Psicologia na Atenção Básica: Interfaces entre Expectativas e Possibilidades de Atuação

Psychology in Primary Care: Interfaces between Expectations and Possibilities for Action

Psicología en la Atención Primaria: Interfaces entre Expectativas y Posibilidades de Actuación

Janine Pestana Carvalho

Rita de Cássia Maciazeki-Gomes1

Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

Resumo

Esta pesquisa buscou analisar as interfaces entre as expectativas da equipe de uma Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) e as possibilidades de atuação da psicologia na Atenção Básica (AB). Trata-se de pesquisa qualitativa de metodologia participativa. A produção dos dados contou com a realização de entrevistas com profissionais da UBSF e com psicólogas, além dos registros da pesquisadora, primeira autora deste artigo. A partir da utilização da Análise Temática de Minayo, surgiram dois eixos temáticos centrais: (i) Expectativas da Equipe quanto à atuação da Psicologia na AB; e (ii) Possibilidades de Atuação da Psicologia na AB. Estes eixos revelaram divergências entre o que é esperado e as possibilidades de atuação da psicologia, tendo a superação do modelo clínico individual e da precarização das políticas públicas como os principais desafios a serem enfrentados, em prol de uma atenção integral e humanizada que promova a saúde. A produção de espaços de diálogos e trocas de experiências, na perspectiva da Educação Permanente em Saúde, pode aproximar as expectativas da equipe das possibilidades de atuação do(a) psicólogo(a).

Palavras-chave: psicologia, atenção primária à saúde, estratégia de saúde da família, políticas públicas de saúde, pesquisa participativa

Abstract

This research sought to analyze the interfaces between the expectations of the team of a Basic Family Health Unit (UBSF) and the possibilities of psychology in Primary Care (AB). This is qualitative research using participatory methodology. The production of data was based on interviews with professionals from the UBSF and with psychologists, and on the records of the researcher, the first author of this article. From the use of Minayo’s Thematic Analysis, two central thematic axes emerged: (i) Expectations of the Team regarding the action of Psychology in the AB; and (ii) Possibilities of action of Psychology in the AB. These axes revealed the existence of divergences between what is expected and the possibilities of action of psychology, and overcoming the individual clinical model and the precariousness of public policies as the main challenges to be faced, in favor of an integral and humanized care that promotes health. The production of spaces for dialogue and exchange of experiences, from the perspective of Permanent Education in Health, can bring the expectations of the team closer to the possibilities of action of the psychologist.

Keywords: psychology, primary health care, family health strategy, public health policies, participatory research.

Resumen

Esta investigación buscó analizar las interfaces entre las expectativas del equipo en un Centro de Salud de la Familia (UBSF) y las posibilidades de la psicología en Atención Primaria (AB). Se trata de una investigación cualitativa con la investigación participativa. La producción de datos incluyó entrevistas con profesionales del UBSF y psicólogas, y se utilizaron los registros de la investigadora, primera autora de este artículo. Se utilizó el Análisis Temático de Minayo, dando lugar a dos ejes temáticos centrales: (i) Expectativas del equipo sobre el papel de la Psicología en AB; y (ii) Posibilidades de la práctica de la psicología en AB. Estos ejes revelaron divergencias entre lo esperado y las posibilidades de actuación de la psicología, siendo la superación del modelo clínico individual y la precariedad de las políticas públicas los principales desafíos a ser enfrentados, en favor de una atención integral y humanizada que promueva la salud. La producción de espacios de diálogo e intercambio de experiencias, en la perspectiva de la Educación Permanente en Salud, puede acercar las expectativas del equipo a las posibilidades de actuación del psicólogo.

Palabras clave: psicología, atención sanitaria básica, estrategia de salud familiar, políticas públicas de salud, investigación participativa

Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS), conhecida no Brasil também como Atenção Básica (AB), tem como principal estratégia de expansão, qualificação e consolidação a Estratégia Saúde da Família (ESF). A ESF se orienta pelos princípios e pelas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) visando o cuidado à saúde por meio de tecnologias de escuta, vínculo e acolhimento em territórios definidos, considerando os indivíduos em suas singularidades e inserção sociocultural. Na operacionalização da ESF, estão as Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF), com a atuação de equipes mínimas formadas por médicos(as), enfermeiros(as), técnicos(as) de enfermagem e agentes comunitários(as) de saúde (Portaria nº 2.436/ 2017). A ESF, a partir de 2008, passou a contar com o auxílio do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), e foi por meio da implantação deste núcleo que o(a) profissional de psicologia teve sua atividade regulamentada na AB (Ministério da Saúde, 2009a).

A atuação do(a) profissional de psicologia, que se restringia aos consultórios privados e às abordagens individuais, com o passar dos anos e com o reconhecimento de sua importância nos processos de saúde-doença da população, passou a ganhar novos espaços (Nascimento & Avarca, 2017). Na saúde pública, a inserção da psicologia se deu a partir das reformas sanitária e psiquiátrica que ganharam corpo a partir de 1970. A reforma sanitária ampliou a concepção de saúde e resultou na universalidade do acesso e na integralidade dos cuidados em saúde, sendo oficializada com a Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS. A reforma psiquiátrica, movimento protagonizado por trabalhadores, usuários de serviços de saúde mental e familiares, foi consolidada no Brasil como política oficial do governo federal em 2001, a partir da promulgação da Lei 10.216. Essa reforma se pautou nos direitos das pessoas com sofrimento psíquico e em prol da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário (Ministério da Saúde, 2005; Soares & Macedo, 2020).

A Política Nacional de Humanização (PNH), lançada em 2003, também favoreceu a consolidação da psicologia em todos os níveis de atenção à saúde. Essa política de humanização está pautada em um olhar para os indivíduos, priorizando as dimensões subjetivas, singulares e coletivas. Ao propor um cuidado humanizado, a PNH busca reduzir as fronteiras do saber, visando relações horizontalizadas entre gestão, trabalhadores da saúde e usuários do sistema. A PNH reforça a atuação de equipes multiprofissionais para a promoção de cuidados em saúde mais integrais, acolhedores e resolutivos (Ministério da Saúde, 2010).

A Reforma Psiquiátrica e a PNH apontam a importância dos cuidados em saúde no território onde as pessoas vivem, passando a saúde mental a se relacionar diretamente com a AB, que, por sua vez, é ordenadora do cuidado e porta de entrada dos serviços de saúde do SUS, colaborando na comunicação com os demais níveis de atenção também para as questões da saúde mental (Dimenstein et al., 2005). Contudo, no que confere as situações de transtornos mentais comuns, entende-se que esse nível de atenção está instrumentalizado para prestar o devido cuidado, ser resolutivo e buscar cada vez mais romper com a lógica manicomial (­Onocko-Campos & Gama, 2008).

Para auxiliar com as demandas em saúde mental, a AB pode contar com profissionais em psicologia inseridos no NASF, porém esse núcleo não surgiu como serviço independente ou nova porta de entrada aos serviços de saúde do SUS, e sim como um serviço de suporte à ESF. O NASF preconiza um trabalho interdisciplinar por intermédio do apoio matricial, que tem por objetivo promover a corresponsabilização e o cuidado integral na atenção básica (Sousa et al., 2015; Nascimento & Alves, 2019). O NASF, em 2017, passou a ser chamado de Núcleo Ampliado de Saúde da Família.

Embora os estudos apontem a importância do(a) psicólogo(a) na AB (Böing & Crepaldi, 2010; Rocha et al., 2016; Cintra & Bernardo, 2017), poucos locais inserem esse(a) profissional diretamente na equipe mínima de UBSF, estando ele(a) relacionado(a), majoritariamente, às equipes de NASF. Independentemente do vínculo estabelecido com as unidades básicas, é esperado que o(a) psicólogo(a) atue e exerça suas práticas com base comunitária e de territorialização, exercitando sua capacidade ética-política e crítica diante dos determinantes e condicionantes de saúde (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019).

Na atuação dos(as) profissionais do NASF, está preconizado o compartilhamento, a qualificação e a complementaridade da atuação da equipe de ESF. No que confere ao trabalho do(a) profissional de psicologia sobre o território, muitas são as possibilidades de intervenções, estando elas relacionadas à singularização do olhar sobre o indivíduo em sua diversidade e subjetividade cultural, contribuindo para intervenções mais humanizadas e menos mecanizadas. Ações que promovam aos usuários autonomia, capacidade de pensar criticamente e empoderamento estão entre o amplo repertório de práticas esperadas dessa profissão (Rocha et al., 2016; Cintra & Bernardo, 2017).

Mesmo diante das diversas possibilidades de intervenções, a principal dificuldade enfrentada pelos(as) profissionais é a superação do atendimento clínico individual como única forma de atuação. Diferentes estudos (Kurtz Cezar et al., 2015; Rocha et al. 2016; Cintra & Bernardo, 2017; Nascimento & Avarca, 2017) apontam como percalço na trajetória da psicologia na saúde pública o entrelaçamento do seu fazer aos moldes clínicos biomédicos; isso porque a permanência da clínica individual como única forma de atuação favorece ações pouco contextualizadas de aspectos sociais e culturais (essenciais no cuidado em território), além de gerar entraves no trabalho em equipe. Por outro lado, os mesmos estudos demonstram compreender e estar de acordo com abordagens terapêuticas individuais em casos específicos, quando contextualizados com os projetos terapêuticos singulares (PTS) elaborados com as equipes. Os PTS são planos com hipóteses diagnósticas e objetivos de cuidado que podem ser de um indivíduo, uma família ou um grupo no território, elaborados e executados pelas equipes da AB em conjunto com demais serviços da rede de saúde ou intersetoriais, quando necessário (Cela & Oliveira, 2015).

Muitos(as) profissionais das equipes de UBSFs creditam a atenção à saúde mental apenas aos(às) psiquiatras e/ou psicólogos(as) e, em razão disso, atuam na visão “médico-centrado” e na lógica dos encaminhamentos, especialismos, compartimentalização e hierarquização dos saberes, contribuindo para a fragmentação do cuidado (Onocko-Campos & Gama, 2008). Sousa et al. (2015), ao analisarem a atuação de psicólogos(as) em duas equipes de NASFs no estado do Rio Grande do Norte, evidenciaram algumas ações baseadas no especialismo e na fragmentação do cuidado. Portanto, mesmo nos NASFs que, embora os(as) profissionais tivessem sua atuação regulamentada, ainda assim encontravam dificuldades diante das expectativas das equipes de saúde.

Outra forma de inserção da psicologia na AB é por meio das Residências Multiprofissionais em Saúde da Família, na qual é possível encontrar psicólogos(as) inseridos diretamente nas equipes mínimas das UBSFs. As Residências Multiprofissionais em Área Profissional da Saúde são modalidades de ensino de pós-graduação lato sensu que se configuram na forma de educação em serviço em setores prioritários do SUS. Os residentes exercem suas atividades em regime de dedicação exclusiva, com carga horária definida de 60 horas semanais, pelo período mínimo de dois anos (Lei nº 11.129/2005; Ministério da Educação, 2009). Nesse formato de pós-graduação, o residente cumpre mais de cinco mil horas de atividades, sendo 80% práticas e 20% teóricas.

A partir das atividades em uma Unidade Básica de Saúde da Família, foi identificado pela residente de psicologia, aqui pesquisadora e primeira autora do texto, uma demanda em saúde mental significativa. Essa percepção foi se confirmando ao longo dos dias, pela busca incessante de atendimentos, pelo número alto de casos encaminhados ao NASF e pelas solicitações da equipe e dos próprios usuários de atendimento clínico individual.

Portanto, esta pesquisa surgiu a partir das inquietações de uma psicóloga residente em um programa multiprofissional em saúde da família que, inserida em uma UBSF, passou a se questionar sobre qual o seu papel como psicóloga nesse nível de atenção. Esses questionamentos e inquietações partiam da vontade de compor suas práticas de forma a compreender as expectativas da equipe de saúde, usuários e as inúmeras possibilidades de atuação.

A produção desta pesquisa esteve atravessada por dois acontecimentos que marcaram o cenário nacional: a revogação da portaria de financiamento do NASF e situação de emergência sanitária provocada pelo novo coronavírus. A partir da Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019, foi revogado o modelo de financiamento do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB); com isso, os municípios ficaram responsáveis por definir carga horária, formas de organização e quais profissionais passariam a compor suas equipes multiprofissionais (Portaria nº 2.979/2019). Os municípios, portanto, ganharam autonomia para manter ou não o trabalho do(a) profissional de psicologia na AB. No município onde foi realizada a pesquisa, as equipes NASF vivenciavam um processo de reconfiguração na forma de apoio às equipes de saúde, direcionando-se para atender à demanda excessiva por atendimento clínico individual e atuar como assistência à saúde em um modelo ambulatorial.

Concomitante a essa reorganização do NASF, em março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que o surto de covid-19, doença causada pelo vírus SARS-CoV-2, popularmente conhecido como o novo coronavírus, caracterizava-se como uma pandemia (WHO, 2020). No Brasil, ainda em fevereiro de 2020, foi sancionada a Lei n. 13.979, que dispunha sobre as medidas que poderiam ser tomadas para enfrentamento da emergência em saúde pública; em março de 2020, foi decretado o estado de calamidade pública, em razão do aumento significativo de casos de covid-19 (Lei nº 13.979/ 2020; Decreto Legislativo nº 6/2020). Em razão da pandemia, os serviços de todos os níveis de saúde do país sofreram fortes impactos em sua organização. O processo de reconfiguração das equipes multiprofissionais de apoio (antigo NASF), somado às limitações na atuação causadas pela pandemia, trouxe inúmeras incertezas ao trabalho do(a) psicólogo(a) na Atenção Básica.

Ancorado nos estudos de Psicologia Social e Saúde Coletiva, com enfoque nas práticas comunitárias, associadas à promoção e prevenção de saúde ao trabalho no/com território (Diógenes et al., 2016), este estudo emerge da necessidade de sistematizar experiências e contribuir com reflexões e problematizações sobre a atuação do(a) psicólogo(a) na atenção básica em saúde. As questões de pesquisa levantadas foram: quais as expectativas da equipe de uma UBSF em relação à atuação da psicologia e quais as possibilidades de atuação desses(as) profissionais na Atenção Básica? Tendo presentes essas inquietações, este estudo teve por objetivo analisar as interfaces entre as expectativas da equipe de saúde de uma UBSF e as possibilidades de atuação deste(a) profissional na AB.

Metodologia

Esta é uma pesquisa qualitativa de metodologia participativa. Pesquisas qualitativas exploram realidades que não podem ser quantificadas, aprofundando-se em significados, relações e subjetividades que não se reduzem a operações de variáveis (Minayo, 2001).

As pesquisas participativas são traçadas de forma que proporcionem espaços participativos de decisão, promovendo autonomia para os participantes do estudo e composições múltiplas no coletivo a ser pesquisado. Além disso, o pesquisador deve trabalhar junto ao seu grupo de interesse e não sobre ele, pesquisar intervindo e intervir pesquisando, no intuito de transformar a realidade (Diógenes et al., 2016; Yasui & Emerich, 2019).

Neste estudo, a pesquisadora esteve inserida no local durante sua atuação como residente, trabalhou junto aos(às) participantes e se colocou como parte integrante do estudo. Assim, a pesquisa emerge de inquietações e problematizações da primeira autora, como residente em uma UBSF, em uma cidade localizada ao sul do Rio Grande do Sul, Brasil, ao longo de 2020.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande (CEP-FURG) (CAAE 28465020.6.0000.5324). As entrevistas foram realizadas no período de junho a novembro de 2020, gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Os(as) participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e tiveram sua identidade preservada.

Participaram da pesquisa 18 profissionais da saúde, sendo 15 trabalhadores da equipe da UBSF (enfermeiras, técnicas de enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentista e auxiliar de saúde bucal) e 3 psicólogas, sendo 1 da equipe multiprofissional (antigo NASF), uma especialista em Saúde da Família e a psicóloga residente-pesquisadora. Os(as) profissionais de saúde foram nominados, ao longo do texto, como: Participante (de 1 a 15) e Psicóloga da Equipe Multiprofissional, Psicóloga Especialista em Saúde da Família e Psicóloga Residente-Pesquisadora.

Os dados foram produzidos a partir da análise do cotidiano de trabalho, contemplando o encadeamento entre as expectativas dos profissionais de saúde e as práticas possíveis para Psicologia na AB. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os(as) participantes e utilizados os registros das percepções e experiências da residente-pesquisadora que atuava junto do grupo na UBSF.

Os dados foram analisados qualitativamente, a partir da Análise Temática de Minayo (Minayo, 2001). Esta análise prevê algumas etapas em sua realização: pré-análise, ­exploração do material, tratamento do material obtido e interpretação. Nesta pesquisa, a pré-análise foi o momento em que ocorreram as entrevistas, a transcrição completa das entrevistas e leitura flutuante do material transcrito; a fase de exploração do material compreendeu o momento em que as entrevistas foram separadas em trechos, classificadas e agrupadas por semelhança; posteriormente, no tratamento do material obtido, surgiram eixos temáticos centrais, fase essa que contempla e introduz as interpretações (Minayo, 2001).

Assim, ao colocar-se como parte integrante do cotidiano de trabalho, o processo de produção e análise dos dados contemplou uma escuta sensível e reflexiva, um pesquisar com as questões trazidas pela equipe da UBSF.

Resultados e discussões

No processo de análise dos dados, foi possível identificar dois eixos temáticos centrais que abarcam os resultados da pesquisa, sendo eles: (i) Expectativas da Equipe quanto à Atuação da Psicologia na AB; e (ii) Possibilidades de Atuação da Psicologia na AB.

Eixo temático I: expectativas da equipe quanto à atuação da Psicologia na AB

As discussões contempladas neste eixo I apontaram para o reconhecimento e a importância da atuação do(a) profissional de psicologia na Atenção Básica; porém, ainda identificaram a expectativa de um repertório restrito de práticas possíveis, com destaque para o atendimento clínico individual. Este resultado vai ao encontro de outros estudos que também identificaram que o atendimento clínico individual no modelo biomédico é a principal prática esperada de psicólogos(as) (Kurtz Cezar et al., 2015; Sousa et al., 2015; Rocha et al., 2016; Cintra & Bernardo, 2017; Nascimento & Avarca, 2017; Silva, 2018).

Para a maioria dos(as) profissionais entrevistados(as), o trabalho do(a) psicólogo(a), nesse nível de atenção à saúde, é importante por estar totalmente relacionado às ações de saúde mental e à percepção de um aumento significativo deste tipo de demanda em saúde. Além disso, os(as) profissionais referiram entender que, para o cuidado ser integral, é necessário um olhar sobre a saúde mental e que, em sua maioria, os adoecimentos físicos podem ser precedidos ou acarretar adoecimentos psíquicos. Conforme as falas que seguem:

. . . percebo como fundamental, essencial, porque uma das coisas que a gente mais percebe hoje na sociedade é a questão da saúde mental, né, e não só pela questão da pandemia, antes disso a gente já via que o que mais as pessoas pedem é receita de remédios controlados, antidepressivos . . . (Participante 7).

Eu percebo de extrema importância, muita, muita, eu ainda digo que eu acho umas das, não sei se dá para a gente dizer “principais profissões”, sabe, eu acho que todos têm papel muito importante, mas pra mim a saúde mental tá em tudo . . . (Participante 9).

Ainda, ao abordar as expectativas dos(as) profissionais sobre a atuação do psicólogo, surgiram apontamentos de críticas relacionadas a uma atuação “engessada” ou pouco atuante. Essas críticas, embora muito construtivas para um (re)pensar da atuação, estavam associadas ao fato de a psicologia no NASF compor atendimentos a partir de matriciamentos, com reuniões mensais, atendimentos multiprofissionais e buscando ações para além do atendimento clínico individual. A equipe demonstrou preocupação com a demora do atendimento psicológico, em especial, nos casos que envolviam riscos.

Eu acho que pode ser bem mais atuante . . . o paciente que chega na unidade e relata umas coisas para a gente, que está com vontade de se matar e isso e aquilo, entendeu, e não adianta ele ir pro médico tomar um remedinho, tá, ele tem que ir pro psicólogo, e é naquele momento, não é para matriciar daqui um mês, que se ele está dizendo que ele tá precisando, daqui um mês ele pode estar morto. (Participante 10).

Como eu percebo? Eu acho que . . . é engessado, porque tem muita demanda para pouco tempo pra ele, porque não é só aqui no posto, não é só na unidade, tem outros lugares e aí ele vai até uma parte e não pode ir adiante uma continuação. (Participante 14).

As mudanças na organização do trabalho do antigo NASF, para, agora, Equipes Multiprofissionais, geraram nos(as) profissionais percepções negativas, como as dificuldades no compartilhamento de casos. A equipe demonstrou que se sentia mais próxima do(a) profissional de psicologia quando havia maior participação na construção dos PTS e abertura para diálogo durante as reuniões de matriciamento.

. . . eu gostava, a gente participava, mas agora pro fim não estava tanto, mais era assinar a ata, nós até mexíamos que não íamos vir mais, não perguntava muita coisa, já vinha tudo pronto. Então acho que faz falta, a agente comunitária sabe, se tu vai na casa, tem acesso à casa da pessoa, não é qualquer que pode entrar. (Participante 4).

. . . não do profissional, mas da equipe eu acho que agora está bem mais distante com a função de até, né, não existe mais NASF, né, agora é equipe multiprofissional . . . era bem mais atuante, bem melhor, assim, nós tínhamos um acesso bem melhor . . . agora está bem mais distante, né, bem escasso . . . (Participante 8).

Com a revogação da portaria que instituía o financiamento do NASF, o município onde foi realizada esta pesquisa optou por manter os profissionais da antiga equipe NASF atuantes na AB, porém iniciou uma reformulação, em que as equipes passaram a ser chamadas apenas de Equipes Multiprofissionais, com cobertura para toda a atenção básica e não só à ESF. Essas mudanças impactaram na atuação da psicologia na AB. Os encontros de matriciamentos, em que o NASF realizava uma de suas principais funções, o apoio matricial, por meio do compartilhamento e das discussões de casos com a equipe, foram descaracterizados, ganhando ênfase o atendimento clínico individual.

Os(as) profissionais identificaram três atividades principais a serem desenvolvidas pelo(a) psicólogo(a), sendo elas o atendimento clínico individual, atendimentos a grupos e interconsultas com outros profissionais, assim como nos exemplos abaixo:

. . . a consulta individual é muito importante, se fosse possível em outros momentos de consulta da unidade, vamos supor o apoio durante a consulta de pré-natal, de puericultura para apoiar uma mãe, talvez não sendo um atendimento só exclusivo da psicóloga, a gente fazer interconsulta, né, acho que muitos grupos, né, a atuação do psicólogo em grupos da unidade . . . (Participante 1).

Eu acho que, por vezes individual, né, eu acho que talvez o primeiro momento, o primeiro contato, né, até pra que se estabeleça um vínculo e eu acho que após pode ser feito várias atividades, né, pode fazer em grupo, oficinas, enfim, né, acho que algo mais amplo assim pra desenvolver . . . (Participante 13).

Alguns profissionais, ainda, identificaram o atendimento clínico individual como única prática esperada do psicólogo, como podemos observar nos seguintes trechos: “eu acho que o atendimento clínico, né, de escuta do paciente ali . . . eu vejo o atendimento clínico, não consigo ver outra, em outro encaixe, entendeu, deve existir, mas eu não sei” (Participante 7).

Eu acho que é mais no individual porque elas, as pessoas fora, que não têm muito conhecimento assim, elas são muito desconfiadas, né, e elas acham assim “ah se fulano souber”, se elas tiverem uma pessoa conhecida [grupos], elas já não vão te falar . . . Por isso que eu acho que o psicólogo deveria estar que nem o médico (Participante 11).

Embora o atendimento individual, no modelo tradicional, seja uma abordagem válida e indispensável, em algumas situações, entende-se que associação do trabalho do(a) psicólogo(a) somente a essa prática impõe limites e prejuízos em sua atuação. Isso porque se espera que esses profissionais inseridos no SUS e na AB possam desenvolver práticas mais amplas de promoção e prevenção em saúde, que valorizem as coletividades e lancem um olhar sobre o território, comunidade, e não apenas sobre doenças/transtornos (Nascimento & Alves, 2019).

Além disso, o pouco reconhecimento das potencialidades das práticas psi na atenção básica e as dificuldades na integração saúde mental-saúde distanciam o(a) psicólogo(a) dos(as) demais profissionais, deficit pautado também nas formações profissionais, que ainda se dedicam pouco ao tema dentro de suas grades curriculares. A graduação em psicologia se mostra insuficiente na formação de psicólogos(as) aptos a colocar em prática os princípios e as diretrizes do SUS e a atuar de forma multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial (Kurtz Cezar et al., 2015; Diógenes et al., 2016; Nascimento & Avarca, 2017; Silva, 2018).

O matriciamento, principal forma de atuação do(a) psicólogo(a) do NASF, foi muito pouco reconhecido durante as entrevistas; o compartilhamento de casos, as orientações prestadas durante as reuniões e a construção de PTSs pareceram não serem vistos como formas de atuação. Dos(as) entrevistados(as), apenas duas pessoas apontaram o apoio matricial como uma prática esperada dos(as) psicólogos(as): A Participante 9 relata “. . . no que era os antigos NASFs, nas funções dos matriciamentos, que, para a gente, sempre foi muito importante . . . de conversar com as gurias e dizer assim, gurias como é bom quando tu te sente apoiado”. Ou ainda:

As práticas eu acho que é dar o apoio e suporte pra equipe, né, quando acontece essa demanda, essa necessidade pelo cuidado, né, com o paciente que apresenta algum transtorno, transtorno mental. Acho que mais é isso, é o cuidado do paciente, dar esse apoio, esse suporte. (Participante 13).

Além disso, foi possível identificar uma demanda de atendimento voltada para lógica dos encaminhamentos e especialismos, buscando no NASF um serviço ambulatorial que não existe. Por sua vez, a maioria dos participantes refere realizar o encaminhamento para conseguir um apoio ao paciente:

Sim, eu fiz encaminhamento com a intenção de dar um apoio para a pessoa que estava precisando e até para a família, porque assim, além da psicóloga atender a menina que eu encaminhei, ela também deu um apoio, chamou a mãe, foi na casa e foi muito importante. (Participante 2).

É, no caso a gente vem e passa para a enfermeira, coordenadora da equipe, até antes no NASF, agora não está mais assim por causa da pandemia, mas era muito bom porque a gente fazia ali no coisa [matriciamento] . . . Ah, tentar ajudar a pessoa que está precisando, né. (Participante 4).

Embora uma minoria, alguns(as) profissionais referiram realizar o encaminhamento com a intenção de compartilhar o caso e obter auxílio nos cuidados, é o caso da Participante 1, que afirma: “. . . com a intenção de me trazer um complemento naquele acompanhamento que eu estou fazendo, né . . .”. Ou ainda:

. . . com a intenção de ter apoio de ajudar e a gente poder estar atendendo essa pessoa juntos, né, de somar na verdade, pegar o conhecimento do outro e somar com aquele que tu tem e aí se trabalhar e acompanhar e dar o melhor atendimento para aquela pessoa. (Participante 9).

Percebe-se que os encaminhamentos acabam sendo facilitados também pela busca dos especialismos que ainda mantêm viva a divisão entre saúde e saúde mental. Essa cisão é histórica e gera nos(as) profissionais medos e inseguranças diante dos cuidados em saúde mental. A Participante 5 fala sobre essa insegurança: “. . . tem que ter segurança porque, às vezes, uma opinião não é uma opinião . . . meu receio é que, ao invés de ajudar, atrapalhar, porque uma informação mal dada ou mal entendida, digamos assim, tu bota um trabalho a perder, né”. A Participante 10, por sua vez, observa limitações em sua formação: “. . . eu vou até um pedaço, mas depois eu não tenho mais capacidade porque eu não estudei pra, né. . . não gosto, sei lá, não sei se é porque eu fico angustiada, não sei . . .”. Diante das dificuldades encontradas, o compartilhamento do cuidado em saúde mental segue sendo um desafio.

No que confere à saúde mental, os serviços ambulatoriais parecem ser a maior necessidade das ESFs e da população em geral. Por outro lado, é possível visualizar que os serviços especializados que são disponibilizados para a população encontram-se sobrecarregados pela demanda de atendimento à saúde mental. A Atenção Básica não desvaloriza as especialidades, mas tem por objetivo maior o trabalho interdisciplinar e multiprofissional, em que diferentes profissões construam, junto aos usuários, formas humanizadas de cuidados em saúde. Alguns estudos apontam que os(as) psicólogos(as) dos NASFs encontram dificuldades em realizar as atividades interdisciplinares, multiprofissionais, coletivas e de matriciamento preconizadas pelos cadernos de diretrizes (Sousa et al., 2015; Nascimento & Alves, 2019; Oliveira et al., 2020).

A inserção da residência em saúde da família na UBSF e de uma psicóloga residente na unidade foi um dos temas abordados durante as entrevistas. Os(As) participantes relataram perceber a residência como muito positiva para a equipe e a população do território, principalmente por se tornar um serviço mais acessível, conforme refere a Participante 3: “Acho que para mim, que faço parte da equipe, e para os pacientes, para a comunidade eu acho muito bom, facilita bastante . . . é bem próximo de onde tu mora, acho que é mais fácil, o acesso é melhor”. Ou ainda:

. . . para nós foi maravilhoso, porque além de a gente estar bem mais amparado, porque, embora o NASF estivesse aqui, eles precisavam atender outros postos, então pra população foi maravilhoso, porque a gente ficou com acesso direto, mesmo que tendo que cumprir horários e toda a demanda de vocês a gente pode chegar, bater na porta, ou chamar no WhatsApp e conversar e pedir um apoio. (Participante 8).

Ainda, em relação à residência, outros(as) profissionais apontam a necessidade de prestarem mais atendimentos individuais, referindo-se ao fato de não estarem atendendo à demanda espontânea, como a Participante 6, que diz: “Ah, eu acho ótimo, eu acho que tinha que, como eu te disse, eu acho que tinha que ter os atendimentos, principalmente com psicólogos, tinham que ser diários, todo dia na unidade aceitando a demanda”. Ou ainda:

. . . eu acho bom, só que, como eu te disse, tem que atuar. Tem que trabalhar, vocês sabem que é um bairro pobre, onde tem mais necessidade, porque a pobreza gera outras coisas, né, o emocional deles fica abalado, né, aí já descamba para outras coisas, então tem que atuar (Participante 10).

A presença da(o) residente incita um olhar mais amplo sobre a atuação do(a) profissional de psicologia, pois a inserção direta na UBSF facilita o desenvolvimentos de diferentes práticas. Além disso, o papel da(o) residente, por si só, é de grande potência problematizadora, questionadora e, com isso, tira a equipe de sua zona de conforto, promovendo novos olhares, constantes reflexões e aproximação da teoria com a prática.

Eixo temático II: Possibilidades de Atuação da Psicologia na AB

Este eixo compreende os dados produzidos nas entrevistas com as psicólogas e as percepções da primeira autora, residente-pesquisadora, sobre sua atuação na UBSF. A psicóloga da equipe multiprofissional relatou restrições de suas práticas ao atendimento clínico individual: “Atendimento, a única nesse momento, né. E é o carro-forte, eu sei, mesmo quando é disponibilizado os grupos, as pessoas querem o atendimento individual querem o atendimento mais privativo, a clínica praticamente tradicional”.

A atuação em grupos é indispensável para romper com o paradigma da clínica individual como única forma de atuação e, embora hoje seja uma prática muito reconhecida, ainda apresenta resistência (Silva, 2018). Nesta pesquisa, a psicóloga especialista em saúde da família, por meio do programa de residência, relatou sobre a prática em grupos: “. . . o que eu mais sentia bem fazendo eram os grupos, sentia que o meu papel na AB, enquanto profissional, realmente se encaixava ali . . .”.

Outro ponto que chama atenção é que a psicóloga especialista em saúde da família relembrou que conseguia se inserir em mais atividades na UBSF, ações possíveis por este programa inserir o(a) pós-graduando(a) diretamente no campo de prática de uma única unidade de saúde.

. . . sempre que tinha alguma atividade que eu, ou o educador físico, pudéssemos acompanhar, a gente já se colocava nessa atividade juntos, então, por exemplo, tinha um turno de pré-natal que eu fazia com um enfermeiro . . . tinha um turno de reunião e a gente organizava uma sala de espera . . . os meus atendimentos individuais começaram a tomar forma quando eu passei a acompanhar os matriciamentos . . . fazia muita VD junto com os enfermeiros.

A psicóloga da equipe multiprofissional ressaltou a dificuldade de lidar com a demanda excessiva para atendimento individual.

. . . pensando que tu tem um psicólogo atendendo 11 equipes de saúde, tu vai ter de priorizar que casos tu passa . . . vejo nosso trabalho muito de formiguinha e, com a questão da pandemia mais ainda, porque volta e meia, às vezes, a gente faz uma, duas, três abordagens, e tu encaixa num grupo, né, que tu pode vê-lo mais espaçado . . .

Enquanto residente-pesquisadora, a primeira autora se inseriu em variados trabalhos dentro da unidade, como grupos, interconsultas com outros(as) profissionais, programa de saúde na escola, atividades em sala de espera, reuniões do conselho local de saúde, entre outras; porém, a principal atividade desenvolvida foi o atendimento clínico individual.

Senti na pele a dificuldade de tentar quebrar o tabu da clínica tradicional. As expectativas da equipe e dos usuários do serviço de saúde, sob minha percepção, recaíam sempre sobre os atendimentos individuais. Não me entregar apenas esta demanda foi uma dificuldade sempre presente. (Registros da pesquisadora).

Estudos como o de Nascimento e Avarca (2017) apontam para os(as) profissionais de psicologia que, inseridos na ESF por meio dos programas de residência, conseguem desenvolver práticas comunitárias, articulações intersetoriais, fortalecimento da gestão participativa, além de práticas realizadas em conjunto com demais profissionais da equipe mínima ou do próprio NASF. As autoras destacam dificuldades para superação do modelo clínico individual; porém, a partir da inserção em outras atividades e atendimentos em conjunto com outros profissionais, é possível demonstrar seu potencial de contribuição e consolidar a psicologia como essencial na atenção integral à saúde dos indivíduos.

Esta pesquisa também apontou que profissionais residentes conseguiram colocar em prática mais atividades coletivas e comunitárias. Isso acontece porque essa forma de especialização é um complemento às graduações, uma formação em serviço junto às políticas públicas, instigando uma atuação humanizada, o trabalho interdisciplinar, intersetorial e multiprofissional. Além disso, no programa de residência em que a residente-pesquisadora estava inserida, desenvolvia suas atividades em apenas uma UBSF, favorecendo o trabalho junto à equipe e aos moradores do território. Por sua vez, os(as) psicólogos(as) que atuavam nos NASFs, ou agora Equipes Multiprofissionais, atendiam mais equipes e territórios.

O amplo território de abrangência, o grande número de pessoas atendidas e a demanda excessiva para atendimento clínico individual podem gerar no(a) profissional de psicologia dificuldades de integrar as abordagens teóricas e preconizadas para o trabalho nas ESFs com a prática no cotidiano dos serviços. A psicóloga da Equipe Multiprofissional apontou a sensação de se sentir perdida, como se a profissão não tivesse encontrado uma estratégia de trabalho, uma abordagem possível a ser utilizada na prática na ESF: “eu repenso e acho que o trabalho tá sempre faltando . . . acho que a gente ainda não achou uma estratégia que diga não, agora está sob controle, ainda falta, acho que é isso. Falta alguma coisa”.

O Manual de Referências Técnicas para Atuação de Psicólogos(as) na Atenção Básica (CREPOP), elaborado em 2019, ainda traz o trabalho no NASF e a prática do matriciamento como norteadores da atuação na AB. Por outro lado, o manual reafirma que a prática do(a) psicólogo(a) inserido nesse nível de atenção não deve ser pautada apenas na transposição do modelo clínico individual, nos moldes psicoterápicos ligados a teorias e sistemas psicológicos, exigindo práticas muito mais amplas. Segundo o CREPOP, para reafirmar e consolidar a psicologia na AB, são esperados formações e profissionais criativos, implicados com a proposta de cuidado do SUS, capazes de promover a singularização do olhar sobre os indivíduos, coletivos e territórios ( CFP, 2019).

A atuação do(a) profissional de psicologia na AB pode compreender diversas práticas, como: atividades em grupos, oficinas, visitas domiciliares, práticas que favoreçam a ampliação do cuidado em saúde mental e a formação de vínculo com a comunidade. É esperado que o(a) psicólogo(a) desenvolva uma atuação ético-política que compreenda o sujeito histórico, uma reflexão crítica, com inserção comunitária e territorialização, em prol da facilitação social, fortalecimento da participação popular e atuação com educação popular em saúde. Além disso, é preciso superar o modelo biomédico tradicional; por outro lado, a atuação clínica e as coletivas podem ser vistas como complementares e não opostas/dicotômicas (Diógenes et al., 2016; Cintra & Bernardo, 2017; Dos Santos et al., 2020).

As reflexões deste eixo nos revelam que os(as) próprios(as) profissionais de psicologia identificam o atendimento clínico individual como uma das principais práticas desenvolvidas, em especial no ano de 2020.

Cabe destacar que, a partir do ano de 2020, com a reorganização do processo de trabalho das equipes NASF para Equipes Multiprofissionais, os encaminhamentos passaram a ocorrer via boletim de referência, sem discussões prévias dos casos com a equipe. Em um segundo momento, as reuniões com as equipes das ESF voltaram a acontecer com o nome de round; nesse novo formato, foram elencados, por unidade, dois profissionais de referência da Equipe Multiprofissional para participar das reuniões/round. Essas mudanças contribuíram para diminuição das discussões de casos, empobrecimento dos projetos terapêuticos singulares e incentivo do atendimento clínico individual como principal ação do(a) psicólogo(a).

Em atenção à emergência sanitária, os protocolos de atendimentos na pandemia do novo coronavírus, ao preconizar o distanciamento social e a proibição de aglomerações, alteraram o fluxo de atendimento e trouxeram limitações nas atividades desenvolvidas nas unidades de saúde. Houve a suspensão de atividades em grupo, oficinas, visitas domiciliares (VD), Programa de Saúde na Escola (PSE), atividades de sala de espera, ações de educação permanente em saúde, reuniões presenciais com todos os integrantes das equipes, entre outras. Além dessas mudanças, os atendimentos eletivos ficaram temporariamente suspensos, neste período a unidade trabalhou apenas com urgências e emergências. Essas medidas, ainda que necessárias, descaracterizaram as ações da ESF ao dar ênfase ao atendimento individual. E, por sua vez, produziram obstáculos na afirmação do trabalho multiprofissional e dificultaram o compartilhamento dos PTSs.

Muitos são os desafios no que se refere às interfaces entre as expectativas de uma equipe de saúde da família e as possibilidades de atuação da psicologia na Atenção Básica. A realização de ações de Educação Permanente em Saúde (EPS) foi uma das estratégias apontadas para colaborar com essas aproximações. No planejamento desta pesquisa, a residente-pesquisadora tinha como uma das propostas de intervenção a realização de ações de educação em saúde com a equipe, no intuito de promover um espaço de discussões e construções coletivas a respeito da atuação do(a) psicólogo(a) na UBSF, da residência e sobre a cisão saúde/saúde mental, ação que não ocorreu devido às limitações impostas pela pandemia.

Durante as entrevistas, os(as) participantes do estudo, ao serem questionados(as) sobre já terem participado de ações de educação permanente em saúde que falassem sobre as possibilidades de atuação do(a) profissional de psicologia na AB, revelaram não se lembrar, e o que lembram são explicações gerais sobre o NASF. Ações de educação permanente em saúde têm relação direta com os princípios e as diretrizes do SUS, são uma possibilidade de atuação do(a) psicólogo(a) na AB e podem transformar as práticas profissionais, promovendo uma aprendizagem-trabalho (Ministério da Saúde, 2009b). Todos os profissionais se mostraram abertos e interessados nesse tipo de ação para fins de ampliar seus conhecimentos a respeito. A Participante 10 referiu: “Ué, seria bom, porque aí eu saberia o que é que realmente vocês podem fazer, né”. Ou ainda:

Acho que sim, né, até porque, às vezes, tem aquela dúvida, né, que tipo de atendimento vocês vão dar para as pessoas, né, acontece muito até dos colegas e dos pacientes também, né, entender aquela coisa que seja tipo uma terapia, né, e que não é bem o foco do trabalho de vocês. (Participante 13).

Ao pensar em estratégias de educação permanente em saúde, o objetivo é usar a rotina de trabalho e os entraves encontrados no cotidiano, para construir no coletivo alternativas e acordos que facilitem o processo de trabalho. Além disso, essas ações vão ao encontro do compartilhamento dos saberes e do alcance horizontal de aprendizagem (Oliveira et al., 2020). As ações em EPS contribuem para a instauração de espaços de diálogo, compartilhamento e trocas, que auxiliam na operacionalização das ações em saúde, e, em última instância, fazem frente à precarização das políticas públicas de saúde.

Considerações Finais

O presente estudo buscou entender quais as expectativas da equipe de uma Unidade Básica de Saúde da Família sobre a atuação do(a) psicólogo(a) na AB e quais as possibilidades de atuação têm sido encontradas pelos(as) profissionais da psicologia. Os resultados obtidos sinalizaram expectativas voltadas majoritariamente ao atendimento clínico individual, embora outras práticas já sejam reconhecidas e apareçam também na fala dos(as) participantes, como a realização de grupos, interconsultas e o apoio matricial.

Os resultados também apontaram que as próprias psicólogas participantes da pesquisa observam a atuação clínica individual como prática central e a única possível, no momento desta pesquisa que ocorreu durante a pandemia de covid-19. Cabe salientar que a descontinuidade do financiamento do NASF-AB, a partir da implementação da Portaria n. 2.979/2019, modificou e restringiu as possibilidades de atuação da psicologia na AB, ao dar ênfase para os atendimentos especializados, de forma individualizada. A superação do modelo clínico individual e da precarização das políticas públicas mostra-se como o principal desafio a ser enfrentado.

As críticas aqui discutidas sobre o modelo de atendimento clínico individual são direcionadas àquelas práticas descontextualizadas, que buscam apenas reproduzir um olhar individualizante e patologizante, sem olhar sobre os aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos, essenciais para um cuidado integral e humanizado que promova o cuidado em saúde.

É necessário registrar que os dados obtidos foram interpretados de acordo com os objetivos do trabalho e as percepções da pesquisadora, que estava implicada na atuação enquanto psicóloga na atenção básica, especificamente na UBSF em que ocorreu a pesquisa. Visto isso, este texto não ambiciona esgotar as possibilidades de interpretação dos dados, mas contribuir, registrando a experiência e os achados sobre as interfaces entre as expectativas de uma equipe de saúde da família e as possibilidades de atuação da(o) psicóloga(o) na AB.

Muitas são as possibilidades de atuação da(o) psicóloga(o) na saúde e não existem dúvidas da importância do(a) profissional de psicologia inserido na ESF. Porém, ainda existe um grande percurso a ser trilhado em direção ao alinhamento das expectativas das equipes, da população em geral, das políticas públicas, das diretrizes de atuação, das formações em saúde e do próprio fazer da(o) profissional de psicologia. Estimular espaços de diálogos na perspectiva da Educação Permanente em Saúde pode aproximar as expectativas da equipe das possibilidades de atuação do(a) psicólogo(a).

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Recebido em: 23/11/2021

Última revisão: 30/06/2022

Aceite final: 13/09/2022

Sobre as autoras:

Janine Pestana Carvalho: Especialista em Saúde da Família pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Psicóloga na Prefeitura Municipal de Canguçu, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: janinepcarvalho1992@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1465-9012

Rita de Cássia Maciazeki-Gomes: Doutora em Psicologia pela Universidade do Porto (UP - Portugal), em cotutela com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: ritapsicofurg@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4092-5262


1 Endereço de contato: Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Av. Itália, km 8, bairro Carreiros, Rio Grande, RS, Brasil. CEP: 96203-900. Telefone: (53) 3293-5077. E-mail: ritapsicofurg@gmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i3.1856