Atuação de Psicólogas Clínicas Perante o Sofrimento Psíquico Originado pelo Racismo
Clinical Psychologists’ Practice Against Psychic Suffering Originated from Racism
Práctica de Psicólogas Clínicas Contra el Sufrimiento Psíquico Originado por el Racismo
Felipe Barbosa dos Santos
Marilda Castelar
Veridiana Silva Machado
Milena Silva Lisboa
Verena Souza Souto
Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP)
Resumo
Introdução: Segundo seu código de ética, as profissionais de psicologia devem combater qualquer tipo de violência e discriminação, dessa forma, reconhecendo o racismo como determinante na saúde. O estudo objetivou analisar a atuação de psicólogas clínicas de Salvador perante o racismo e a demanda de atendimento fruto do racismo. Métodos: Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória. Foram analisadas seis entrevistas com psicólogas de Salvador que se autoidentificaram como negras/os e trabalham com relações raciais. Resultados: Os resultados demonstram que o racismo aparece na atuação clínica, em demanda primária ou associada a um outro estado de sofrimento. Discussões e Conclusões: Após a identificação, existe uma preocupação em potencializar as formas de elaboração desse sofrimento específico. Os dados podem contribuir para o exercício em psicologia perante o sofrimento psíquico originado pelo racismo.
Palavras-chave: psicologia clínica, racismo, saúde mental, psicoterapia
Abstract
Introduction: According to their code of ethics, psychology professionals must fight any type of violence and discrimination, thus recognizing racism as a determinant in health. This study aims to analyze Salvador’s clinical psychologist’s ways of practice against racism, and racism-related patient demands. Methods: It’s a qualitative, descriptive, and exploratory research. We analyzed six interviews with Salvador psychologists who identify as black and work with race relations. Results: The results show that racism appears in clinical practice, as a primary demand or related to another suffering state. Discussions and Conclusions: After identifying it, there’s a concern about potentialize ways of elaboration of this specific suffering. This data can help psychological activity about psychic suffering brought on by racism.
Keywords: clinical psychology, racism, mental health, psychotherapy
Resumen
Introducción: De acuerdo con su código de ética, los profesionales de la psicología deben combatir cualquier tipo de violencia y discriminación, reconociendo así el racismo como un determinante en la salud. El estudio tiene como objetivo analizar la actuación clínica de psicólogas de Salvador de Bahía frente al racismo y la demanda de atendimiento fruto del racismo. Método: Se trata de una investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria. Fueron analizadas seis entrevistas con psicólogas de Salvador que se autoidentificaron como personas negras y trabajan con relaciones raciales en clínica. Resultado: Los resultados demuestran que el racismo aparece en la actuación clínica, en demanda primaria o asociada a un otro estado de sufrimiento. Debates y Conclusiones: Tras la identificación existe una preocupación en potenciar las formas de elaboración de este sufrimiento específico. Los datos pueden contribuir para el ejercicio en psicología frente al sufrimiento psíquico originado por el racismo.
Palabras clave: psicología clínica, racismo, salud mental, psicoterapia
Introdução
As consequências do processo de colonização e miscigenação na formação do Brasil caracterizam esse país por uma parcela significativa da população negra (composta por pessoas que se autodenominam pretas e pardas), que vivenciam e acumulam o sofrimento psíquico ao longo de gerações. Portanto, existe uma demanda reprimida que precisa de estratégias para o cuidado por parte das profissionais de Psicologia, para enfrentar possíveis situações constrangedoras e discriminatórias, ao longo de suas vidas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017, p. 109). Assim, o conhecimento sobre os problemas relativos às questões raciais torna-se imprescindível para a atuação da profissional na Psicologia Clínica (neste texto, esta área de atuação estará correlacionada à psicoterapia), especialmente em cidades como Salvador, que carrega demograficamente o maior quantitativo de pessoas negras do país, correspondendo a 82,5% da população (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020). Nesse sentido, é importante que a população se reconheça e não se discuta como racializada, pois, do contrário, isso dificulta o investimento e desenvolvimento em práticas que acabem ou minimizem o racismo.
Segundo o Código de Ética Profissional ([CFP, 2005), a Psicologia no Brasil deve promover a saúde e contribuir para evitar quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração e opressão aos indivíduos. Ainda, de acordo com seu código de ética, as profissionais de Psicologia no Brasil recebem demandas direta ou indiretamente em seus atendimentos clínicos. Logo, em situações em que haja determinadas populações com especificidades, a Psicologia é convocada e estimulada a agir de forma a combater essas discriminações, e deve estar preparada, apropriando-se de um repertório teórico-prático, para acolher e elaborar o sofrimento psíquico e constrangedor oriundo do racismo, uma vez que ele promove uma discriminação baseada na cor, colocando a pessoa negra como inferior à branca (Munanga, 2004).
Muitas pessoas que sofrem mentalmente podem apresentar sintomas somáticos como cansaço, irritação, esquecimento, redução da capacidade de concentração, ansiedade e depressão (Lucchese et al., 2014). A apresentação desses sintomas pela população negra é mais comum, já que a incidência desse transtorno afeta, principalmente, habitantes que possuem condições de vida associadas à pobreza, a eventos estressantes e recursos sociais e econômicos limitados, uma vez que vivem em regiões muitas vezes periféricas, que não têm saneamento básico, possuem altos índices de violência, falta de infraestrutura e segurança. Assim, é necessário discussão, tomada de posicionamentos e decisões pelas psicólogas acerca da saúde mental associada às relações raciais, visto que o racismo cria e mantém determinadas formas de existir que geram grande constrangimento e sofrimento.
O CFP disponibiliza referências técnicas desde 2017, a fim de sugerir possibilidades de atuação das psicólogas quanto ao assunto. Em um aspecto geral, essa referência traça uma contextualização da temática racial, mostrando os tipos de racismo e as principais lutas do movimento negro no Brasil, para, apenas no final, efetivamente, especificar a atuação da Psicologia. Esse material disponibiliza norteadores a partir de perguntas que problematizam a atuação profissional em Psicologia, se esta atende às demandas específicas da população negra, se há referenciais teóricos que dão o suporte necessário, além de colocar a Psicologia na luta antirracista, por ser uma formadora de opinião (CFP, 2017, p. 110). Além disso, esse material apresenta também uma ênfase na atuação perante o racismo institucional e marca a posição do Conselho quanto ao reconhecimento do racismo e às diferentes formas de combatê-lo, indicando, inclusive, formas para complementar outras frentes de atuação.
Devido à adaptação de discriminações como o racismo ao longo do tempo, há uma intensa reconstrução desse fenômeno na cultura; por isso, reconhecer esses fatores é importante para combatê-lo. Em realidades como a do Brasil, em que há um grande quantitativo de pessoas negras (pretos e pardos), faz-se necessária uma constante atualização, pois mitos como a “democracia racial” podem dificultar a discussão do racismo, tornando-o erroneamente um problema individual, e não algo construído e mantido estruturalmente. A disseminação da crença da democracia racial refere-se à ideia de que não há racismo no Brasil, devido ao seu intenso processo histórico de miscigenação (Pereira, 2019). Desse modo, torna-se difícil discutir o racismo como uma fonte de sofrimento, especialmente quando as psicólogas reproduzem esse tipo de discurso no setting terapêutico e em outros contextos, seja negando sua existência, seja culpabilizando a pessoa em sofrimento ou dificultando o seu acesso ao atendimento psicológico na modalidade de consultório privado.
Segundo Schucman e Martins (2017), ao discorrerem historicamente sobre algumas características do racismo no Brasil, concluíram que o mito da democracia racial e o branqueamento influenciaram as práticas psicológicas, de forma a negligenciar por grande parte de sua história demandas da população negra. Apesar de pontuarem que houve uma melhora na discussão de relações raciais na Psicologia, mediante influências de movimentos sociais, elas ainda percebem essa temática pouco comentada e discutida pela categoria profissional. Nesse sentido, é importante considerar esse tema de forma integral, a partir da relação de aspectos socioeconômicos, políticas públicas e crenças culturais, a fim de ampliar a visão dos sujeitos.
Assim, a elaboração do impacto do racismo só poderá ser feita considerando a saúde em sua integralidade, a partir da interseccionalidade, conceito que articula diferentes dimensões da vida social atravessadas por relações de dominação estruturadas historicamente, que se potencializam quando são vividas por uma mesma pessoa (Akotirene, 2018). Partindo desse pressuposto, percebe-se que a discussão de formas de atuação em Psicologia sobre relações raciais, principalmente na clínica, ainda é incipiente (CFP, 2017; Schuman & Martins, 2017; Tavares & Kuratani, 2019).
Pretende-se, portanto, neste trabalho, contribuir para o exercício profissional, mostrando de forma específica como a prática em Psicologia pode atender às necessidades e demandas de pessoas negras, colaborando, assim, para a promoção da saúde integral da população e sensibilizando outros profissionais de Psicologia sobre a necessidade de combater o racismo. Compreende-se que o reconhecimento do racismo como fonte de sofrimento é necessário para o planejamento das formas de enfrentamento na clínica. É preciso entender como as psicólogas pretas ou pardas atuam diante das demandas de saúde mental da população negra em Salvador, Bahia. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo principal analisar suas atuações perante o racismo e as demandas de saúde mental da população negra, em uma grande cidade. Vale ressaltar a importância desta pesquisa, considerando o fato de ela acontecer em uma cidade como Salvador, com um perfil populacional de maioria negra, em que as profissionais precisam estar atentas às particularidades e ao exercício das possíveis demandas dessa população.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória. Foram realizadas entrevistas com psicólogas de Salvador, no ano de 2019, entre os meses de agosto e dezembro. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e analisadas, segundo análise de conteúdo (Deslandes et al., 2002). Foi utilizada uma abordagem qualitativa, como forma de analisar o conteúdo, legitimar o discurso das entrevistadas e abordar temas pouco discutidos.
Foi utilizada uma amostragem não probabilística, chamada “bola de neve”, a partir do grupo de pesquisa “Psicologia, Diversidade e Saúde” na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Essa amostragem propõe que as pessoas que participem da pesquisa sejam indicadas a partir de um grupo selecionado anteriormente, até se conseguir a quantidade de participantes planejada (Vinuto, 2014). Dessa forma, as entrevistadas foram indicadas, e essas indicaram novas participantes da sua rede de conhecidas que trabalhassem relações raciais na clínica e que atendessem pessoas negras.
Os critérios para inclusão das participantes foram: psicólogas que se autodefinem como negras, possuem alguma divulgação do seu trabalho com relações raciais e tempo de atuação em seus consultórios particulares de, no mínimo, dois anos. Foi estabelecido contato com as psicólogas por redes sociais, e as entrevistas foram marcadas próximas ao seu local de disponibilidade. No total, foram realizadas seis sessões de entrevistas, em que uma das entrevistadas se pronunciou duas vezes, devido à necessidade de colher mais informações.
Foram entrevistadas quatro mulheres e um homem, todas atuantes na região de Salvador. Duas dessas mulheres tinham mais de dez anos na clínica, ambas com formação em Psicologia, e se consideravam psicanalistas no que diz respeito à abordagem teórica. As outras duas mulheres tinham dois anos de atuação; uma delas se considera terapeuta sistêmica e a outra não se identifica por nenhuma corrente específica. O psicólogo tinha treze anos de experiência na clínica e atua com um referencial da Psicologia Analítica.
Foram realizadas entrevistas individuais e semiestruturadas, com roteiro que consistiu em perguntas sobre a concepção de preconceito e racismo; reconhecimento de alguma demanda específica da população negra, atuação no manejo do sofrimento específico do racismo, cuidado com a própria saúde como profissional da saúde; e percepção da preocupação de suas colegas de profissão sobre essas demandas.
Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo já aprovado no Comitê de Ética, CAAE 80467917.7.0000.5544. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os locais das entrevistas foram os espaços de trabalho das participantes, de acordo com sua preferência, sendo elas realizadas em momentos em que se pudessem garantir o sigilo e um ambiente acusticamente protegido para a gravação dos áudios. Foram geradas 6 horas, 24 minutos e 32 segundos de gravação e 86 páginas de transcrição. Estes dados serão guardados no banco de dados do Grupo de Pesquisa Psicologia Diversidade e Saúde, sob responsabilidade da coordenadora da pesquisa mais ampla.
A análise de conteúdo, segundo Minayo (2012), desdobra-se nas etapas de ordenação dos dados, classificação e análise final, que consistem na estruturação e reestruturação das hipóteses e na exploração do material, com objetivo de achar as categorias de significados pelas palavras que têm forte função com o tema de referência a ser trabalhado. Dessa forma, o pesquisador tem uma maior apropriação com o tema discutido e com a produção de uma análise mais próxima da sistematização e do aprofundamento que ampliem o escopo das pesquisas qualitativas (Deslandes et al., 2002; Minayo, 2012).
Para classificar os dados obtidos, foram utilizadas as categorias de análise que consistem em reunir palavras e expressões significativas que ressoam nos conteúdos trazidos nas entrevistas. Foram realizadas leituras flutuantes de cada transcrição e leituras horizontais por assunto, envolvendo todas as entrevistas. Nesse processo, emergiram as seguintes categorias de análises sintonizadas com os objetivos da pesquisa: “1. Demandas da população negra” e “2. Formas de atuação na identificação da demanda como fruto do racismo”. Por meio das demandas, foram identificados alguns tipos de sofrimento psíquico mais frequentes, como consequência do racismo, de acordo com os relatos das entrevistadas. Desse modo, formas de atuação na identificação da demanda como fruto do racismo foram incluídas em relatos que explicavam como essas profissionais lidavam com o sofrimento, incluindo algumas variações de seus referenciais teóricos.
Resultados e Discussão
Segundo Fanon (2020), a pessoa negra, além de se representar como indivíduo, representa os seus ancestrais, uma vez que é constantemente lembrada de sua fisionomia a partir da interação em sociedade. A partir dessa perspectiva, a ideia do que caracteriza a pessoa negra na sociedade é influenciada pelos estereótipos sociais que esse corpo carrega. Nesse momento, o racismo pode ser direcionado a qualquer integrante dessa população, somente pelo fato da sua representação fenotípica. Além disso, o racismo coloca a população negra no lugar de inferioridade e exclusão ao qual a população branca não quer ser associada, transformando, desse modo, o sujeito negro em algo a se distanciar, na medida em que se privilegiam valores da branquitude (Kilomba, 2019). A partir das análises das entrevistas, identificou-se a estética como uma das mais frequentes demandas da população negra, como se observa a partir da fala do entrevistado 5:
Eu acho que a estética fala sobre isso. Eu acho que muito do que se traz é sintomático e uma construção do ser quem é, da sua própria identidade, que tem a ver com o atrelamento da sua história, da sua origem, dos seus costumes, com a ideia de ser quem você quer ser. E de como determinar um estereótipo, determinado traçado, torna a vida do sujeito mais estressora, então eu percebo que a possibilidade de desenvolvimento de transtorno tal, ou suscetível a determinados sintomas, somatizadores, eles estão atrelados . . . à condição de ser negro. Então, você se coloca no dia a dia, por ser negro, você acaba vivendo situações tão sociais quanto relacionais mais susceptíveis às agressões, injúria, a uma diminuição, então isso tem a ver com a própria saúde e bem-estar (Entrevistado 5, Junguiano).
A estética, nesse momento, mostra-se como uma forma de se relacionar com o exterior, sendo que apresenta marcadores de identidade, a qual constrói uma ampla gama de significações aos sujeitos. Também são apontados como a justificativa para as discriminações raciais, algo que não se refere, diretamente, à pessoa, mas a um povo.
Devido à dificuldade de explicitamente se reconhecer o racismo, geralmente pela negação de quem o pratica, é complexo perceber os sinais de ocorrência. No entanto, independentemente do reconhecimento, haverá, de alguma forma, um impacto negativo para a pessoa negra (CFP, 2017). Logo, ao se referir a um processo de vivência, como a expressão de fenótipos pela estética negra, o indivíduo terá mais chances de sofrer violências, mesmo não percebendo que foi causado pelo racismo.
A estética também pode ser associada com outra demanda da população negra, a hipersexualização, nesse momento, relacionada à mulher negra, como apresenta-se a seguir:
Agora uma coisa que eu acho muito interessante, específico da mulher negra, é essa coisa do objeto sexual, de ser tratada desse lugar, como algo que faz sofrer muito, “só querem me comer”, o que eu vivi também, quando era jovem, eu entendia isso, de que as pessoas não queriam namorar comigo, queriam “me comer”. Isso acontece muito, muito frequente (Entrevistada 2, psicanálise).
A mulher negra, nesse momento, é retratada a partir da sexualização do seu corpo, o que está influenciando diretamente nas suas relações amorosas e a colocando como um objeto sexual, sendo essa uma característica específica dessa parte da população, que, além de sofrer racismo, sofre também pelo machismo. Nesse sentido, na interseccionalidade de raça e gênero, as mulheres negras têm um fator “adoecedor” por terem suas demandas duplamente invisibilizadas. Existe uma demanda que se intensifica na interação com o racismo, são a de serem mulheres e negras. Desse modo, surgem fatores para essas mulheres que permeiam tanto as questões de raça quanto de gênero.
Segundo Barbosa et al. (2018), é a partir da consideração de que há singularidades na relação entre raça, gênero e classe que se pode elaborar as melhores formas de se lidar com essas demandas. Dessa forma, essas discriminações se potencializariam, ou seja, seriam amplificadas por múltiplos fatores de preconceitos.
Outra demanda frequente trazida pelas entrevistadas foi a desesperança trazida pelo contexto social:
Esse desespero tem a ver também com o momento político do nosso país, os cortes, as notícias, a forma como a população negra ela é tratada, e a intensificação desse agravo nos últimos três anos [2016-2019], por exemplo. As notícias de pessoas sendo assassinadas, as notícias de grandes massacres, e de muita injustiça, tem deixado as pessoas desesperançosas, então, por exemplo, ações afirmativas que antes faziam sentido, dá uma esperança a essas pessoas de mobilidade social, hoje, com esses agravos, com esses cortes e essas violações, as pessoas vêm todos os dias, se perguntando se de fato faz sentido continuar fazendo o que se vem fazendo, enfim. Então, esse é um sentimento recorrente (Entrevistada 4, Sistêmica).
Nesse comentário, a psicóloga ressalta a relevância de políticas reparadoras para o suporte da sobrevivência da população negra. Pela falta de uma perspectiva de melhora, há adoecimento, já que não são apresentadas formas de melhorar a qualidade de vida, principalmente sem o apoio de políticas públicas.
Além disso, essa desesperança chega associada como consequência dos outros tipos de racismo, institucional, interpessoal e estrutural, pois há a potencialização de todas essas discriminações (Bujato & Souza, 2020). Desse modo, a demanda está presente quando essa população se encontra desassistida de diversos fatores para além dos individuais.
Segundo Madeira e Gomes (2018), a independência da população negra se dará quando várias dimensões forem consideradas além da economia, como cultura, classe, raça e gênero nas políticas de intervenção do Estado. Também é importante reforçar a presença da população negra nas diversas esferas de poder, assim como sua valorização na estética, na arte e no conhecimento.
Destarte, as demandas da população negra chegam de forma a abranger a experiência de vida dessa população, sendo as discriminações atravessadas e potencializadas a partir de significantes como raça, gênero e classe. Cabe à psicóloga estar atenta a essas transversalizações e aos impactos desse sofrimento, a fim de tentar atender essas pessoas em sua integralidade.
Formas de Atuação Perante as Demandas Originadas pelo Racismo
A análise das respostas às entrevistas permitiu chegar a formas semelhantes e/ou distintas em relação a como essas psicólogas agem ao trabalhar o sofrimento psíquico oriundo do racismo na clínica. De forma distinta, as duas psicólogas que trabalham a partir da Psicanálise têm modelos similares para a elaboração desse sofrimento. A entrevistada 2 relata:
Então, hoje eu entrego para o meu paciente a palavra racismo como um significante possível. Não é que antes eu não faria. Hoje, eu faço, trago esse significante para o jogo simbólico, e acho que tem feito bastante diferença na psicoterapia (Entrevistada 2, Psicanálise).
Desse modo, a psicóloga atua de forma ativa por meio da identificação do que ela considera racismo na fala do paciente, ou seja, as formas de associações da experiência vivida com o racismo também podem ser trazidas por essa profissional. Além disso, a nomeação da palavra “racismo” por essa profissional se torna relevante ao trazer para elaboração desse termo a consciência e indo por outros caminhos para além da forma tradicional na clínica.
Na mesma direção, Rosa e Braga (2018) trabalham com base em uma perspectiva de Psicanálise implicada, a partir de um “sujeito dividido” que estará sempre inscrito no laço social, compreendendo tanto pacientes quanto analistas. Portanto, situando essa atuação em um contexto histórico por relações de poder em uma sociedade desigual.
Neste momento do atendimento, o saber da Psicologia se torna imprescindível, pois, se a demanda chegar sob olhos desatentos, as implicações do racismo acabarão não sendo trabalhadas. Isto significa que a falta do conhecimento das formas e expressões do racismo por parte do analista dificulta a sua elaboração. Esse aspecto da fala da entrevistada 2 também pode ser constatado em outras entrevistas. Quando questionada sobre especificidade do racismo, a entrevistada 1 respondeu:
Eu acho que o ponto da especificidade é escutar a dor que o racismo provoca . . . não colocar em um pacote como naturalizado ou passar por cima. É, por exemplo, uma pessoa que tem ansiedade, uma pessoa negra, é uma ansiedade e tem uma especificidade, que tem uma polícia correndo atrás. É poder escutar esse viés que, muitas vezes, passa despercebido até pela própria pessoa, ela só se acha ansiosa. Saber que é ansiosa, mas que tem algo aí que objetivamente essa ansiedade está presente e tem um motivo, aí já é um deslocamento (Entrevistada 1, Psicanálise).
Pode-se observar que essa forma de atuação busca compreender os motivos mais profundos da ansiedade. Esse processo fará parte da resolução da queixa, na medida que busca tornar consciente ou trazer à tona aspectos da origem dessa demanda. Pode-se concluir, então, que as demandas do racismo conseguem atingir de forma que o paciente não reconheça suas verdadeiras origens, e que a experiência do sofrimento do racismo também pode vir associada a outros fatores. Exige-se, assim, ainda mais da profissional de Psicologia que se encontre nessa posição, pois terá de discernir, desvelar e diferenciar quais são as formas de racismos expressas na fala da paciente.
No momento em que as demandas do racismo já se encontram mais explícitas, esta pode vir associada às formas mais diretivas de intervenção, como no relato a seguir:
Primeiro eu anuncio o que há de sintomático e os efeitos do racismo que têm a ver com o sintoma, para que ele possa fazer as articulações desses sintomas, entende o que eu estou falando . . . na verdade, as intervenções têm de ser ou no momento que já tá fazendo sentido para o paciente, ou um pouquinho antes, só para que ele se desloque e possa entender da intervenção que foi feita e o faça produzir, pensar e se reestruturar (Entrevistada 1, Psicanálise).
O relato pode estar revelando outro momento de atuação ou mesmo outro modelo mais direto de intervenção. De todo modo, essas intervenções foram pautadas a partir da consideração do analista sobre o próprio sintoma do paciente.
Em outras entrevistas percebe-se direções semelhantes, no entanto, neste momento a partir do acolhimento desse sofrimento:
Eu penso muito que a primeira coisa como psicóloga [deve] fazer é a validação do sofrimento . . . é [necessário] de fato que a pessoa entenda que tem alguém prestando atenção ao que ela diz, entendendo por que que ela sofre. E, muitas vezes, o crescimento das condições estruturais ajudam a pessoa a trazer esse sofrimento e a entender que de fato ela está sofrendo, mas nem tudo é, uma coisa que foi criada por ela. A responsabilidade dela é parcial dentro de uma estrutura que é muito maior. Então, tomar consciência disso também é pensar possibilidades de transformação e inclusive tirar um pouco, por exemplo, aquela coisa da culpa (Entrevistada 4, Sistêmica).
Segundo essa entrevistada, o primeiro passo da intervenção é a atitude do profissional de Psicologia de levar em consideração os sentimentos da pessoa atendida. Por meio da validação do sofrimento, a psicóloga escuta sem haver o julgamento, fornecendo um espaço para a abertura de elaboração dessas demandas, além de ajudar a reconhecer que há uma relação de sofrimento com o que está surgindo. Desse modo, desenvolvendo um vínculo saudável e seguro para a melhor expressão da pessoa e suas demandas.
Outro ponto marcante é a não culpabilização do sujeito pelo que está sofrendo, inserindo-o em um contexto que ele tem, apenas, uma responsabilidade dentro dessa estrutura racista. Segundo Batista e Mastroni (2018), com o capitalismo, o racismo se redefiniu para além de se adaptar a essa estrutura. Desse modo, essa discriminação já acontecia antes desse modelo econômico; logo, ela está além de problemas individuais, mas que se moldam e fazem agir de forma estereotipada. E, assim, o racismo foi muito além do processo de adaptação, este contribui de forma efetiva para manter essa estrutura de desigualdade social produzida pelo sistema.
De maneira mais ampla, outro psicólogo menciona que trabalha os sintomas do racismo: “Da mesma forma que são trabalhados todos os outros sintomas” (Entrevistado 5, Junguiano). A partir dessa perspectiva de atuação, problematiza-se como o sintoma do racismo é válido, uma vez que o compara a qualquer outro. Logo, considera-se que há uma estrutura para sua intervenção, como descreve a seguinte frase:
Primeiro, acolhendo a queixa, aderindo uma atitude consciente frente a ela, e enfrentando. E esse enfrentamento, ele atrela-se também [a] uma atitude cidadã, uma atitude política. Então, pouco diferenciado das outras queixas. É . . . então, estar trabalhando comigo a situação do racismo é você ter um atrelamento, de formar seus referenciais teóricos, seus referenciais bibliográficos, referenciais de grupos de apoio, da construção de rede de apoio e acolhimento (Entrevistado 5, Junguiano).
Esses sintomas são elaborados, inicialmente, a partir da legitimação do sofrimento; posteriormente, por meio da discussão em clínica e, então, com um incentivo a uma atitude política, revendo seus referenciais, constantemente. Assim, além dos pontos já discutidos em outras entrevistas, destaca-se a atitude de uma clínica política e a discussão dos seus referenciais. Segundo Madeira e Gomes (2018), é de grande importância a criação de laços identitários pela população negra, como movimentos ligados à arte, estética, e ações afirmativas para uma identidade negra fortalecida. Dessa forma, a atuação da psicóloga também está pautada na ajuda em ressignificar esta identidade e no reconhecimento da importância do engajamento em movimentos sociais, seja para mobilização política, seja pela inserção em grupos diversos em que a pessoa possa se reconhecer do ponto de vista identitário.
Outro fator relevante encontrado nas entrevistas foi a utilização de referenciais externos como narrativas de mulheres negras para melhor elaboração dos seus sintomas:
Então, quando eu fazia umas perguntas era meio que aquelas respostas, assim, superficiais . . . Então, como a maioria tinha no primeiro contato, nessa primeira entrevista, faziam panorama de uma vida, de serem de família mais volumosas, e aí eu comecei a fazer uma associação que, poxa, a escrevivência da Conceição Evaristo traz muito, de muitas nós, E aí eu levo para ler, e aí como eu voltava, voltava assim, como se fosse realmente um processo de catarse orquestrado, porque teve ali um disparador, que [é] eu acessar uma escritora que fala sobre algo que é realmente sobre mim também (Entrevistada 3, relata não adotar uma abordagem específica).
Assim, ao fornecer experiências semelhantes à história de vida dessas pacientes, é possível fazer com que elas reconheçam que as suas dores não são somente individuais, mas compartilhadas por outras pessoas. Além disso, mobilizando-as de uma forma que comecem a ressignificar suas vidas a partir de elementos raciais trazidos nessas histórias.
A literatura se mostra como uma apropriação de conhecimento e perpetuação da cultura de sua época, a qual fornece contribuições para alterações na sociedade e se apresenta como parte importante de formação do sujeito, além de transmitir outros pontos de perspectivas que estão presentes na cultura. A “escrevivência” é um termo usado por Conceição Evaristo para representar uma escrita que se relaciona com a sua experiência, mediante suas lembranças individuais e a da população negra (Remenche & Sippel, 2019). Dessa forma, essa psicóloga parece formar relações das experiências de suas pacientes com a história de seu povo, formando novas referências.
Para a população negra, é importante a formação e o reconhecimento em representações positivas, já que o racismo traz como repercussões a representação de si como inferior, desagradável e inadequado (Tavares & Kuratani, 2019). Logo, ao mostrar a possibilidade de reflexão das suas próprias demandas por meio dessas narrativas, essa psicóloga começa a, junto a essas pacientes, resgatar sua própria identidade.
Pode ser visto, na atuação dessas psicólogas, o reconhecimento do racismo como fonte de sofrimento, o acolhimento das demandas e a tentativa de enfrentamento diante dele; dessa forma, ajudando a elaborar as possibilidades de significação que os pacientes dão a esse sofrimento como um processo causado historicamente. Entende-se que estratégias estão sendo elaboradas por essas psicólogas no enfrentamento aos sintomas do racismo na clínica, assim, indo ao encontro do que é exigido da profissão a partir do seu código de ética, como exemplo demonstrado pela atuação com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural e, dessa maneira, deslocando-se da adaptação das formas tradicionais de atuação com o objetivo de atender a população negra.
O presente estudo possibilitou analisar as formas de atuação de psicólogas no enfrentamento ao sofrimento do racismo na clínica. O trabalho consistiu em uma pesquisa qualitativa que utilizou entrevistas com psicólogas de Salvador que se autodefiniram como negras, possuíam alguma divulgação do seu trabalho com relações raciais e tempo de atuação na clínica de no mínimo dois anos.
A partir das entrevistas, foram discutidos aspectos sobre a concepção de preconceito e racismo, as demandas da população negra e algumas hipóteses sobre como acontece a atuação no manejo do sofrimento específico do racismo, dentre outros aspectos, como territorialidade. As psicólogas admitiram que a temática do racismo na clínica é algo frequentemente trazido por seus pacientes, seja como uma demanda primária, seja associado a um outro estado de sofrimento. Por meio da identificação do racismo no setting terapêutico, elas potencializam as formas de elaboração do sofrimento.
As principais limitações da pesquisa foram encontrar profissionais com mais de dois anos de atendimento psicoterápico que trabalhassem com raça, além da limitação do tempo para a realização da entrevista. Esta procura se deu pelo método “bola de neve”. A maioria dos profissionais indicados tinha tempo de formação de até dois anos, o que pode dar indícios de que a formação para uma clínica antirracista tem se popularizado mais a partir da década de 2010. O tempo para realização da entrevista foi definido junto às entrevistadas, de acordo com suas agendas. Em alguns casos, foi perceptível uma preocupação com a duração do diálogo. Dentro da categoria “demandas da população negra”, foi debatido que as questões trazidas por essa população não passam necessariamente por uma conexão direta com o racismo. Desse modo, cabe à profissional de psicologia conhecer as formas possíveis de racismo e, junto ao paciente, elaborar estratégias de enfrentamento. Na categoria “Formas de atuação perante as demandas originadas pelo racismo”, foi evidenciada a importância de se ter uma posição ativa no atendimento pela psicóloga e o papel do acolhimento do sofrimento como uma forma válida.
Um dado que apareceu nos resultados da pesquisa, mas não pode ser aprofundado nos resultados obtidos, foi a territorialidade. Esse dado foi trazido como um dos principais fatores para alcançá-los, uma vez que é a partir dessas regiões que se constroem subjetividades e existências. Fica a questão: para quem estão dirigidos hoje os serviços de psicoterapia em Salvador? Para atingir a população negra, percebe-se que essa Psicologia pretendeu focar um espaço em que elas seriam a maioria e com uma maior disponibilidade aos meios de transportes públicos.
Vale ressaltar, portanto, que quem pensa no formato da clínica para o atendimento da população negra considera buscar novas formas de se atuar neste espaço, o que aparenta ser a adaptação das formas tradicionais de atuação. O território, a partir da concentração de pessoas negras que habitam o local, e a mobilidade urbana para facilitar seu acesso são fatores importantes ao se tratar essas especificidades. Nesse sentido, estudos futuros poderão ser aprofundados sobre o tema, além de incluírem o território, considerando a distribuição territorial da população negra e o acesso aos serviços prestados pelos profissionais de psicologia em consultórios de Salvador. Pode-se questionar, também, qual população os profissionais de Psicologia no Brasil estão atendendo e os motivos para que, no início do século XXI, o trabalho na construção de uma Psicologia Antirracista esteja mais evidente. Onde estava/está a execução do potencial de um país com um intenso processo de miscigenação, grande diversidade cultural e produtor de conhecimento imprescindível, no mundo? Afinal, o que mudou para estarmos falando de raça mais uma vez?
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Última revisão: 30/01/2023
Aceite final: 06/02/2023
Sobre os Autores:
Felipe Barbosa dos Santos: Mestrando em Psicologia e Intervenções em Saúde pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Salvador, BA. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). E-mail: psi.felipebsantos@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4559-7034
Marilda Castelar: Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora adjunta do Mestrado em Psicologia e Intervenções em Saúde da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). E-mail: marildacastelar@bahiana.edu.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1628-6739
Veridiana Silva Machado: Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora assistente da Graduação em Psicologia e Medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). E-mail: veridianamachado@bahiana.edu.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8093-8709
Milena Silva Lisboa: Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Mestrado Profissional em Psicologia e Intervenções em Saúde e do Curso de Graduação em Psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). E-mail: milenalisboa@bahiana.edu.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0303-9173
Verena Souza Souto: Doutoranda em Medicina e Saúde Humana e mestra em Tecnologias em Saúde pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). E-mail: verena.souto@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0639-1551
Anexo
Dados Pessoais
Perguntas
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2068