Afetos e Técnicas de Profissionais da Atenção Primária à Saúde diante da Criança com Câncer
Affection and Techniques of Primary Health Care Professionals facing Children with Cancer
Afectos y Técnicas de Profesionales de Atención Primaria de Salud frente al Niño con Cáncer
Murilo Sousa Ramos
Beatriz Rihs Matos Tavares
Milena Dórea de Almeida1
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)
Resumo
Introdução: este trabalho discute sobre os sentidos e significados que a criança com câncer tem para as(os) profissionais da atenção primária à saúde. Método: pesquisa clínico-qualitativo, em que foram realizadas entrevistas individuais de questões abertas com quatro profissionais, atuantes na atenção primária à saúde de municípios baianos. Resultados e discussões: as categorias de análise foram identificadas a posteriori: afetos mobilizados pela criança com câncer e os conflitos gerados neste encontro; funcionamento do sistema público de saúde: dificuldades e potencialidades; e formas de resoluções para a autonomia do profissional. As profissionais relataram: insegurança em lidar com a criança com câncer; tristeza, desesperança, pena e angústia; despreparo emocional; impotência para cumprir com o encaminhamento, a continuidade do cuidado e a integralização da assistência. Conclusão: as entrevistadas não quiseram apenas conhecer e se aprofundar sobre o câncer infantojuvenil, mas também discutir e refletir sobre a criança com câncer atendida pela atenção básica.
Palavras-chave: Neoplasias, Criança, Atenção Primária à Saúde, Afeto, Autonomia Profissional
Abstract
Introduction: this paper discusses the sense and meaning that children with cancer have for primary health care professionals. Method: clinical-qualitative research, in which individual interviews with open questions were carried out with four professionals working in primary health care in Bahia municipalities. Results and discussions: the analysis categories were identified a posteriori: affection mobilized by the child with cancer and the conflicts generated in this meeting; functioning of the public health system: difficulties and potential; and forms of resolution for professional autonomy. The professionals reported: insecurity in dealing with the child with cancer; sadness, hopelessness, grief, and anguish; emotional unpreparedness; impotence to comply with the referral, the continuity of care and the integration of care. Conclusion: the interviewees did not want to know and go deeper into childhood cancer, but also to discuss and reflect on children with cancer assisted by primary care.
Keywords: Neoplasms, Child, Primary Health Care, Affection, Professional Autonomy
Resumen
Introducción: este trabajo analiza los sentidos y significados que los niños con cáncer tienen para las(los) profesionales de la atención primaria de salud. Método: investigación clínico-cualitativa, en la que se realizaron entrevistas individuales con preguntas abiertas a cuatro profesionales, que laboran en la atención primaria de salud en los municipios de Bahía. Resultados y discusiones: las categorías de análisis fueron identificadas a posteriori: los afectos movilizados por el niño con cáncer y los conflictos generados en este encuentro; funcionamiento del sistema público de salud: dificultades y potencialidades; y formas de resolución para la autonomía profesional. Las profesionales relataron: inseguridad en el trato con el niño con cáncer; tristeza, desesperanza, dolor y angustia; falta de preparación emocional; impotencia para cumplir con la derivación, la continuidad de la atención y la integración de la atención. Conclusión: las entrevistadas no solo querían conocer y profundizar en el cáncer infantil, sino también discutir y reflexionar sobre los niños con cáncer asistidos por atención primaria.
Palabras clave: Neoplasmas, Niño, Atención Primaria De Salud, Afecto, Autonomía Profesional
Introdução
O câncer infantojuvenil acomete pacientes abaixo dos dezenove anos e é um termo genérico para descrever diferentes doenças com característica comum, como a proliferação descontrolada de células anormais que causa efeitos destrutivos no organismo, devido a seu caráter invasivo e metastático (Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [INCA], 2019). No Brasil, estima-se que haja, anualmente, cerca de 8.500 casos novos e, para aumentar o nível de cura, o campo da oncologia pediátrica defende o diagnóstico precoce e o tratamento em centros especializados (INCA, 2019; Magalhães et al., 2016).
Para o diagnóstico precoce, a equipe do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) acompanha a criança ou o adolescente, recebe as primeiras queixas dos sinais e sintomas da doença e encaminha para a investigação diagnóstica (Ministério da Saúde, 2017a). Esta ocorre na atenção secundária e, ao confirmar a patologia, o paciente é referenciado para centros especializados, na atenção terciária, para estadiamento e tratamento. A Atenção Primária à Saúde (APS), ou atenção básica, é o primeiro nível de interlocução do usuário com o sistema de saúde público brasileiro (Sistema Único de Saúde [SUS]). Por ser organizadora da rede, as ações precisam estar articuladas e acompanhadas pela ESF (Ministério da Saúde, 2012; Ministério da Saúde, 2017b). Porém, na prática, esse percurso é precário.
Os sintomas das neoplasias infantis, que são confundidos com doenças infecciosas comuns, as dificuldades da gestão do sistema público de saúde e a formação insuficiente do profissional de saúde são exemplos de problemas que promovem avaliações e encaminhamentos incorretos, atrasam o diagnóstico e geram indicação a tratamentos ineficazes, tendo efeitos para o prognóstico da doença e qualidade de vida do paciente (Fermo et al., 2014; Gomes & Alcantara, 2018; Lima et al.,, 2018). Somado a isso, raciocinamos que há algo de ordem subjetiva do profissional de saúde com a representação da criança com câncer, tendo como efeito uma dificuldade de compreensão desse problema de saúde (Almeida, 2020). Este trabalho problematiza, a partir de estudos psicanalíticos: qual é a representação que a criança com câncer tem para os profissionais de saúde da APS?
Nos últimos cinco anos, encontramos algumas pesquisas que investigam sobre o papel da APS no diagnóstico precoce do câncer infantojuvenil e concluem sobre a importância da qualificação desses profissionais, o fortalecimento de uma rede de assistência que proporcione atendimento integral da criança em suspeita e/ou diagnosticada, a importância de campanhas de conscientização para a população leiga e a problemática do comportamento biológico da doença e das influências socioeconômicas no retardo do diagnóstico (Amorim, et a, 2016; Friestino, Corrêa & Moreira Filho, 2017; Lima, Silva, Góes, Ribeiro & Alves, 2018). O estudo de Friestino, Corrêa e Moreira Filho (2017) discute, nos resultados, os sentimentos mobilizados pelo diagnóstico do câncer em criança e adolescente e conclui que isso pode influenciar a conduta dos profissionais. Assim, nosso estudo foca em investigar as significações que a criança com câncer tem para os profissionais da APS. Não pretendemos estabelecer relações causais sobre as dificuldades desses profissionais em reconhecer o câncer em crianças e o atraso no diagnóstico, mas compreender essas representações que podem subsistir na assistência à criança doente.
Para tanto, utilizamos o referencial teórico da Psicanálise para a concepção das entrevistas e para a interpretação do material. A escuta clínica, proporcionada pela Psicanálise, possibilita a apreensão das significações e dos sentidos ligados aos aspectos da saúde e da doença e das experiências do sujeito que fala. O referencial teórico psicanalítico apresenta conceituações consistentes e permite a interlocução com outros saberes, avançando nas discussões e teorizações e possibilitando a análise das entrevistas de forma aprofundada.
Método
Utilizamos o método clínico-qualitativo que decorre de uma particularização e refinamento dos métodos qualitativos em ciências humanas, mas aplicados aos contextos dos serviços de saúde (Turato, 2013). Realizamos entrevista semiestruturada de questões abertas com profissionais de saúde atuantes na APS do SUS, com tempo de experiência superior a um ano, sendo excluídos aqueles que estivessem de férias ou de licença e que tivessem a carga horária de trabalho menor que vinte horas semanais.
Os profissionais de saúde foram convidados por chamados disponibilizados em redes sociais, em que havia um link para um texto com informações detalhadas sobre a pesquisa, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, perguntas sobre dados pessoais e as opções de aceite ou de recusa à participação. Com o aceite, a pesquisadora entrava em contato com o profissional para agendar o horário da entrevista, realizada em uma plataforma on-line, devido às medidas de prevenção à covid-19.
As entrevistas tiveram as seguintes questões norteadoras, que foram construídas para esta pesquisa: “Para você, como é para uma criança ter câncer?”; “O que passa na mente de um profissional de saúde quando vê uma criança com câncer?”; “Em sua opinião, como deve ser o tratamento da criança com câncer desde a suspeita diagnóstica até o pós-tratamento oncológico?”; “Como você se sente para atuar em uma dessas etapas do tratamento?”. Perguntas adicionais eram feitas para explorar o tema da pesquisa. As entrevistas duraram, em média, trinta e cinco minutos e se realizaram nos meses de fevereiro e março de 2021. Um discente de graduação acompanhou a entrevista com a câmera desligada e realizou as anotações das respostas, permitindo que a entrevistadora priorizasse o contexto da entrevista e evitando o uso de gravador.
Na pesquisa clínico-qualitativa, leva-se em conta o critério da saturação teórica (Turato, 2013), porém tivemos que utilizar a amostragem por conveniência. Dos sete profissionais que concordaram com a participação pelo formulário, apenas quatro aceitaram a entrevista. Assim, fechamos a amostra considerando a facilidade de acesso às participantes e o conteúdo das entrevistas realizadas que já conseguia atender aos objetivos apontados na pesquisa.
As anotações foram digitadas e analisadas seguindo este fluxo: 1. leituras flutuantes do material, para assimilar o conteúdo, sem privilegiar qualquer elemento; 2. leitura do material para apreender os elementos expressos e latentes que dialogam com o estudo; 3. agrupamento das falas das profissionais por proximidade temática, considerando sua repetição ou relevância; 4. interpretação e discussão do material a partir da articulação com a literatura e relacionadas à importância do debate para o campo da psicanálise e da saúde pública (Turato, 2013). Todas as etapas foram auxiliadas por dois discentes de Iniciação Científica, vinculados à pesquisa. A pesquisa obteve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), número do parecer: 4.470.416.
Resultados e Discussão
A pesquisa contou com quatro profissionais, sendo duas enfermeiras e duas dentistas, com atuação média de 11 anos e 6 meses na atenção primária à saúde, territorializada em duas cidades na Bahia, conforme breve apresentação das participantes na Tabela 1. Todas as participantes são identificadas por nomes fictícios:
Tabela 1
Apresentação das Participantes
Nome |
Profissão |
Tempo de atuação na Atenção Primária |
Característica do bairro da Unidade de Saúde da Família (USF) |
Característica da cidade da USF |
Ivone |
Enfermeira |
9 anos |
Bairro periférico de classe social vulnerável |
Cidade no extremo sul da Bahia de médio porte – população estimada, em 2021, de 164.290 pessoas2 |
Florence |
Enfermeira |
25 anos |
Bairro periférico de classe social vulnerável |
Cidade no extremo sul da Bahia de médio porte – população estimada, em 2021, de 164.290 pessoas1 |
Lucy |
Dentista |
4 anos |
Bairro periférico de classe social vulnerável |
Cidade no extremo sul da Bahia de médio porte – população estimada, em 2021, de 164.290 pessoas1 |
Maria |
Dentista |
8 anos |
Bairro periférico de classe social vulnerável |
Capital do estado da Bahia de grande porte – população estimada, em 2021, de 2.900.319 pessoas1 |
Apresentação das Participantes
A análise das respostas resultou na construção de três categorias: afetos mobilizados no contato com a criança com câncer; funcionamento do sistema público de saúde: dificuldades e potencialidades; e formas de resolução das dificuldades para a autonomia da profissional.
Afetos Mobilizados pela Criança com Câncer e os Conflitos Gerados neste Encontro
Os afetos apresentam uma grande importância na clínica psicanalítica, embora, teoricamente, a literatura freudiana não tenha empreendido uma definição para o termo, sendo discutido se é um conceito ou uma noção em psicanálise (Winograd & Teixeira, 2011). Apesar dessa pouca sistematização, consideramos importante exemplificar os afetos narrados pelas profissionais de saúde, pois eles são as traduções subjetivas daquilo que toca o sujeito, ou seja, algo incide sobre o sujeito e ele reproduz por mobilizações internas – afetos – que podem ser manifestas por emoções, sentimentos e atos (Laplanche & Pontalis, 2001).
Assim, Ivone informa que, ao pensar em uma criança com câncer, ela sente “muita tristeza, desesperança e incapacidade”, provocando muitas interrogações e curiosidades sobre como uma criança pode ter câncer: “Por que uma criança tem câncer?”, “Quantos casos têm aqui no município?”, “Como são os casos da doença e da cura?”. Avalia que se imaginar atendendo uma criança com câncer a “assusta”, embora não tenha “medo”, e acredita que a doença desperte tabu e resistência profissional.
Segundo o dicionário on-line de português, tabu é um substantivo masculino para designar uma “proibição que leva alguém a não fazer alguma coisa por medo de castigo divino ou sobrenatural” e é um adjetivo para caracterizar aquilo “Que não se pode fazer uso, dizer, comentar por crença, religião, fé, pudor, respeito etc.” (Dicionário Online de Português, 2021). Assim, a criança com câncer, ou o câncer infantojuvenil, pode ter o estatuto de algo que não pode ser conversado nem tratado e deve ser mantido a distância, por medo de algum castigo.
Em Psicanálise, aquilo que não é dito pode reclamar por um sentido (Debieux, 2001). Isso porque o não dizer sobre algo que “assusta” significa que há um equilíbrio aparente sobre um tema que mobiliza afetos subjetivos e que tem efeitos nas ações. Para Freud (1915/1996c), cada experiência cria uma impressão psíquica carregada de certo valor afetivo, e este nunca pode ser recalcado, mas sua impressão psíquica, sim. Recalque é o processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e representações e cuja realização afetaria o equilíbrio do funcionamento psíquico do sujeito (Roudinesco & Plon, 1998). O afeto é, então, uma quantidade de excitação psíquica que se liga a uma representação ou ideia e pode dela se deslocar para outra representação ou ideia.
Assim, a representação “criança com câncer” desperta afetos que têm ligação com representações que tratam da história subjetiva de cada um. E, diante da ausência de espaço para elaborar os afetos e suas representações, o sujeito pode silenciar suas mobilizações, construir respostas que são, comumente, pela via de dogmas religiosos ou pela via das fantasias subjetivas, ou agir para proporcionar a descarga afetiva (Almeida, 2020). A fantasia é um conceito originário da obra freudiana e faz parte de conteúdos conscientes e inconscientes (Laplanche & Pontalis, 2001). Na fantasia,
. . . o sujeito forja, para si mesmo, cenas, episódios, romances e ficções, sob a forma de devaneios diurnos, que podem ou não tomar consciência, estando, portanto, suscetíveis às formações do inconsciente, como os atos falhos, os sonhos e os sintomas. Lacan esclarece que as fantasias não se reduzem ao registro imaginário e têm a função primordial de defesa do psiquismo diante da angústia e do trauma (Almeida, 2020, p. 114).
A falta de espaços para informação e para diálogos sobre a criança e o adolescente com câncer pode mobilizar na profissional de saúde uma série de fantasias e conjecturas, como as dúvidas e curiosidades de Ivone. Lucy também traz esse aspecto. Ela informa, no princípio da entrevista, que não tem conhecimento sobre a doença, nunca teve contato com uma criança com câncer nem com quem sobreviveu, pondo um limite nas suas narrativas. Associa a criança com câncer a sofrimento e perdas, exemplificando a queda do cabelo e a distância de casa, da família, da escola e dos amigos. Isso desperta uma comoção que não sabe nomear o que é, pois “não é pena, mas é próximo à pena”. Diferentemente de Maria que, embora também associe a criança com câncer a sofrimento, ao vislumbrar, pensa: “É uma criança e já passa por tudo isso, ela é uma ‘fortaleza’, pois Deus dá o frio conforme o cobertor”.
O sentimento de pena, e, por aproximação sinonímica, o de piedade e de compaixão, manifesto na fala de Lucy, remete-nos aos conceitos psicanalíticos de transferência e contratransferência, tidas como sentimentos afetuosos e hostis presentes na relação médico-paciente e que remetem à história de vida de cada um. O fenômeno transferencial é comum a todas as relações interpessoais, porém, em uma relação analítica, pode ser manejado pelo médico para promover e impulsionar o tratamento (Freud, 1905/1996a; Freud, 1912/1996b). Por outro lado, se a(o) profissional falha nesse manejo, a transferência se constitui como resistência ao tratamento. Nessa linha de raciocínio:
. . . o médico não fica indiferente às fantasias e aos sentimentos transferenciais vividos pelo paciente. . . . o médico, é mobilizado durante o processo terapêutico pelas experiências transferenciais do paciente e por suas próprias fantasias e afetos, frutos de sua história de vida, que se atualizam e tendem a se repetir nesse processo (Volich, 2016, p. 92).
No caso do exercício da psicanálise, é necessário que o praticante da teoria reconheça, elabore e trabalhe com os fenômenos transferenciais e contratransferenciais, em sua própria análise, como um determinante ético para o exercício de sua prática clínica. As demais profissões da saúde não abarcam essa discussão em seu processo formativo; assim, percebemos, na fala de Lucy, uma projeção de seus sentimentos enquanto mãe: “Por ser mãe, penso que a criança doente poderia ser minha filha e eu sinto uma imensa vontade de cuidar”. Isso dificulta que ela entre em contato com a criança que está a sua frente, vendo-a apenas como um ser fragilizado e vulnerável. Apesar da ausência dessa discussão na formação da maioria das profissões de saúde, algumas profissionais, como Florence, reconhecem a importância de trabalhar as suas questões afetivas em um processo psicoterapêutico pessoal: “Retomei minha terapia pouco antes da pandemia [da covid-19], ainda bem, porque não sei como seria se não tivesse retomado, a psicoterapia me ajuda a lidar no dia a dia de meu trabalho”.
Além do próprio trabalho psicoterapêutico ou psicanalítico, outros recursos podem ser utilizados pelas profissionais para lidar com os afetos mobilizados diante de uma criança com câncer. Lucy aponta que precisaria se aproximar da temática vivenciando, na prática, por meio de visitas a instituições de assistência oncológica. As dúvidas que Ivone põe no contexto da entrevista também podem indicar uma tentativa de elaboração de suas dificuldades, caso ela possa suportar a angústia decorrente da ausência de algumas respostas, como ela mesma refere que se sente incapacitada diante da criança com câncer e de sua família: “Confundo o lado religioso, profissional, sentimental e, em todos, não tenho palavras para confortá-los, estaria paralisada em frente a essa situação”. Assim Ivone revela conflito entre querer se aproximar da temática, ao aceitar participar da entrevista, por exemplo, e fugir desse contato ao vislumbrar essa possibilidade:
Uma vez, realizei ações de enfermagem num centro de reabilitação para tratamento de doenças crônicas e me deparei com uma criança em uso de bolsa de colostomia. Não tive estrutura psicológica para voltar a trabalhar no dia, pois estava muito abalada e sensível com a situação.
Já Florence e Maria parecem lidar com seus afetos de forma a construir condutas técnicas/profissionais. Florence refere sentimento de impotência ao ver uma criança com câncer, pois gostaria de lhe abraçar e dar a cura. Porém, diante dessa impotência, tem a possibilidade de lhe oferecer apoio profissional: “Sei que ela está passando por luta, precisa do meu apoio, todo carinho necessário, amparo, o tratamento não é fácil, ela tem que passar por este momento de uma maneira mais suave possível”. E ela situa sua função na APS como um elo dentro da rede, por isso deve cuidar do acolhimento, encaminhamento e acompanhamento: “Não é encaminhar e largar lá, a equipe precisa acompanhar, saber se está fazendo o tratamento, reabilitação, se precisa de apoio financeiro via CRAS [Centro de Referência à Assistência Social]”. A impotência é a sensação diante de um limite, e a reação do sujeito é a luta, percebendo que há outras possibilidades diante daquele limite (Moretto, 2019). Já a impossibilidade é a sensação diante de perda, tendo como reação o luto.
Assim, o direcionamento técnico para os limites impostos pelos cuidados ao paciente pediátrico oncológico é uma forma de enfrentamento. Concordamos com Akimoto Júnior e Moretto (2016, citado por Moretto, 2019, p. 64): “não confundam competência técnica com indiferença, uma vez que temos visto o potencial iatrogênico da indiferença no campo da saúde”. Maria também traz questões técnicas sobre seu possível contato com uma criança com câncer, indicando que, diante dos afetos despertados, ela os direciona para a resolução da situação de maneira profissional. Ao refletir sobre essa condução dos afetos para o manejo técnico, considera importante discutir os recursos que o sistema público de saúde brasileiro oferta para essas profissionais cuidarem da criança/adolescente com câncer e suas famílias.
Funcionamento do Sistema Público de Saúde: Dificuldades e Potencialidades
O SUS, formalizado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196 e regulamentado pela Lei n. 8.080/1990, é um marco da história brasileira e propõe que a saúde é um direito de todos garantido pelo Estado (Paim, 2009). A APS, primeiro nível de interlocução SUS-usuário, tem como intuito a promoção e proteção da saúde, a prevenção de doenças, a solução de possíveis agravos, a redução de danos e o encaminhamento a outros níveis de complexidade. O programa administrativo relacionado à APS é a Estratégia Saúde da Família (ESF), que presta atendimento multiprofissional às comunidades por meio de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Documentos divulgados pelo Ministério da Saúde apontam que o SUS é o único sistema público de saúde do mundo que atende mais de 190 milhões de pessoas, sendo 80% delas dependentes exclusivamente dele para alguma assistência à saúde (Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde [UNA-SUS], 2021).
Em relação a pacientes com câncer, os elevados índices do perfil oncológico proporcionaram a criação de unidades específicas para o tratamento (Silva et al., 2020). No âmbito do atendimento do SUS, com o propósito de ampliar os serviços e prover medidas de prevenção ao câncer, essas podem ser governamentais ou filantrópicas. Entretanto, mesmo com o sistema público articulando um conjunto de políticas para estruturar a assistência ao paciente oncológico, este enfrenta problemas desde o seu diagnóstico, tratamento, referência, contrarreferência e acompanhamento pós-tratamento (Silva et al., 2020, Batista et al., 2015). A referência e contrarreferência são formas de comunicação na rede e se referem, respectivamente, ao encaminhamento do usuário para um atendimento com níveis de especialização mais complexos e a condução deste para um atendimento em nível mais básico, devendo ser a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima do domicílio dele (Oliveira et al., 2021).
Pensando em uma rede articulada de atenção ao paciente oncológico pediátrico e sua família, é necessário que a ESF os considere como uma população prioritária e realize uma escuta qualificada das necessidades desses pacientes para promover um atendimento humanizado e estabelecer vínculos com o paciente e seus familiares (Ministério da Saúde, 2017a). Contrapondo ao exposto na legislação do SUS, Ivone relata a dificuldade de se ter uma atenção à criança para identificar os sinais e sintomas oncológicos, pois, atualmente,
O foco da atenção básica é a gestante, o diabético e o hipertenso . . . A criança até os dois anos de idade é acompanhada pela puericultura, suspenso pela pandemia, mas, a partir dos dois anos, o acompanhamento que deveria ser anual acaba não sendo feito, e a criança só vai à unidade quando apresenta alguma coisa, e aí pode já ser tarde para o diagnóstico precoce em oncologia.
Também, muitos profissionais da saúde da APS não têm contato com pacientes oncológicos pediátricos, porque, além de ser uma patologia rara quando comparado ao câncer adulto, há falhas na contrarreferência. Isso é corroborado por Maria, que informa que nunca atendeu nem participou do diagnóstico, tratamento ou pós-tratamento e se questiona: “Por que nunca atendi uma criança com câncer?”, “Por que não acompanho paciente referenciado para outros níveis de atenção?”, “Onde está a falha [da comunicação na rede]?”.
Sobre essa dificuldade de contato, um estudo com enfermeiros apontou que nenhum deles trabalhou em oncologia pediátrica, e apenas três (de catorze) realizaram capacitação sobre o assunto (Lima, 2018). Também, evidenciou-se a falta de conhecimento sobre os sinais e sintomas do câncer infantojuvenil por esses profissionais. Lucy lamenta a falta de capacitação do profissional de saúde em lidar com pacientes oncológicos pediátricos e sugere que o SUS deveria prepará-los, ainda, para lidar emocionalmente com crianças com câncer, afirmando: “O profissional tem que ter uma base emocional muito bem formada . . ., e o profissional não tem isso”. Apesar de Lucy fazer referência a um “preparo emocional”, sabemos que a Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO) (Ministério da Saúde, 2005) indica a educação permanente e a capacitação dos profissionais atuantes nessa área como componentes fundamentais para que haja um atendimento eficiente e integral à criança com câncer.
Ainda sobre as dificuldades de funcionamento do SUS, Ivone conta sobre a demanda exacerbada da ESF, que atende uma população muito maior que a preconizada pelo SUS. “Era para ser um contingente populacional de 3.000 pessoas, porém atendemos 4.700 - 5.000 pessoas”. Isso implica em escolher qual população será assistida mais frequentemente que outras e em dificuldades de acompanhar o encaminhamento de pacientes para a realização de exames e procedimentos que não podem ser feitos na UBS. Mesmo com essa prática, a PNAO (Ministério da Saúde, 2005) aponta a necessidade de esquematizar uma estratégia de organização da rede de atenção à saúde, a qual descentraliza a assistência oncológica dos serviços de alta complexidade e passa a envolver uma linha de cuidado em todos os níveis de atenção e de atendimento à saúde.
Florence declara “estresse e impotência” por não conseguir gerir algumas demandas e situações ao referenciar seus pacientes para outros serviços, como a família ficar de madrugada em uma fila para marcar um atendimento para o paciente, a demora no agendamento para a realização de exames, procedimentos e consultas e a não disponibilização de medicamentos que deveriam ser distribuídos gratuitamente. Declara: “Me sinto um grãozinho de areia”; além de ela não ter o controle acerca do funcionamento da rede, sabe a relevância do atendimento integral ao paciente, conforme a PNAO. Todo atendimento a crianças e adolescentes com câncer deve ser ágil, objetivo e compartilhado entre os serviços vinculados à rede que abrange a área oncológica em saúde (Ministério da Saúde, 2017a). Por isso, o infantojuvenil em investigação diagnóstica, tratamento oncológico em centro especializado ou em fase de acompanhamento após o tratamento continua sob responsabilidade da ESF à qual pertence. A ESF deve ser o elo entre as assistências básica e de alta complexidade oncológicas, conforme já exemplificado em uma fala de Florence, na seção anterior.
O que percebemos nas entrevistas é que, a despeito da legislação avançada do SUS, a aplicação é descaracterizada, conforme Maria indica:
O Programa ESF está muito descaracterizado, fiquei mais de 1 ano e meio sem agente comunitário de saúde [ACS], nem posso considerar ESF, eu não tinha minha área delimitada . . . não dá para fazer visitas domiciliares . . . Eu fico triste porque as unidades novas não têm um ACS, e como faço para chegar nas casas e conhecer as famílias? Eu considero inacreditável. A Política é tão bonita, mas vai se perdendo.
Ainda não há pesquisas ou formas de avaliação sobre as vivências e experiências, em todo o Brasil, no uso do SUS sob a perspectiva do usuário e da gestão (Cecílio & Reis, 2018), porém, corroborando outros estudos já apontados (Fermo et al., 2014; Lima, 2018 e Gomes & Alcantara, 2018), as entrevistadas contaram suas dificuldades no uso desse sistema e, diante disso, elas recorrem a iniciativas próprias, o que será discutido na próxima seção.
Formas de Resolução das Dificuldades para a Autonomia da Profissional
Entendemos por autonomia a capacidade do sujeito de agir ativamente sobre o mundo e de interferir sobre sua rede de dependências, e isso depende de ele ter conhecimento e possibilidade de reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo (Campos & Campos, 2006). Assim, a autonomia não é um valor absoluto nem um bem estático, ela é sempre relativa e dinâmica, e sua produção depende de um conjunto de fatores externos e internos ao sujeito, como a existência de leis democráticas e de políticas públicas, a cultura e o acesso à informação, a capacidade individual de utilizar o conhecimento e a possibilidade de reflexão crítica sobre si mesmo e sobre o mundo. Em saúde pública, defende-se a coconstrução de autonomia, que se aproxima do posicionamento ético do cuidado de si foucaultiano, um modo de existência implicado e crítico (Penido & Romagnoli, 2018).
Ivone e Florence relatam auxílio de recursos externos para ampliar suas possibilidades de cuidado, como parcerias com universidades, escolas do bairro e organizações não governamentais (ONGs) para ajudar em ações que a UBS não consegue realizar. Ivone ressalta que as UBSs que podem receber acadêmicos para estágios e internatos demonstram um tratamento diferenciado ao usuário, pois os estudantes “ajudam na reflexão, na curiosidade e mobilizam a equipe de querer saber”, rompendo com ações automatizadas que a rotina pode proporcionar.
Florence relata que trabalha há 20 anos em atenção básica; destes, tem 15 anos na mesma UBS e percebe que estabeleceu vínculo com a comunidade e com os sujeitos, colaborando para o olhar e a escuta qualificados. Esses são identificados como tecnologias leves em saúde que proporcionam encontro e práticas de diálogo e de acolhimento, possibilitando a integralidade da atenção em saúde e a identificação das reais demandas dos usuários (Penido & Romagnoli, 2018). Isso ocorre pelo “trabalho vivo em ato na saúde, potencializando redes vivas de cuidado . . . campo privilegiado para exercício do autogoverno e de re-aproximação do fazer em saúde com os projetos de vida das pessoas” (Santos et al., 2018, p. 862 e 863).
Ao integrar as tecnologias leves, qualifica-se o cuidado em saúde e cuidar não só como ajudar o outro nos momentos de necessidade, mas oferecer recursos para a construção da autonomia e, consequentemente, produzir implicação do sujeito no processo, sendo indispensável dispor do acolhimento, construir vínculo, partilhar tarefas e possibilitar a corresponsabilidade (Campos & Campos, 2006; Rodrigues et al., 2017; Santos et al., 2018). A entrevistada Maria exemplifica a dimensão da palavra cuidado: “Eu quero ter o cuidado de ver o histórico do meu paciente, fazê-lo se sentir seguro, orientar, acompanhar, buscar um centro de especialidade, . . . acompanhar até a atenção secundária, terciária e conversar com a família”, indicando que essas ações implicam no fortalecimento da relação paciente-equipe multiprofissional e ajudam no atravessamento da experiência de adoecimento.
Acrescentamos que a preocupação no aperfeiçoamento desse cuidado não deve ser unilateral, apenas do profissional para o usuário. As entrevistadas apontam que carecem de políticas públicas para “cuidar do cuidador”. Lucy lamenta a falta de capacitação do profissional de saúde para lidar com pacientes oncológicos pediátricos e sugere que o SUS deveria prepará-los, também, emocionalmente, afirmando: “O profissional tem que ter uma base emocional muito bem formada e o profissional não tem isso”. Kupermann (2016, citado por Moretto, 2019, p. 63) destaca que o cuidado de si é uma condição necessária à(ao) profissional de saúde e inclui “dispor de uma condição psíquica que favorecesse alguma flexibilidade para lidarmos com nossos próprios afetos, suscitados pelas experiências com as quais nos deparamos em nossas práticas”. E é isso que ajuda na disposição da(o) profissional em estar verdadeiramente disponível para tratar pessoas em sofrimento.
A psicanálise problematiza a noção do cuidado assistencial-universalizante e a mera aplicação de protocolos normatizadores e defende considerar a singularidade nessa oferta (Roosli et al., 2020). Com isso, abre-se a possibilidade de ressignificação do cuidado e de implicação nas formulações e execução das ações de todas as pessoas envolvidas no processo. Porque cuidar do cuidador não é só oferecer conhecimentos sobre o câncer infantojuvenil, mas também proporcionar condições para o profissional valorizar, elaborar e lidar com os aspectos subjetivos despertados no encontro com a criança com câncer.
Considerações Finais
Os sentidos e significados atribuídos à criança e ao adolescente com câncer pelas profissionais da atenção básica são mediados por termos que envolvem seus afetos e conflitos para lidar com eles, suas dificuldades e autonomia para fazer funcionar o SUS. Conclui-se que as entrevistadas não querem apenas conhecer e se aprofundar sobre o câncer infantojuvenil, mas também discutir e refletir sobre a criança e o adolescente com o câncer atendidos pela APS. Por isso, como produto desta pesquisa, foi elaborado um material de apoio para ser utilizado em grupos de conversações, pois defendemos que os espaços de educação e capacitação sejam ampliados para diálogos de construção de saber e elaboração de afetos. O material pode ser acessado, livremente, por este link (http://200.128.51.16:8080/pergamumweb/vinculos/00000e/00000efe.pdf), e é disparador para um novo projeto realizado pela mesma equipe de pesquisa.
Esta pesquisa não pode analisar as questões de gênero que atravessam os cuidados em saúde nem fez um comparativo entre profissionais da APS que já tiveram contato com criança com câncer e as que não tiveram. São lacunas importantes que podem ser investigadas por pesquisa com este direcionamento e com um público participante maior.
Referências
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Recebido em: 28/11/2021
Última revisão: 03/11/2022
Aceite final: 25/02/2023
Sobre os autores:
Murilo Sousa Ramos: Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Centro de Formação em Ciências da Saúde, Campus Paulo Freire, Teixeira de Freitas. E-mail: murilosousaramos@gmail.com, ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4175-1447
Beatriz Rihs Matos Tavares: Estudante da Graduação em Medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Centro de Formação em Ciências da Saúde – Campus Paulo Freire, Teixeira de Freitas. E-mail: beatrizrihs@gmail.com, ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4373-1159
Milena Dórea de Almeida: Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Centro de Formação em Ciências da Saúde, Campus Paulo Freire, Teixeira de Freitas, BA. Coordenadora da pesquisa “A Criança com Câncer: Perspectivas do Profissional de Saúde da Atenção Primária”. E-mail: milena.dorea@ufsb.edu.br, ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3349-8231