“Não Tenho Filhos e Não Quero”: Questões Subjetivas Implicadas na Opção pela Não Maternidade

“I Neither Have Nor Want to Have Kids”: Subjectives Issues Implied in Non-Maternity Option

“No Tengo Hijos Ni Quiero”: Cuestiones Subjetivas Implicadas en la Opción de No Maternidad

Daniele Fontoura da Silva Leal1

Valeska Zanello

Universidade de Brasília (UnB)

Resumo

A não maternidade tem se tornado uma opção crescente no Brasil, onde atualmente 37% das mulheres encontram-se nesse grupo. Este artigo teve como objetivo levantar quais aspectos subjetivos estão envolvidos nessa opção. Tratou-se de pesquisa qualitativa, na qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dez mulheres, convocadas a partir da técnica “Bola de Neve” (Snowball Sample), sendo cinco brancas e cinco negras, de diversas orientações sexuais e classes sociais, sem problemas de fertilidade e que escolheram não ter filhos. As entrevistas foram submetidas à Análise de Conteúdo (Bardin, 1977) e foram elencadas quatro categorias. Os resultados apontam que essas mulheres percebem a maternidade como um lugar de grande exigência social e forte renúncia dos projetos pessoais, para além de projetos profissionais. O não desejo de maternidade é ainda estigmatizado socialmente, e as maiores cobranças pela maternidade são feitas a mulheres heterossexuais. Novos estudos a partir da perspectiva de gênero são recomendados.

Palavras-chave: maternidade, mulher, não maternidade; gênero

Abstract

Non-maternity has become a growing option in Brazil, where currently 37% of women are in this group. This article aimed to raise which subjective aspects are involved in this option. It was qualitative research, in which interviews were carried out with ten women selected using the “Snowball Sample” technique, being five white and five black of different sexual orientations and social classes, with no fertility problems and voluntarily childless. The interviews were submitted to Content Analysis (Bardin, 1977), and four categories were listed. The results indicate that these women perceive motherhood as a place of great social demand and strong renunciation of personal and professional projects. The lack of desire for motherhood is still socially stigmatized, and the greatest demands for motherhood are made to heterosexual women. New studies from a gender perspective are recommended.

Keywords: maternity, women, non-maternity, genre

Resumen

La no maternidad se ha convertido en una opción creciente en Brasil, donde actualmente 37% de las mujeres están en este grupo. Este artículo tuvo como objetivo plantear qué aspectos subjetivos están involucrados en esta opción. Fue una investigación cualitativa. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a diez mujeres convocadas a partir de la técnica de muestreo “Bola de Nieve” (Snowball Sample), siendo cinco blancas y cinco negras, de diferente orientaciones sexuales y clases sociales, sin problemas de fertilidad, que optaron por no tener hijos. Las entrevistas se sometieron a Análisis de Contenido (Bardin, 1977), y se enumeraron cuatro categorías. Los resultados indican que estas mujeres perciben la maternidad como un lugar de gran demanda social y fuerte renuncia a proyectos personales y profesionales. El no deseo por la maternidad sigue siendo socialmente estigmatizado, y las mayores demandas de maternidad se hacen a mujeres heterosexuales. Se recomiendan nuevos estudios desde una perspectiva de género.

Palabras clave: maternidad, mujeres, no maternidad, género

Introdução

A opção pela não maternidade em mulheres biologicamente capazes de procriar tem crescido nas últimas décadas no Brasil (Fidelis & Mosmann, 2013; Leal & Zanello, 2019), sendo, no entanto, um fenômeno reconhecido há mais tempo em países desenvolvidos, tais como Estados Unidos da América (EUA), Canadá e vários países europeus. No Brasil, atualmente, estima-se que 37% das mulheres em idade fértil não querem ter filhos (Machado et al., & Sakamoto, 2020). Esse fenômeno tem desdobramentos que impactam o índice de crescimento populacional, visto que a taxa de reposição populacional no Brasil está abaixo da esperada, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015), e tende a decrescer ainda mais.

As escassas pesquisas nacionais (Leal & Zanello, 2019; Emídio & Gigek, 2019; Soares & Santos, 2020; Moraes & Féres-Carneiro, 2022), bem como a literatura internacional, têm apontado vários fatores que parecem estar envolvidos nessa decisão, tais como: (a) mudanças no papel e no entendimento sobre o que é ser mulher e como a maternidade impacta a vida das mulheres (Machado & Penna, 2016); (b) características populacionais que podem estar correlacionadas, tais como aumento do nível de escolaridade, aumento nos ganhos financeiros da mulher, menor envolvimento com religião ou mesmo participação em algum movimento emancipatório de mulheres (Leal & Zanello, 2019); (c) carreira profissional, a qual figura como um lugar de grande realização, gratificação emocional e financeira. Secundariamente, a maternidade foi citada como uma possível perda da liberdade (Smeha & Calvano, 2009); (d) bem-estar psicológico e ganhos em saúde mental (Delyser, 2012). De todos os motivos, destacam-se aqueles que colocam em xeque papéis de gênero historicamente construídos e naturalizados em relação às mulheres, sobretudo os relacionados à maternidade.

Como aponta Badinter (1985), a maternidade não traduz a mera experiência fisiológica da procriação, sendo o amor materno algo construído histórica e culturalmente. No ocidente, houve, paulatinamente, a partir do século XVII-XVIII, uma crescente atribuição e concentração das responsabilidades dos cuidados com os bebês/crianças na figura da paridora (Badinter, 1985; Federici, 2017; Zanello, 2018). O objetivo era combater a mortalidade infantil, garantindo o crescimento da população. Este jogo foi operado pelo Estado e pela Igreja Católica.

Posteriormente, foi atribuído a elas o dever do cuidado e da educação, e, por fim, com o advento do discurso científico do século XX, deu-se a construção da maternidade científica (Freire, 2008), advinda de campos de saber, tais como a medicina, a pedagogia, as psicologias e a psicanálise. Desde então, a mãe se tornou cada vez mais uma peça fundamental na compreensão do desenvolvimento da criança. Ou seja, se algo der errado, questiona-se a qualidade da maternagem recebida (Zanello, 2018). Firmou-se, assim, o sentimento de culpa materno (Badinter, 1985).

Segundo Zanello (2018), na cultura brasileira atual, mulheres (em suas interseccionalidades) são interpeladas por dois dispositivos: o amoroso e o materno. O dispositivo amoroso aponta para a aprendizagem afetiva de certa forma de amar, em que ser escolhida (e manter-se como tal) por um homem tem um valor central em sua mulheridade. A metáfora usada pela autora é a prateleira do amor. Essa prateleira é regida por um ideal estético construído no início do século XX e tem como valores: ser branca, loura, magra e jovem. O amor seria identitário para as mulheres, e grande parte de sua economia psíquica está voltada para este âmbito. Sobre o dispositivo materno, Zanello (2018) aponta que se trata de um processo afetivo marcado pelo heterocentramento: isto é, no qual as mulheres aprendem a priorizar as demandas dos outros, em detrimento das próprias e de si mesmas. Também se relaciona com o lugar de cuidado e disponibilidade ao outro. A maternidade biológica seria o ápice da exigência do funcionamento desse dispositivo, pois a expectativa é de que o filho ocupe lugar central e único na vida das mulheres. Simultaneamente, espera-se que sejam suprimidos sentimentos ambivalentes ou negativos em relação a ele e/ou à maternidade.

Como forma de interpelar os dispositivos, Zanello (2018) destaca a importância das tecnologias de gênero, termo cunhado por Lauretis (1984). Segundo esta última autora, as tecnologias de gênero seriam produtos culturais que não apenas retratam ou representam os valores e ideais de gênero, mas os incitam e reforçam. Ou seja, constituem-se como verdadeiras pedagogias afetivas (Zanello, 2018). As principais tecnologias de gênero em nossa cultura, hoje, seriam as mídias (filmes, músicas, propagandas etc.).

Levando-se em conta essas questões, é necessário perguntar: o que faz com que cada vez mais mulheres brasileiras optem pela não maternidade? Que fatores são levados em consideração nessa decisão? Que visão da maternidade se faz presente? Como é compreendida a vida sem filhos? O presente estudo tem, assim, o objetivo de levantar os aspectos subjetivos que possam estar envolvidos na opção pela não maternidade.

Método

A presente pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (UnB), sob parecer número 2.624.737. Tratou-se de um estudo qualitativo, com entrevistas semiestruturadas realizadas com 10 mulheres residentes na cidade de Brasília, DF. De março a agosto de 2018, foi lançado um convite para participação da pesquisa via redes sociais das duas autoras, com opções de telefone e e-mail para contato. Algumas participantes que demonstraram interesse também indicaram para a pesquisa outras conhecidas que não desejavam ter filho, configurando a técnica de “bola de neve” (snowball sample), tal qual descrito por Vinuto (2014). As entrevistas foram finalizadas quando foi atingido o grau de saturação teórica (Fontanella & Júnior, 2012; Vinuto, 2014), ou seja, quando os conteúdos começaram a se repetir, o que foi identificado após a décima entrevista.

Os critérios para inclusão das participantes foram: ser mulher do ponto de vista biológico; não ter nenhum problema de fertilidade conhecido; ter idade a partir dos 25 anos; residir no Distrito Federal, DF; declarar não ter filhos por opção; concordar e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de exclusão foram: estar impossibilitada física ou emocionalmente de participar da entrevista (por observação da pesquisadora ou por declaração da própria entrevistada); ter algum transtorno mental que impossibilitasse a compreensão da entrevista; não assinar ou concordar com o TCLE; algum elemento no histórico de vida que fosse entendido como impeditivo nos critérios de inclusão.

As características das participantes foram: a) idades entre 27 e 43 anos; b) cinco mulheres brancas e cinco negras; c) cinco heterossexuais, três bissexuais e duas homossexuais; d) ­salário entre 1,7 e 10 salários mínimos (salário mínimo brasileiro vigente à época: R$ 954,00); e) nível escolar superior, algumas com titulações de Mestrado e Doutorado. Todas declararam, até o momento da entrevista, o não desejo de ter filhos.

As entrevistas tiveram a duração média de uma hora e meia. Foi usada a modalidade semiestruturada de entrevista, o que permitiu a realização de entrevistas direcionadas aos objetivos propostos, bem como certa liberdade de respostas de acordo com a variedade de conteúdos que puderam ser construídos ao longo do processo de pesquisa (Gil, 2019).

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Posteriormente, as duas pesquisadoras, separadamente, exploraram o material e realizaram o levantamento dos temas, os quais foram comparados, e, a partir daí, foram elencadas as categorias, segundo a técnica da Análise de Conteúdo (Bardin, 1977). Os trechos das entrevistas que exemplificam os temas dentro das categorias, logo a seguir, aparecem destacados em negrito e identificados com a sigla (P) de Participante, seguida do número sequencial e as características de cor e orientação sexual. Tais características foram selecionadas na tentativa de contemplar mulheres em suas diversas interseccionalidades (Gonzalez, 1984; Crenshaw, 1989; Zanello, 2018).

Resultados e discussão

A partir das entrevistas, quatro categorias foram elencadas: (1) “Histórias fora da caixinha do ser menina”; (2) “O que significa maternidade/ter um filho”; (3) “Não ter filho: por que e pra quê?”; e (4) “Pressão social versus apoio”.

Histórias fora da caixinha do ser menina

Esta categoria diz respeito ao reconhecimento das entrevistadas de se considerarem diferentes do esperado, pela sociedade, para uma menina/mulher, na maneira de se comportar, brincar, pensar, agir e mesmo em relação a cumprir certo ideal estético.

Ela apareceu em diversos relatos, primeiramente no que diz respeito a experiências infantis, nas quais as entrevistadas (P2, P6, P4, P7) se sentiam desconfortáveis em relação ao que uma menina deveria ser ou fazer. A entrevistada P2 (branca, lésbica), por exemplo, relatou:

Sempre fui uma criança que era bagunceira, gostava de aprontar, gostava de brincar, queria brincar. Essa coisa de eu ser mais espevitada, mais brincalhona, agitada, sempre foi um certo incômodo, um certo impasse na minha família. . . “Minha filha, você não pode fazer isso, você é uma menina, você é uma mocinha”.

As brincadeiras são verdadeiras tecnologias de gênero (Santos et al., 2018; Silva et al., 2017; Zanello, 2018) e, não à toa, em países sexistas como o nosso, perdura a divisão entre os tipos de entretenimento tidos como tradicionais “de meninas” (brincar de bonecas, casinha, cozinha etc.) e os de meninos (carrinho, luta etc.). Foi evidente, na maior parte das entrevistas, o quanto as participantes já se viam como desgarradas dessa projeção de futuro para si mesmas, do que é ser mulher:

A minha melhor amiga falava “Vamos brincar de casinha?”, eu falava “Vamos”, mas nunca era uma família tradicional, eu era uma mãe solteira que tinha adotado uma criança e tinha outra criança. . . Eu era muito diferente, fora do padrão que é esperado pelas pessoas. (P6, negra, heterossexual).

Já na fase da adolescência, três participantes (P1, P2 e P4) relataram comportamentos que elas mesmas associaram à rebeldia ou a uma afirmação fora dos padrões de feminilidade. “Acho que eu sempre fui caracterizada como mais rebeldezinha, né? Acho que desde a primeira infância com uma personalidade forte, mais rebeldezinha” (P2, branca, lésbica).

A rebeldia ocorreu como reação a padrões impostos por ambientes religiosos, militares (família com pai militar ou estudar em colégio militar), ou morais-familiares. “Eu fui uma adolescente rebelde, tive muitos conflitos com meus pais. Meu pai sempre foi muito radical com isso, não podia ir dançar, não podia ir pra festa” (P1, branca, heterossexual). O movimento feminista a partir do punk rock [subgênero musical do rock’n’roll] proporcionou, nesta etapa da vida, tanto espaço de quebra de padrões ainda entendidos como o da feminilidade como meio de acolhimento quando do rompimento com esses valores. A participante P4 (branca, bissexual) afirmou:

Desde adolescente eu nunca quis ter filho, quando eu tinha uns 16 anos eu comecei a frequentar muito show de punk e aí conheci feminismo dentro do punk. Eu não queria ter filhos, mas eu não sabia como argumentar, e aí nisso eu vi uma forma de argumentar não só não ter filho, mas muitas outras questões. . .

Outro aspecto importante de discordância em relação aos ideais e padrões de gênero diz respeito a questões estéticas, sobretudo relacionadas ao cabelo e ao corpo (peso). O sofrimento por estar fora do padrão foi ainda mais intensificado no caso das mulheres negras, por já não cumprirem o ideal de branquitude tão presente em um país racista como o Brasil (Gouveia & Zanello, 2019). P8 (negra, heterossexual) relatou:

Sempre fui gordinha, aí teve a época do aparelho, teve a época do cabelo. . . Eu fui uma pessoa que aos sete anos a mãe já alisava o cabelo . . . Eu não me via como negra, eu sabia que tinha alguma coisa errada por ser alvo de tantas coisas, mas não sabia o que era.

P10 (negra, lésbica) enfatizou também o papel que seu cabelo exerceu em sua dissonância com os padrões estéticos e em sua autoafirmação como mulher negra:

A própria questão de ter que modificar a estrutura do cabelo, de passar processos horrorosos de alisamento, descaracterização do que era o cabelo . . . você se olhar no espelho, você não se reconhecer, quase nem como ser humano, quem dirá como uma mulher, né?

No caso das mulheres lésbicas ou bissexuais, estar acima do peso ou com um cabelo curto, identificado socialmente como pertencente à estética masculina, serviu como uma solução de compromisso para se proteger contra as investidas sexistas de homens e evitar serem colocadas em um lugar ressentido como desagradável pelas participantes. P2 (branca, lésbica), por exemplo, engordou 40 quilos no ensino médio. Sobre perder peso e retornar talvez a um “bom” lugar da prateleira, tornando-se desejável no mercado amoroso heterossexual, comentou: “Quando eu emagreci, comecei a ser cantada, isso me perturbava num nível insuportável e eu percebi que existia uma função naquele peso, ele me protegia de alguma coisa”. Logo ela arrumou outra estratégia para se proteger do machismo estrutural:

Eu tive alguns incômodos dessa experiência com os homens, de ser cantada na rua. Depois que eu emagreci, comecei a ter esses fantasmas, uma das minhas estratégias foi cortar o cabelo mais curto e adotar esse visual que eu tenho hoje, mas, ao mesmo ­tempo, eu comecei a me sentir muito mais feliz nesse estilo, dessa forma eu me senti 100% blindada dos homens, é imediato, é incrível.

Por fim, um outro aspecto que se destacou na fala das entrevistadas (P2, P6, P7, P8, P10) foi a ênfase sobre a importância do estudo e o investimento nele, e não nos vínculos amorosos (românticos), o que aponta para um funcionamento diferenciado na relação com o dispositivo amoroso. Como apontado anteriormente, o dispositivo amoroso diz respeito a certa forma de amar que torna central, na vida das mulheres, o ser escolhida, arrumar uma relação e mantê-la. No caso das entrevistadas (P6, P7, P8, P10), o estudo e o investimento na vida profissional (carreira) como forma de mobilidade social ocupou ou dividiu o lugar com essas preocupações. Isso ocorreu sobretudo no caso de mulheres provenientes de famílias negras e/ou mais pobres, mas também em mulheres cujas famílias prezavam por sua independência financeira como mulher. No primeiro caso, o estudo foi tido como um grande capital a ser adquirido, uma porta de acesso a condições melhores de vida. P6 (negra, heterossexual) e P10 (negra, lésbica), por exemplo, foram as primeiras de suas famílias a entrarem em um curso superior, ou pelo sistema de cotas ou pelo Programa Universidade para Todos (PROUNI). P6 (negra, heterossexual) relatou: “Eu nunca me importei muito com essa coisa de namorar, eu tinha um foco maior, que era estudar, sempre gostei de estudar. . . O meu plano era viajar, fazer outras coisas, e até hoje é assim”. P7 (negra, bissexual) também afirmou:

Foi uma coisa que eu sempre escutei da minha família: “Homens vêm, homens vão”. E dependendo do homem, quando ele for embora, vai te lascar, te deixar sem nada, e quando você perceber, tem dois filhos e um teto e várias contas. . .

Observa-se que, em geral, desde crianças, grande parte das entrevistadas (P1, P2, P3, P4, P6, P7, P10) relataram que se sentiam diferentes, fora do padrão de feminilidade ou do que é esperado pela sociedade de uma menina/mulher. Algumas foram tolhidas na infância, outras sofreram forte pressão por manterem um firme posicionamento sobre o que pensavam e/ou desejavam durante a adolescência. No caso de mulheres pertencentes a famílias religiosas, o conflito parece ter sido ainda mais exacerbado (P1, P2, P7, P8, P10).

O que significa maternidade/ter um filho?

Esta categoria engloba tanto a forma como a maternidade é percebida quanto os motivos que levariam, segundo as entrevistadas, uma mulher a ter filhos. De modo geral, a maternidade foi percebida como: (a) perda de liberdade (P1, P5, P8, P10); (b) perda de si mesma (P3, P7, P8, P10); (c) excesso de responsabilidades (P1, P5, P7, P9); (d) deixar de existir para cuidar do outro (P1, P10); (e) criação de elo com um homem para o resto da vida (P1). Também apareceu a aversão às mudanças corporais, bem como o medo do parto (P1, P2, P5, P6, P7, P9, P10).

Sobre a maternidade como perda de liberdade (a), P1, P5, P8 e P10 colocaram o quanto as obrigações com um filho (ou mais) podem cercear a liberdade da mulher: “Eu já coloquei que eu não queria casar e ter filho porque eu imaginava ‘Vou perder a liberdade de fazer as coisas que eu quero’, porque eu não me via dentro desse modelo de feminilidade” (P10, negra, lésbica). Essa perda da liberdade geralmente é entendida como acompanhada do excesso de tarefas e obrigações (c) a serem cumpridas na maternidade: “Penso que talvez eu possa adotar, mas tem essas outras coisas também que é socializar com família, levar para o colégio, sair, levar no médico, na escolinha, então adotar teria esse trabalho também” (P5, branca, heterossexual). Além de ser um trabalho muito desgastante, é também invisível: “A maternidade como é colocada na sociedade é cruel, martirizante, injusta. . . é a sensação de que é uma tarefa hercúlea que é totalmente desvalorizada . . . pra mim soa um fardo que é romantizado” (P7, negra, bissexual).

Esse trabalho de cuidar e se responsabilizar pode levar a uma perda do contato consigo mesma (b):

Eu percebo que nesse momento sou eu comigo mesma. Eu acho que ele [o filho] traz outra responsabilidade, outra forma de lidar com a vida, e traz outro compromisso que talvez tire a gente da gente mesma. (P3, branca, heterossexual).

Ou, em outras palavras, interpela as mulheres ao heterocentramento, demandado pelo dispositivo materno e ao qual as participantes não parecem estar dispostas: “Eu não poder fazer alguma coisa por causa de um filho é uma coisa que eu não quero passar”, afirmou P8 (negra, heterossexual).

Trata-se de uma exigência implícita, de deixar de existir para cuidar do outro:

As minhas amigas que engravidaram e elas queriam engravidar e falam “Ai, mas é muito bom ficar grávida”, mas eu não acho que seja verdade e, de fato, quando o neném nasce, a mulher deixa de existir para cuidar da criança, e isso eu vi. (P8, negra, heterossexual).

A hiperconcentração de responsabilidades pelos cuidados com a cria (maternagem) na procriadora faz com que, mesmo a ideia de adoção, para várias das entrevistadas, seja uma opção muito distante: “Eu penso se lá na frente eu não adotaria uma criança, mas ao mesmo tempo é tão claro para mim que o desejo não é de não engravidar, é de não ter esse outro dependente de mim” (P3, branca, heterossexual).

Duas participantes (P1, P4) também pontuaram o quanto ter um filho cria um elo (afetivo, mas, por vezes, também financeiro) para sempre com determinado homem, o que poderia ser uma experiência ruim. Segundo uma delas, a maternidade, para muitas mulheres, é o momento de descoberta das injustiças que as relações de gênero promovem. Nesse tempo, no qual as exigências relativas ao maternar se concentram na mãe, e não nos pais, fica claro, para muitas delas, a não opção pela divisão das tarefas e a desresponsabilização dos homens, que podem assumir ou não os cuidados com os filhos, sem maiores consequências para sua vida pessoal e profissional. Essa descoberta pode, principalmente quando não se tinha consciência de gênero, ser bastante dolorosa. P1 (branca, heterossexual), por exemplo, destacou:

Porque justamente quando elas têm filho que vão perceber a grande diferença entre elas e o marido, sabe, e principalmente mulheres bem-sucedidas, né . . . por mais que parecesse que era um cara legal, cê vai ver se o cara é legal ou não depois que você tiver filho.

Ou, nas palavras de P4 (branca, bissexual):

Pras minhas amigas, a maior parte do problema não é a maternidade, mas a divisão de tarefas, quando elas começam a reclamar muito eu falo “Querida, você não tá com problema com maternidade, é na sua relação, não tem nada a ver com a criança o que você tá falando”.

Já P10 (negra, lésbica) destacou: “Eu simplesmente não queria aquela vida, não queria ter um filho com um homem, me sentir presa àquele quadrante familiar que todo mundo tem, não me acessa em nenhum canto dos meus desejos”.

Além disso, as mudanças corporais e o próprio parto foram apontados como experiências não necessariamente positivas, sendo inclusive aversivas e desconfortáveis para muitas participantes (P1, P2, P5, P6, P7, P9, P10).

É um negócio que me dá um nojo [risos] . . . não me vejo como um corpo que vai procriar. Eu não consigo conceber uma coisa crescendo dentro de mim, meu corpo se transformando, eu ficando com aqueles seios enormes e depois saindo leite, amamentando, não. (P1, branca, heterossexual).

Sobre o parto, P9 (negra, bissexual) afirmou: “No começo era medo, assim ‘Ah, Deus me livre ter um filho, um negócio saindo do meio das minhas pernas, não sou capaz’, depois era físico, enfim, acontece um monte de coisa em partos por aí”.

As participantes P5 e P10 chegaram a engravidar, no entanto, optaram pelo aborto. Em ambos os casos, apareceu uma espécie de pânico em se perceberem grávidas e constatarem o não querer: “Eu lembro que, quando eu soube, não foi uma sensação boa . . . foi tipo ‘Preciso resolver isso’”. Sobre o sentimento após o aborto, ela revela: “De alívio, de resolução de problema mesmo, não tive nenhum apego, lógico que é doloroso, que você, querendo ou não, acaba rolando certas projeções. Não me orgulho, mas não me arrependo, e é isso” (P5, branca, heterossexual). P10 (negra, lésbica) também afirmou: “Mas o que eu me lembro da sensação de estar grávida é que não foi uma coisa de plenitude, de ‘Que legal’, foi tipo ‘Eu preciso resolver’, e aí, toda vez que eu pensava nisso, nunca era uma sensação boa”.

Sobre os motivos que levariam uma mulher a querer e decidir (conscientemente) engravidar, as entrevistadas apontaram, sobretudo, as funções que um filho pode exercer na vida da mãe-mulher, o que denominamos aqui de filho-phármakon (filho como remédio), a saber: (a) para ter alguém que cuide delas quando velhas (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7, P8, P9, P10); (b) reduzir conflitos entre o casal (P3, P4, P7); (c) centrar-se na vida e deixar de ser louca (P1, P3, P7); (d) por não aguentar ficar consigo mesma (P3, P7); (e) “tapar buraco” existencial/trazer sentido para a vida (P3).

Por fim, por mais que seja um preconceito comum, disseminado na cultura e que instigue uma série de questionamentos sociais (Smeha & Calvano, 2009; Zanello, 2018), destacou-se o fato, ressaltado pelas próprias mulheres (P1, P2, P3, P4, P8), de que não querer ter filhos não significa ojeriza a crianças. P4 (branca, bissexual), por exemplo, ressaltou: “Eu adoro criança, trabalho com criança e por isso fica confuso, ‘Ah, mas você é tão boa com criança’, mas não tem nada a ver uma coisa com a outra”. P3 (branca, heterossexual) fez questão de ressaltar que sua escolha não tem nada a ver com um discurso anticrianças: “Não é um discurso seco de antifilho, anticrianças, que tem um certo ressentimento, uma intolerância com a criança e eu não me identifico com isso. É uma decisão amorosa e ética de não querer ter filhos”.

Não ter filho: por que e pra quê?

Esta categoria abarcou os sentidos e desdobramentos da opção de não ter filhos, bem como as razões que sustentariam essa decisão. As razões apontadas foram:

a) visão pessimista da sociedade (P1, P5), como podemos ver no exemplo da fala de P1 (branca, heterossexual): “A gente [participante e cônjuge] conversa muito em relação ao mundo de hoje . . . eu sinceramente tenho uma perspectiva um pouco pessimista também das coisas, do jeito que tá . . . do modo como a nossa sociedade está”.

b) reflexões filosóficas e existenciais (P3, P5), exemplificadas na fala de P5 (branca, heterossexual):

Deve ser uma percepção muito pessimista das coisas, mas é que se eu tivesse a opção de não nascer eu não teria nascido, você nasce pra morrer . . . então eu acho que viver é uma dor, uma angústia constante, apesar de todas as coisas boas, é uma coisa que eu penso de não fazer isso com outra pessoa.

c) falta de desejo de ser mãe (com a ressalva em algumas falas, “Mesmo gostando de criança”) (P1, P2, P3, P4, P6, P7, P10), a qual apareceu em diversos momentos na vida das entrevistadas, como podemos ver nos seguintes excertos: “Eu acho que uma das coisas tardias até de eu ter começado a namorar justamente pelo não desejo de maternidade, que era uma coisa que eu já tinha certeza: mãe eu não queria ser” (P1, branca, heterossexual). “O não desejo apareceu tarde . . . a heterossexualidade é o normal da vida? Casar e ter filhos é o normal da vida? Sair do armário é já romper com algo da feminilidade, com algo das expectativas tão fortes” (P2, branca, lésbica). “Criança nunca foi um problema, então para mim foi começando a ficar mais claro que realmente não existe o desejo porque meu problema não era bloqueio com criança, mas uma falta de vontade de ser mãe . . .” (P3, branca, heterossexual).

Como apontamos, duas das entrevistadas (P5 e P10) abortaram, quando se descobriram grávidas. Para elas, a experiência do aborto foi uma confirmação de que a maternidade não era mesmo um desejo:

E aí foi um divisor de águas essa gravidez, porque eu não queria nada daquilo . . . Se tinha alguma máscara ainda em relação a isso, caiu, porque eu sempre pensei que existem muitas formas de existir e que a minha não passa pela maternidade. (P10, negra, lésbica).

Sobre os desdobramentos da opção pela não maternidade, apareceram os seguintes sentidos: (a) poder ter uma vida centrada em si mesma (P2, P3, P9); (b) ter liberdade para se fazer o que quiser (P2, P3, P9); (c) não ter compromisso, nem responsabilidade por alguém que dependa de você (inclusive financeiramente) (P3, P5, P7); (d) não ter uma vida de mãe-mulher como a que existe em nossa cultura (P4, P6, P7, P8).

Todos os sentidos apontados pelas entrevistadas ligam-se diretamente a uma reação ou resistência ao heterocentramento imputado, por meio de diversas pedagogias afetivas, às mulheres, pelo dispositivo materno (Zanello, 2018). A participante P2 (branca, lésbica), por exemplo, ressaltou: “Acho que eu tenho perfil acadêmico, então eu quero ter uma vida centrada nos estudos, eu gosto muito de estudar, de viajar . . . eu quero curtir a minha vida eu mesma”. Já P9 (negra, bissexual) apontou a importância da solidão e de ter um espaço para si mesma, explicitando que aquilo que antes podia ser considerado um terror para a mulher, a solidão (Lagarde, 2013), pode ter outro significado, como ser um momento no qual há espaço e tempo para investir em si mesma:

Eu gosto muito ficar sozinha, sempre que tenho a possibilidade, eu falo “Vou no mercado”, aí eu vou a pé, coloco minha música, ou eu não faço nada . . . eu gosto de ficar sozinha e, se tiver um filho, nunca mais vou ficar sozinha.

P5 (branca, heterossexual), por sua vez, destacou a liberdade em não ter de socializar, quando não se está a fim:

Eu gosto da minha rotina, não sou uma pessoa de estar sempre em família, quando você tem filho, tem que dar essa oportunidade para ele, de conviver com tio, primo, amiguinho, festas, ir para rua, então essa coisa do social eu não estou a fim.

P3 (branca, heterossexual) destacou os benefícios que não ter um filho pode trazer para sua vida, inclusive no que tange a questões financeiras: “Adoro viajar, eu gosto muito da minha solidão, da minha falta de compromisso com outras coisas e poder gastar o meu dinheiro comigo mesma”.

Em relação a não ter uma vida de mãe-mulher como a que existe em nossa cultura, as entrevistadas (P4, P6, P7, P8) ressaltaram o quanto esta tarefa é pesada em nossa sociedade, por colocar nos ombros daquela que procriou a responsabilidade total pela criança. Trata-se de um mal-estar da maternidade pouco discutido, explicitado, debatido e que leva, muitas vezes, as mulheres mães, na percepção das participantes da presente pesquisa, a um estado de solidão e desamparo: “Porque [a maternidade] deveria ser uma coisa social, uma responsabilidade social e da família, né, dos pais, de todo mundo, né, mas não, hoje é uma coisa muito isolada, solitária mesmo” (P4, branca, bissexual).

Pressão social versus apoio

Esta última categoria engloba as falas sobre a percepção acerca da pressão social para se ter filhos, bem como o apoio na decisão de não os ter. A categoria mostra, por um lado, o quanto a sociedade cobra a maternidade das mulheres, personificando esse discurso nas mais variadas instâncias (familiar, social, médica). Por outro lado, o apoio às mulheres que não desejam ser mães vem dos lugares mais empáticos, de pessoas que estão na mesma situação, ou, em menor número de casos, de pessoas que têm uma abertura maior para entender o não desejo de maternidade.

Sobre a pressão social, as participantes identificaram de onde vem o sentimento de opressão para que elas se tornem mães. As falas em forma de cobrança aparecem, sobretudo, por parte:

a) da mãe, “exigindo” netos (P2, P4, P6, P8, P9). P6 (negra, heterossexual), por exemplo, relatou:

A minha mãe fala “Ah, mas você não vai me dar um netinho? Eu ajudo a cuidar”, eu falei “Ajuda a cuidar? Você já fez a sua parte, já cuidou das suas filhas, ajudar a cuidar não é cuidar, a responsabilidade continua sendo minha”.

Em alguns casos, a cobrança da mãe provoca um sentimento de culpa e dívida: “Minha mãe fala ‘Todas as minhas amigas têm netos . . . você já tem mais condições do que eu quando engravidei de você’. Eu vejo que ela fica muito triste quando eu falo que não quero” (P8 negra, heterossexual).

Essa cobrança sofre transformações: caso a mulher seja lésbica assumida, a cobrança parece esmorecer; caso seja bissexual, ela aparece de forma contundente somente quando a mesma está em uma relação com um homem. Neste sentido, existe um roteiro (script) social, marcado pelo ideal da heterossexualidade e que mantém a visão tradicional de casamento + filhos. Ser ou estar em uma relação lésbica pode, assim, ser um fator protetivo, nesse quesito, de estar liberada das cobranças sociais em relação a se ter um filho. Por outro lado, é preciso destacar que, por trás desta aparente sensação de protetividade, o que se encontra é a concepção social da reprodução dentro de um modelo heterossexual, o que faz com que outros modelos enfrentem certa resistência médica e jurídica, além da social (Vargas & Moás, 2010). Como destacou P2 (branca, lésbica): “Eu acho que eu dou sorte com a coisa da homossexualidade, acho que eles não depositam essa esperança em mim . . . nunca ninguém me pediu um neto ali [se referindo ao ambiente familiar]”.

b) dos amigos, sobretudo mulheres que já têm filhos (P1, P2, P3, P4, P7, P8). Parece haver uma tentativa em tornar comum essa experiência, para compartilhar a nova fase da vida: “Eu já fui tratada de outra maneira por amigos que tiveram filhos. Eu que tive que me afastar porque a cobrança era enorme, ‘Olha, pega aqui, segura no colo pra ver se te dá alguma vontade de ter filho” (P1, branca, heterossexual).

Uma das entrevistadas ressaltou ainda que parece haver uma expectativa de compartilhamento do “cárcere”, alguém pra dividir os sofrimentos: “Inclusive essa amiga que eu sei que se arrependeu de ser mãe, parece que ela quer uma companheira para o sofrimento, sabe” (P8, negra, heterossexual).

Estar solteira também retira a mulher da exigência de ter filhos (talvez a coloque na de arrumar um parceiro, marido):

Quando você tá ali na configuração casamento com um homem, eu ouvia as minhas amigas que têm filhos “Ai, mas nem agora . . .” depois que eu separei ninguém mais falou disso, é louco, mas isso não é mais assunto, solteira não tem filho. (P4, branca, bissexual).

c) dos profissionais de saúde (ginecologistas, enfermeiros, profissionais diversos) (P3, P5, P8), com destaque para os/as ginecologistas. Estes são ativos na hora de cobrar, sem, no entanto, refletirem sobre o lugar do direito ao próprio corpo que as mulheres têm. Pelo contrário, utilizam-se de falácias médicas para, de certa forma, coagir as mulheres a terem filhos: “Em 2015, eu descobri que eu estava com início de endometriose, e a primeira coisa é que foi todo mundo da Medicina taxativo, dizendo que as mulheres que têm endometriose são as mulheres que optaram por não ter filhos” (P3, branca, heterossexual).

d) Por fim, a pressão e cobrança social para ter filhos aparece mesmo quando ela não é explícita, pois, como apontamos anteriormente, ela está presente nas mais diversas tecnologias de gênero (Lauretis, 1984):

A felicidade . . . são as imagens na televisão, nas músicas e em todo lugar da cultura, de que ter filho, uma família com filho é que é uma família feliz e de que você como mulher também só vai se sentir um ser completo se tiver filho (P1, branca, heterossexual).

Os argumentos utilizados para convencê-las a ter filhos são diversos:

1) o discurso do relógio biológico, baseado no imaginário popular de que existe, na ­biologia feminina, uma espécie de marcador de tempo, que, em algum momento da vida, virá à tona em forma de desejo pela maternidade. Essa representação social parece tão arraigada na sociedade, que, mesmo tendo consciência do seu não desejo, P3 (branca, heterossexual) achava que em algum momento isso aconteceria: “Eu achava que o tempo ia passar e que em algum momento ia surgir o desejo. Eu passei dos 30 anos e simplesmente não chegou”.

2) “Você vai mudar de ideia...”. Trata-se do discurso de pessoas que acreditam ser impossível uma mulher não desejar ser mãe e, portanto, tentam convencê-las de que, fatalmente, esse quadro vai mudar. Independentemente da passagem do tempo e da idade da mulher, parece existir uma espécie de desqualificação do não desejo da mulher: “Desde a adolescência eu não queria e todo mundo me contradizia dizendo ‘Ah, você é nova, né’, mas eu tô com 34 [anos], e isso não mudou” (P4, branca, bissexual).

3) Condenação na velhice. A clássica pergunta “Quem vai cuidar de você?” veio à tona em todas as entrevistas, revelando que, para a sociedade, um filho é como uma aposta de cuidados na velhice da mulher:

É o fato de que “Quem vai cuidar de você no futuro?”, essa carga do tipo “Você vai ficar sozinha”, é o que mais marca, de achar que você vai ficar sozinho, e que filho é uma garantia. (P1, branca, heterossexual).

Muitas entrevistadas (P1, P3, P4, P6, P7, P8, P9) questionaram essa aposta. Em geral, ao se questionarem sobre seu envelhecimento, elas revelaram suas apostas afetivas nos(as) companheiros(as); amigos(as) (muitas destacaram a possibilidade de envelhecer em comunidades); e até na possibilidade de um asilo diferenciado, com boas condições.

Em relação ao apoio recebido na decisão de não procriar, as participantes revelaram que é, sobretudo, nos amigos e familiares que não têm filhos e nos parceiros/as afetivos/as (P1, P3, P4, P5, P6, P9) em que encontram maior empatia: P5 (branca, heterossexual), P3 (branca, heterossexual) e P9 (negra, bissexual) ressaltaram, respectivamente: “Próximo a mim todo mundo me apoia”; “Eu me sinto apoiada pelo meu companheiro”; “Tem meu marido”. P1 (branca, heterossexual) e P9 (negra, bissexual) apontaram, também, o apoio das irmãs, que também não querem: “Eu sinto apoio das minhas irmãs”.

Por último, o apoio também vem de amigos que têm a “cabeça mais aberta” à questão do não desejo de maternidade: “Meus amigos, por mais que muitos tenham filho. Todos têm a cabeça aberta” (P4, branca, bissexual). “Eu tenho amigos que falam ‘Eu amo meu filho, mas se eu tivesse a cabeça que eu tenho agora, eu não teria’” (P7, negra, bissexual).

Mesmo diante da indelicadeza dos que tentam convencê-las a ter filhos, ficou nítido que todas as entrevistadas mantêm uma espécie de cuidado, no convívio social, em não tocar no assunto do mal-estar da maternidade, no trabalho que um filho requer e no sofrimento que isso pode implicar. “Eu vejo as pessoas cansadas, sofrendo, separando depois que têm filhos, e aí é muito indelicado da minha parte ‘Olha aí essa experiência que você tem para comparar com a minha’” (P3 branca, heterossexual). Ou seja, por mais que haja uma renúncia pessoal a uma certa forma de maternidade e a seus custos, o próprio tema não é debatido explicitamente por essas mulheres, havendo uma espécie de respeito velado, o qual parece manter o tabu acerca do mito do ideal da maternidade (feliz). Por que se evita tanto falar desse mal-estar? Por que não se utiliza desse argumento para contra-argumentar aos apelos para que se tenha filhos? Um respeito perante outras mulheres? Uma evitação de infringir ainda mais sofrimento para quem já não pode mais voltar atrás? Para responder a essas perguntas, são necessários novos estudos.

Por fim, é necessário destacar que, em todas as falas das entrevistadas, quando perguntado se temiam se arrepender da decisão de não ter filho, a possibilidade de adoção apareceu como uma solução de compromisso (Freud, 1917/1988; Laplanche & Pontalis, 1996) apaziguadora; ou seja, como algo que, ao mesmo tempo em que valida a escolha de não ter filhos, protege de um possível arrependimento e mudança de escolha sobre isso no futuro. No entanto, algumas reconheceram claramente que isso não seria uma boa opção, pois não resolveria o problema do trabalho que criar uma criança requer, além de levar ao cerceamento de suas vidas e liberdade.

Conclusões

A partir da investigação sobre o não desejo de maternidade, várias questões emergiram das entrevistadas para além da questão central. É importante apontar que a maioria das participantes estava em relações amorosas estáveis, possuía independência financeira e alto grau educacional, quebrando, assim, o estereótipo de que mulheres sem filhos são solitárias e infelizes. Estar em um relacionamento estável e heterossexual parece apertar uma espécie de gatilho social da expectativa de que o próximo passo será ter filhos. A interseccionalidade com a orientação sexual se faz, assim, fundamental para entender a diversidade de experiências e vivências da não maternidade.

Por mais que a decisão de não ter filhos rompa com o mandato social de precisar da maternidade para se realizar como mulher, ainda não são trazidos para o plano político-social os questionamentos acerca do mal-estar contemporâneo da maternidade. Assim, as entrevistadas destacaram que seria indelicado responder contra as tentativas de convencê-las a serem mães, apontando as perdas e o sofrimento das mulheres nessa condição.

As razões pelas quais se justifica a opção pela não maternidade vão desde o não desejo de mudanças corporais (além de possíveis riscos, como o parto, por exemplo) a questões mais existenciais, como a necessidade de liberdade, solidão e de ter tempo para si mesmas. Essas razões, em geral, rompem com o heterocentramento esperado no dispositivo materno (Zanello, 2018). Por isso, não raro, mulheres que não desejam ter filhos são vistas como egoístas, mas talvez o mais correto seria afirmar que são egocentradas.

Em contraponto ao rótulo de “egoístas”, as entrevistadas percebem que talvez o egoísmo seja justamente as razões pelas quais os atores sociais tentam convencê-las a optar pela maternidade: resolver problemas pessoais/existenciais/conjugais ou mesmo assegurar uma velhice cuidada pelos filhos. Todas as mulheres apontaram a possibilidade de adoção no futuro como uma forma de negociação consigo mesmas, caso venham a se arrepender da decisão de não ter filhos. No entanto, várias destacaram que a adoção não resolveria o maior problema de se ter um filho, que seria bancar o trabalho e a dedicação demandados para criá-lo.

De modo geral, no presente estudo, observou-se que o não desejo de maternidade parece questionar a maternidade como construção social e histórica, evidenciando que essa é apenas uma das possibilidades existenciais para as mulheres, mas não um destino fatal decorrente de se ter um útero, e nem um pré-requisito para se realizar como pessoa. Talvez um dos desdobramentos desse questionamento seja justamente colocar em xeque certo tipo de maternidade que precisa ser repensado, a redução das mulheres à função de cuidado.

Apesar da presente pesquisa ter trazido pontos importantes para a compreensão e o debate sobre o fenômeno do não desejo de maternidade por parte das mulheres, faz-se necessário apontar suas limitações: foram entrevistadas mulheres de apenas um estado brasileiro, com alta escolaridade e moradoras de grande área urbana. Ficaram de fora mulheres de baixa escolaridade, de diferentes regiões brasileiras, moradoras de pequenos municípios, características talvez relevantes para entender configurações diversas do fenômeno. Além disso, a pesquisa se limitou a estudar mulheres em idade considerada fértil, ou seja, que ainda estão ativamente escolhendo a não maternidade. Não foram assim contempladas mulheres não mães por opção acima de 50 anos, que já atravessaram a menopausa e que podem ter nas vivências da escolha realizada a interpelação de outros fatores subjetivos, sociais e existenciais que merecem ser estudados.

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Recebido em: 17/03/2022

Última revisão em: 24/05/2022

Aceito em: 27/06/2022

Sobre as autoras:

Daniele Fontoura da Silva Leal: Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília, com bolsa pelo CNPq. Psicóloga Clínica pela Universidade de Brasília. E-mail: danielefsleal@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2920-4248

Valeska Zanello: Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília, com período sanduíche na Université Catholique de Louvain/Bélgica. Professora associada 2 do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: valeskazanello@uol.com.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2531-5581


1 Endereço de contato: Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Campus Darcy Ribeiro, Asa Norte. Brasília-DF. E-mail: danielefsleal@gmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v14i3.1949