Tutelar, Delegacias, Defensoria Pública e Ministério Público, já que, por meio desta articulação, espera-se a circulação das informações de fato e a geração de ações de intervenção possam se converter em garantia de direitos, prevenção às violências e promoção qualidade de vida e cidadania, um dos grandes desafios enfrentados pelos gestores do SUS.

Dentre os dilemas éticos enfrentados pelas equipes de saúde, em especial pelos profissionais que realizaram a notificação em algum momento de sua atuação profissional, estão presentes três principais queixas: a) falta de ética: quando é feito o preenchimento da Ficha de Notificação, os profissionais responsáveis pela continuidade da abordagem fazem perguntas e pedem esclarecimentos dos motivos de o caso ter sido notificado, apontando incoerência em sua postura, visto que o preenchimento é compulsório; b) falta de sigilo: os trabalhadores envolvidos nos processos de manejo dos casos não mantêm o sigilo dos usuários e dos trabalhadores que realizaram o preenchimento, reforçando a precariedade de capacitação profissional e comunicação intersetorial; e c) medo de retaliação: os profissionais se sentem acuados, com medo de serem expostos, sofrerem julgamentos, constrangimento ou até mesmo violências, tanto por parte dos órgãos responsáveis pela demanda como pelos usuários aos quais prestam atendimento em caso de violência.

A alta rotatividade de profissionais contratados foi outro ponto a ser destacado durante a realização do GF e que refletiu no trabalho das ESF, prejudicando também o fluxo das notificações. Foram encontradas equipes completas e duradouras que acompanharam o desenvolvimento dos bairros. Em outros casos, equipes incompletas foram encontradas, com contratações provisórias, situação motivada por questões salariais e falta de concursos públicos. Fatos estes que, segundo os profissionais ouvidos, têm estreita relação com o encerramento do Programa Nacional dos Mais Médicos, diminuindo drasticamente o número de profissionais médicos atuando nas ESF.

A participante 189 discorre a respeito da situação vivenciada pela equipe:

É porque a gente está sem médico desde fevereiro, então deve ter uns 3 meses que está vindo médico de outras unidades uma vez por semana, pra dar um apoio, porque até anterior a esse período a gente estava sem nenhum. Então assim, desde fevereiro a unidade está sem médico . . . da equipe não tem, né, aí a gente tem que tentar com as outras unidades.

A participante 123 também relata:

Aqui estamos com falta de RH, porque deveria ter um dentista, auxiliar de dentista e um clínico de oito horas e, além disso, a gente deveria contar com o serviço de fisioterapia e psicologia. Só que há cinco meses, quase seis já, a gente tá sem médico, a fisioterapeuta foi deslocada e atende agora em unidade básica, e a gente tem que encaminhar nossos usuários; o psicólogo de referência é o [nome do profissional], ele atende no [nome do bairro] e dentista sem previsão. Então a gente tá mais um PACS, né, enfermeiro, técnico e ACS.

A capacitação continuada dos profissionais também foi citada como um complicador, seja para atendimento de demandas complexas, como no caso da violência, seja por outros assuntos que dizem sobre o processo de cuidado. Os profissionais participam de reuniões organizadas pela Secretaria de Saúde, no entanto, segundo eles, os encontros não são suficientes para oferecer suporte técnico em determinadas questões. Sobre a violência, os profissionais alegam não receberem nenhuma formação padrão pela Secretaria de Saúde sobre a Ficha de Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas e não têm conseguido sustentar a continuidade de programas como a Rede Nacional de Prevenção de Violências da Saúde e Cultura de Paz.

A participante 106 conta que:

. . . a enfermeira só comentou por alto e a gente falou assim: “É obrigado a notificar”. Aí ela falou: “Ela falou pra não falar”. E a gente ficou sem saber, a gente não tem treinamento pra isso, a gente nem sabe como, só deixaram a ficha: “Tá aqui ó, a ficha de notificação”, e nem falaram mais nada e foram embora . . . Desde que eu entrei tem essa ficha, mas foi desse jeito, deixaram a ficha, “Como preenche?”, “Não sei não, deixaram aí”. . . foi assim, não falaram nada.

Fatores Potencializadores de Violência

A realização da pesquisa nos possibilitou o contato com a(s) diversidade(s) na realização dos atendimentos feitos pelas equipes de ESF do município pesquisado, mediante observação e coleta de depoimentos dos participantes a respeito das violências e dos diferentes fatores socioeconômicos que podem contribuir e potencializar a ocorrência dos agravos. Grande parte das equipes visitadas relatou que o tráfico de drogas é uma realidade na comunidade, assim como a criminalidade, o uso abusivo de álcool e outras drogas, vulnerabilidade social e falta de infraestrutura na periferia (rua sem calçamento, falta de água, difícil acesso ao transporte etc.).

A participante 154 conta sobre a situação de vulnerabilidade social que a população enfrenta:

Muita gente da própria periferia de [nome da cidade] mesmo, o povo pobre do bairro, por exemplo, do [nome do bairro]. Ganhou lote aqui ou o prefeito mandou casinha. Concentra aqui uma população muito pobre. O que vejo nesse bairro é isso. Hoje em dia, não. Tem o Minha Casa Minha Vida, o condomínio, veio um pessoal a mais pra cá. Mas a maioria do bairro que você vê é um pessoal pobre, mesmo, que ganhou o terreno, que o prefeito mandou . . . . Tanto é que o bairro não tem saneamento básico, é um bairro que ainda não tem rede de esgoto. Tem rede de esgoto só na [rua] principal.

Os profissionais relataram algumas situações vivenciadas, entre elas, o convívio com o tráfico de drogas, porém enfatizando que, apesar da existência da venda de drogas nos bairros, não havia problemas de relação entre as ESF e os usuários ou entre aqueles ligados ao tráfico. Os usuários de álcool e outras drogas utilizam as UBS para acessar os recursos oferecidos pelo serviço, dentre eles, o oferecimento gratuito de preservativos, aferição de pressão, água, vacinas, medicamentos etc. A insegurança gerada pela criminalidade também é uma questão relatada em alguns GF. Segundo alguns participantes, essa insegurança afetava, mesmo que de forma indireta, o trabalho das equipes. A criminalidade citada se apresenta na forma de assaltos às residências no bairro, furtos nas UBS, além do fato de que algumas áreas são vistas como rotas facilitadoras de fuga.

A participante 163 fala sobre a realidade vivida no contexto de trabalho:

[Assalto] dentro da unidade também . . . Muito, tanto é que na área que eu atuo, eu ando com a colega de trabalho, porque é onde tem mais ocorrência de assalto à mão armada. Aí é uma dando segurança pra outra, pelo menos pra gritar, né?.

A falta de investimento social também ocasiona uma série de fatores que impactam as condições de desenvolvimento e qualidade de vida dos cidadãos:

Participante 151:

. . . Pela condição socioeconômica da população, eles são muito dependentes daqui. Eles solicitam muito, eles demandam muito. Então, assim, às vezes, é uma dipirona, um paracetamol, tudo, né? Porque, assim, pra eles poderem se locomover até o centro fica muito caro, quatro reais, tipo assim. Eles veem que aqui não tem médico e tem que encaminhar pra UPA, aí: “Ah, não tenho dinheiro pra ir pra UPA”; encaminha pro [nome da unidade ESF]; “Ah, não tenho dinheiro pra ir pro [Nome do hospital]”; é uma população muito carente mesmo, em questão de tudo. Eu fiz residência aqui em 2011 e 2013, saí e fui pra outra unidade há um tempo. Eu percebo aqui a questão de estudo, um nível de escolaridade bem baixo. A média de filhos também é alta, de quatro filhos. A gente tem mulheres de oito, dez filhos. A mãe com cinco filhos e as duas filhas mais velhas com menino também . . . é engraçado que, assim, aqui eu fico mandando todo mundo pro planejamento familiar, aí eu vejo uma mulher mais jovem e falo pra colocar o DIU. Elas dizem: “Não, que isso, o menino vai nascer com isso na cabeça, dá câncer, meu marido falou”. Aí você vê que falta estudo, sabe, são pessoas que estão imersas na ignorância e na falta do conhecimento. É muito difícil ter um trabalho educativo com essa população.

Diversos discursos coletados nos GF permitiram a identificação de aspectos relacionados à violência estrutural, que tem a exclusão social como elemento-chave no que se refere à falta de acesso a serviços, direitos e condições básicas de desenvolvimento geral, bem como uma relação estreita com as violências cotidianas que colocam em destaque o sofrimento social.

Relação das Equipes com Usuários e os Desafios para a Promoção de Cuidado e Prevenção da Violência

Com relação ao trabalho desenvolvido pelas ESF com as comunidades, foi percebido um relacionamento satisfatório, em que a maioria das equipes relatou esforço para estabelecer o vínculo de confiança com os usuários no que se refere à promoção geral em saúde.

Sobre o atendimento das demandas relacionadas à violência, destacou-se o sentimento de impotência nos relatos da equipe, pois, embora seja um tema amplamente divulgado, paradoxalmente, revela-se velado e pouco trabalhado no cronograma anual das ações em saúde promovidas pela gestão municipal. Os membros das equipes relataram falta de preparo para lidar com situações de conflito, dificuldades no acolhimento e na condução dos casos envolvendo violência. Porém, mesmo com as dificuldades apontadas, os casos identificados como violência foram acolhidos, e as equipes conseguiram oferecer algum suporte dentro das suas possibilidades.

Como relata a participante 146:

E até com algumas instituições, a gente acaba até perdendo as esperanças, né? Essa situação da menina, mesmo, que a paciente que tem deficiências cognitivas e reaplica os abusos, a menina foi para um abrigo, ficou uns dois meses, e aí o pessoal da assistência social foi visitar eles e falaram que o que viram lá era pobreza e que pobreza não era um problema social e que não justificava o abrigo da menina, meio que “devolveram” a menina.

No entanto, foi relatado que há subnotificação na maioria dos casos, fazendo com que essas ocorrências não cheguem a outras instâncias de atendimento e, dessa forma, não recebam a visibilidade necessária para a promoção de debates que são fundamentais na educação permanente, para criação de ações de prevenção e enfrentamento do fenômeno das violências.

De acordo com a Tabela 1, os resultados demonstraram a baixa utilização da Ficha de Notificação de Violências pelas equipes entrevistadas, motivada por vários fatores relatados no decorrer da realização dos GF. O relato mais recorrente foi o medo de retaliação e intimidação por parte dos usuários da unidade envolvidos nos casos de violência, pois, em várias situações, são pessoas que estão implicadas em atos criminosos, como o tráfico de drogas, assaltos, homicídios, entre outros.

A participante 12 relata:

E assim, aqui é um bairro violento pra elas, por questão de tráfico, de roubo. Quando você fala que trabalha no bairro [nome do bairro], o povo assusta . . . Aqui é tido como um bairro perigoso. E essa questão que a [nome da ACS] falou que eu acho importante também, são os ACS, a gente que tá aqui, a gente é muito vulnerável, então, a gente entrar e fazer uma denúncia, alguma coisa, tem que ter cuidado. Igual, a [nome da ACS] tá na casa do paciente todo dia. Como que ela faz uma denúncia e volta lá depois? Quem tá correndo o risco é ela.

O temor de perder a confiança da comunidade no manejo dos casos de violência é tido como um tema muito delicado, uma vez que são assuntos velados, e os usuários depositam sua confiança quando relatam o fato para um trabalhador da saúde.

A participante 12 conta uma experiência a respeito:

A gestante veio com sangramento, falando que tinha apanhado . . . Isso tem mais tempo, mas a gente sabe que está apanhando agora, mas ela mesma não falou. Inclusive ela está até faltando às consultas, deve ser porque está notificada . . . Tem muita violência com criança, né?

A participante 15 também conta sobre a violência velada: “Tem muita [violência] contra mulher também, só que o pessoal fica calado. Eu posso enumerar pelo menos 20 mulheres na microárea que apanham há 10, 20 anos”.

A perda de vínculo entre os usuários e os ACS também é um fator para a não notificação. A construção do vínculo, sobretudo na atenção primária, proporciona maior estímulo à autonomia dos usuários das ESF e faz com que este se reconheça nos processos em saúde, ampliando a eficácia das ações e propiciando maior participação dos usuários e servidores nos serviços oferecidos (Schimith & Lima, 2004).

A notificação é vista pelos profissionais com um teor de denúncia, e não como uma ferramenta para a produção de dados, fator que marca um dilema ético sobre a utilização da ficha por parte dos profissionais, que ultrapassa o ato de fazer ou não o seu preenchimento. Esta visão policialesca é relatada principalmente pelos(as) agentes comunitários(as) de saúde, que são quem lidam diretamente com a população do território. Estes profissionais se veem acuados e impotentes diante do contexto social desfavorável à notificação/denúncia, uma vez que, em muitas regiões visitadas, este cenário de violências na comunidade é intenso (crime organizado, milícias etc.). Tais aspectos sociais minam as resistências destes trabalhadores, e estes acabam sucumbindo a temer por suas vidas e seus empregos.

Considerações Finais

Garantir o cumprimento dos protocolos das políticas públicas de saúde, como no caso do preenchimento compulsório da Ficha de Notificações de Violências, não é uma tarefa fácil, por envolver diversos fatores. As limitações na investigação dos casos de subnotificação estão presentes durante todo o percurso da pesquisa, desde o contato para realização dos Grupos Focais, ao tabu em se falar sobre o tema, questões que envolvem a micropolítica dos territórios das Estratégias de Saúde da Família, a gestão municipal e questões relacionadas ao contexto político vivido durante o período de realização da pesquisa.

O período da pesquisa (2017-2020) foi marcado por desmanches de políticas públicas de saúde, inclusive, pelo encerramento do programa Mais Médicos. O cancelamento do programa pelo governo eleito em 2018 atingiu o Brasil como um todo e, no caso da região pesquisada, muitas unidades de saúde ficaram desassistidas, e as autoridades responderam ao acontecimento com medidas que reforçam a rotatividade de médicos, que são contratados e desvinculados de uma unidade para outra na tentativa de fazer um balanceamento, a fim de sustentar as medidas exigidas pelo Ministério da Saúde de credenciamento. Ou seja, aspectos que produziram impactos diretos e indiretos na produção científica e na produção de cuidado pelos profissionais de saúde, que sofreram a consequência das mudanças na organização do trabalho, gestão de recursos e produção de cuidados.

A partir do conhecimento da realidade de vulnerabilidade dos trabalhadores em saúde, é necessário exaltar a importância, a responsabilidade e o esforço no processo de produção e planejamento de estratégias de enfrentamento da violência realizada pela classe dos inúmeros atravessamentos e entraves que podem ser equiparados à complexidade do fenômeno da violência.

As Políticas de Saúde precisam ser reafirmadas e reconhecidas como Políticas Sociais, visto que ambas têm como fundamento, além da garantia de melhores condições sanitárias para a população, o amparo dos sujeitos e das coletividades, visando à garantia de direitos primordiais que são inerentes à cidadania e estão previstos na constituição brasileira, por meio de políticas públicas e investimentos no desenvolvimento social.

A Saúde precisa ser colocada como uma prioridade do Estado, mas também das gestões municipais, que têm autonomia garantida pela política de descentralização do SUS. Para isso, é necessário avaliar a modalidade de proteção social oferecida pelo governo vigente, que estrutura a forma como as diferentes instituições e políticas constroem e asseguram os benefícios para os usuários dos sistemas de proteção social.

As Políticas Públicas de Saúde, assim como outras políticas sociais, envolvem uma série de fatores determinantes, por vezes contraditórios e imersos em disputas de poder, criação de valores, tensões, disputas de forças e de interesses que se sobrepõem na forma de fazer gestão e construir práticas de saúde. A complexidade presente nesse contexto reflete na realidade apresentada como resultado desta pesquisa: reprodução de fatores potencializadores da violência e falta de investimento social para estruturação da rede de saúde e de proteção social.

O preenchimento da ficha de Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada foi tratado pelos profissionais de saúde participantes da pesquisa como uma ferramenta de perspectiva policialesca, ou seja, com conotação de denúncia. No entanto, o ato de notificar faz parte de uma Política Pública que visa à compreensão de um cenário, além de possibilitar o mapeamento situacional e a criação de estratégias de intervenção e enfrentamento das violências.

Com a realização do Grupo Focal nas ESF do município, foi possível inferir que a subnotificação de violência está ancorada na falta da educação permanente, da capacitação, além do medo dos servidores da saúde sofrerem punições, o que acaba se sobrepondo ao papel ético no cumprimento dos procedimentos obrigatórios sobre a questão da violência. O investimento em capacitações neste processo de trabalho se torna imprescindível para a criação de estratégias de intervenção e aprimoramento de ações que visam à garantia de um serviço mais humanizado, de cuidado integral e ações intersetoriais que garantam o funcionamento do trabalho em rede de atenção − desta forma, melhorando entre os trabalhadores e com os usuários.

Observou-se que o problema da violência é consequência de uma série de fatores que envolve uma administração pública deficitária, com problemas estruturais que produzem uma sucessão de circunstâncias que afetam o trabalho dos servidores de saúde e suas vidas de um modo geral. A falta de investimentos sociais para a construção de condições mais dignas de desenvolvimento para a população recai sobre a baixa estrutura da rede de saúde e de outros setores públicos relacionados, o que deixa de dar visibilidade para questões sociais importantes, como é o caso das situações potencializadoras de violência. Consequentemente, resulta na deficiente política de educação permanente e de estratégias intersetoriais de prevenção e promoção de saúde.

As ações em saúde para combater a violência no município pesquisado se mostraram, muitas vezes, ineficazes. Isso se deu pela falta de condições adequadas de trabalho, dilemas éticos que envolvem a prática do profissional da saúde, pela exposição no cumprimento de sua função de notificar os casos de violência e questões relacionadas à política de gestão municipal. O cenário encontrado na pesquisa pode somar-se à realidade de outros municípios brasileiros que compartilham das mesmas dificuldades técnicas e éticas de efetivação de ações preventivas e de promoção de saúde diante de situações de violências e vulnerabilidade social.

A importância da pesquisa é reafirmada por meio da análise e de produções acerca das micropolíticas de poder que compõem a organização e efetivação das ações no município fontes da pesquisa, que destacam as transformações sociais sofridas pelas práticas de saúde. O dinamismo das mudanças históricas e sociais exige um processo de revisão e aprimoramento das ações de prevenção e promoção da saúde e do cuidado, de acordo com as subjetividades de cada território em que as políticas públicas de saúde estão sendo aplicadas.

Diante disso, apontamos a importância da continuidade desses estudos em outros municípios, para a contribuição de uma visão sobre a realidade brasileira e o consequente aprimoramento de políticas públicas em saúde.

Referências

Carnut, L. (2017). Cuidado, integralidade e atenção primária: Articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em Debate, 41(115), 1177–1186.

Gondim, S. M. G. (2002). Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: Desafios metodológicos. Paidéia, 12(24), 149–161. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2002000300004

Laguardia, J., Domingues, C. M. A., Carvalho, C., Lauerman, C. R., Macário, E., & Glatt, R. (2004). Sistema de informação de agravos de notificação em saúde (Sinan): Desafios no desenvolvimento de um sistema de informação em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 13(3), 135–146. http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742004000300002

Martins, A. A., Gontijo, C. S., Brum, D. A. S., Santos, C. A., Henrique, F. B., & Alves, T. M. A. (2016). Revisão sistemática sobre a produção da paz. Psicologia: Ensino & Formação, 7(1), 70–77. https://doi.org/10.21826/2179-58002016717077

Mendonça, C. S., Machado, D. F., Almeida, M. A. S., & Castanheira, E. R. L. (2020). Violência na Atenção Primária em Saúde no Brasil: Uma revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 25, 2247–2257. https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.19332018

Minayo, M. C. S. (2007). A inclusão da violência na agenda da saúde: Trajetória histórica. [The inclusion of violence in the health agenda: Historical trajectory], Ciência & Saúde Coletiva, 11(Sup), 1259–1267,2007. http://www.scielo.br/pdf/csc/v11s0/a15v11s0

Minayo, M. C. S. (2014). Técnicas de análise do material qualitativo. In M. C. S. Minayo (Coord.), O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (14ª ed., Cap. 11, pp. 303–360). Hucitec Editora.

Ministério da Saúde. (2002). Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/acidentes.pdf

Ministério da Saúde. (2007). Sistema de informação de Agravos de Notificação em Saúde – SINAN. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_informacao_agravos_notificacao_sinan.pdf

Ministério da Saúde. (2009). Por uma cultura da paz, a promoção da saúde e a prevenção da violência. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cultura_paz_saude_prevencao_violencia.pdf

Ministério da Saúde. (2015). Política Nacional de Promoção da Saúde – PNPS: Revisão da Portaria MS/GM no 687, de 30 de março de 2006. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnps_revisao_portaria_687.pdf

Ministério da Saúde. (2017). Notificação de Violências Interpessoais e Autoprovocadas. http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/fevereiro/07/cartilha_notificacao_violencias_2017.pdf

Organização Mundial de Saúde. (2002). Relatório Mundial Violência e Saúde. https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/04/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude.pdf

Vieira Netto, M. F., & Deslandes, S. F. (2016). As Estratégias da Saúde da Família no enfrentamento das violências envolvendo adolescentes. Ciência & Saúde Coletiva, 21, 1583–1596. https://doi.org/10.1590/1413-81232015215.145420

Santos, D. S., Mishima, S. M., & Merhy, E. E. (2018). Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: Potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciência & Saúde Coletiva, 23, 861–870.

Schimith, M. D., & Lima, M. A. D. S. (2004). Acolhimento e vínculo em uma equipe do Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, 20, 1487–1494. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2004000600005

Silva, M. M. A., & Maeta, D. C. (2010). Promovendo uma cultura de paz e prevenindo as violências e acidentes: O papel do setor da saúde na prevenção das violências e na promoção da cultura de paz. In E. M. Melo, Podemos prevenir a violência: Teorias e Práticas. (Cap. 5, pp. 81–94). Organização Pan Americana da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/podemos_prevenir_violencia.pdf

Souza, M. K. B., Lima, Y. O. R., Paz, B. M. S., Costa, E. A., Cunha, A. B. O., & Santos, R. (2019). Potencialidades da técnica de grupo focal para a pesquisa em vigilância sanitária e atenção primária à saúde. Revista Pesquisa Qualitativa, 7(13), 57–71.

Recebido em: 15/09/2021

Última revisão: 30/01/2023

Aceite final: 06/02/2023

Sobre os autores:

André Amorim Martins: Professor doutor do Curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade de Divinópolis. Líder do Núcleo de Psicologia sobre Educação, Paz, Saúde, Subjetividade e Trabalho. E-mail: andre.martins@uemg.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9699-0990

Vitória Silva Martins: Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade de Divinópolis. Integrante do Núcleo de Psicologia sobre Educação, Paz, Saúde, Subjetividade e Trabalho da UEMG. E-mail: psicologa.vitoriamartins@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8491-9983

Josiane Aparecida Elias D´ Alessandro: Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade de Divinópolis. Integrante do Núcleo de Psicologia sobre Educação, Paz, Saúde, Subjetividade e Trabalho. E-mail: jodalessandro2016@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6579-1147

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.1807