“Libertárias”: Uma Cartografia do Cuidado com Mulheres Usuárias de Drogas

“Libertarians”: A Cartography About the Caring With Women Drug Users

“Libertarias”: Una Cartografía del Cuidado con Mujeres Consumidoras de Drogas

Alana Oliveira da Cunha

Universidade Federal da Bahia

Vitória de Oliveira de Souza

Dipaula Minotto da Silva

Universidade do Extremo Sul Catarinense

Maiton Bernardelli

Centro Universitário da Serra Gaúcha

Resumo

O presente trabalho trata de uma pesquisa-intervenção que objetivou acompanhar os processos de subjetivação, cuidado e autonomia com mulheres usuárias de drogas, a partir da criação de um grupo como dispositivo clínico-político de saúde mental, no município de Criciúma, Santa Catarina. Foi produzida uma pesquisa cartográfica, desenvolvida por meio da elaboração coletiva dos encontros do grupo, com a escrita de um diário de campo e com a escuta afetiva das narrativas. Os resultados são apresentados em duas categorias, identificadas como: romper estigmas e produzir liberdades; e mulheres usuárias e a politização do cuidado de si. Foi evidenciada a necessidade de produzir rupturas no campo da atenção psicossocial, de forma a potencializar as subjetividades das mulheres a partir do exercício do cuidado de si e da politização desse cuidado.

Palavras-chave: mulheres, drogas, saúde, gênero, cuidado de si

Abstract

This academic work presents an intervention research with the purpose of monitoring the processes of subjectivation, care and autonomy with women drug users, from the creation of a group as a clinical-political device of mental health, in the city of Criciúma, Santa Catarina. A cartographic research was developed through the collective contributions of group meetings, with the writing of a field diary and an affective listening to the narratives. The results are presented in two categories, identified as: breaking stigmas and empowering freedom; and women drug users and the politicization of self-care. The need of making disruptions in the field of psychosocial care was evidenced, in order to enhance women’s subjectivities through the exercise of self-care and the politicization of this care.

Keywords: women, drugs, health, gender, the care of the self

Resumen

El presente trabajo trata de una investigación de intervención que tuvo como objetivo monitorear los procesos de subjetivación, cuidado y autonomía con mujeres consumidoras de drogas, a partir de la creación de un grupo como dispositivo clínico-político de salud mental, en la ciudad de Criciúma, Santa Catarina. Una investigación cartográfica, desarrollada a través de la elaboración colectiva de los encuentros grupales, con la redacción de un diario de campo y escucha afectiva de las narrativas. Los resultados son presentaron en dos categorías identificadas como: romper estigmas y generar libertades; y mujeres consumidoras de drogas y la politización del autocuidado. Se evidenció la necesidad de promocionar rupturas en el campo de la atención psicosocial, a fin de potenciar las subjetividades de las mujeres desde el ejercicio del autocuidado y la politización de este cuidado.

Palabras clave: mujeres, drogas, salud, género, cuidado de sí.

Introdução

De acordo com o Relatório Mundial Sobre Drogas, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (United Nations Office on Drugs and Crime [UNODC], 2018), as mulheres apresentam maiores vulnerabilidades relacionadas ao consumo de drogas, as quais incidem em consequências sociais e de saúde à essa população, resultando em maior prevalência de sofrimento psíquico e situações de violência, que constituem desafios para as redes de cuidado, especialmente, quanto às barreiras no acesso aos serviços e à adesão às alternativas de atenção.

Esses apontamentos levam a considerar os déficits em relação à atenção à saúde das mulheres, uma vez que as estratégias da Política Nacional de Atenção a Usuários de Álcool e outras Drogas são focadas na população masculina (Bolzan, 2016). Considera-se que, o campo de estudos sobre o uso de drogas por mulheres, apesar dos avanços progressivos, ainda carece de pesquisas que abordem a temática em uma perspectiva intersubjetiva e social, cujas contribuições forneçam pistas para a criação de possibilidades de cuidado em saúde mais autônomas e efetivas (Malheiro, 2020).

Potencializando vulnerabilidades, identificam-se barreiras de acesso aos serviços e a alternativas de cuidado adequadas às necessidades em saúde em mulheres que buscaram tratamento para o uso danoso de drogas nos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (Delfino, 2021). Tais dificuldades foram relacionadas a fatores de ordem estrutural, social e/ou pessoal, entre eles o despreparo dos profissionais com relação à atenção psicossocial a mulheres usuárias, e a inexistência de espaços adequados para tratar de questões relativas ao universo feminino.

Características marcantes de desigualdades sociais foram identificadas, sendo, em sua maioria, mulheres negras (pretas e pardas), em fase economicamente ativa e reprodutiva, porém sem vínculo empregatício e com baixo poder aquisitivo, baixo nível de escolaridade, solteiras e com filhos (Delfino, 2021).

Tais dificuldades estão relacionadas às vulnerabilidades intrínsecas do perfil dessas mulheres, que, somadas às lacunas de gênero nas políticas públicas de saúde, incidem diretamente nas práticas de atenção, uma vez que as políticas que versam sobre a atenção às pessoas que fazem uso de drogas não mencionam gênero em seus textos e, com isso, não consideram as especificidades das necessidades de saúde apresentadas pelas mulheres usuárias, o que impede o direcionamento das ações para a garantia de atenção integral (Bolzan, 2016). Essa constatação reflete um processo sócio-histórico cujas mulheres, especialmente as usuárias de drogas, foram as principais vítimas das práticas manicomiais (Passos et al., 2009).

Em alguns Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), serviços de referência para o cuidado relacionado ao consumo de substâncias psicoativas no Sistema Único de Saúde (SUS), é possível encontrar propostas grupais que oportunizam o compartilhamento de vivências entre mulheres usuárias de drogas. Essas experiências apontam como efeito a potencialização de processos de cuidado e a criação de redes de apoio entre as mulheres (Apolinário et al., 2012). Entretanto, considerar as questões das mulheres como um mero recorte nos processos de cuidado, sem romper com a lógica normatizadora, geralmente abstencionista e curativa de se fazer saúde, não basta para o desenvolvimento de processos de autonomia das mulheres que fazem uso de drogas.

Nesta direção, atravessamentos institucionais nas narrativas de mulheres usuárias de drogas participantes de estudo nessa temática apontam que pesquisadores adotem metodologias de maior proximidade com seu público-alvo, para conseguirem acessar os conteúdos investigados (Queiroz & Prado, 2018).

Esses atravessamentos apontam os desafios impostos por estigmas que envolvem mulheres usuárias de drogas, e como isso pauta o cuidado em saúde e o desenvolvimento dos saberes sobre suas relações de uso e a produção de subjetividade, considerando a subjetividade enquanto um processo que se dá nas relações, nos encontros com o outro, nos acontecimentos, e produz efeitos nas maneiras de viver (Guattari & Rolnik, 1996).

As relações de uso de drogas constituem aspectos que compõem os modos de existência das mulheres aqui apresentadas. Nesse sentido, buscamos investigar os processos de subjetivação considerando os usos de drogas enquanto categorias privilegiadas de análise.

Partimos do pressuposto de que o uso de drogas deveria ser tratado a partir de um processo histórico, social e subjetivo que constitui o devir mulher usuária de drogas, devir enquanto movimento rizomático, processo de experimentação e criação de novas subjetividades (Deleuze & Guattari, 1997), que acontece no encontro das mulheres com as drogas, reconhecendo a heterogeneidade desse processo, o qual é interseccionado pelos sistemas de opressões (Bolzan, 2016), como o patriarcado, o racismo e o proibicionismo.

Este artigo se refere a uma pesquisa-intervenção (Passos et al., 2009) que realizei enquanto psicóloga-residente em saúde mental pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), com o CAPS AD e o Núcleo de Prevenção às Violências, na cidade de Criciúma, Santa Catarina. O objetivo foi acompanhar processos de subjetivação, cuidado e autonomia com mulheres usuárias de drogas, a partir do desenvolvimento de um grupo de saúde mental, proposto como um dispositivo clínico-político, funcionando como agenciador de encontros e potencializador de processos de subjetivação (Hur, 2012).

Trata-se de uma cartografia construtivista (Hur, 2021), escrita em primeira pessoa pela pesquisadora-participante, através da qual busquei intervir para transformar a realidade (Passos et al., 2009) e, ainda, ampliar o olhar a respeito da temática da atenção psicossocial com mulheres usuárias de drogas, a qual comumente limita-se aos aspectos relacionados às motivações sobre o uso de drogas e as perspectivas de tratamento. A elaboração deste artigo contou com a participação de três importantes parceiros de percurso, os quais assinam a coautoria do trabalho.

A presente investigação busca evidenciar a necessidade de produzir rupturas no campo da atenção psicossocial, de forma a potencializar as subjetividades das mulheres a partir do exercício do cuidado de si e da politização desse cuidado, e, ainda, contribuir para o campo de estudos sobre usos de drogas por mulheres, em uma perspectiva antiproibicionista, por meio de um percurso de sensibilização política para a temática em questão, sob um prisma que considera subjetividade e desejo na tessitura do processo de autonomia.

O cuidado de si, apoiado nas contribuições de Michel Foucault, traduz uma dimensão ética que tem como perspectiva a relação do sujeito com ele mesmo e com o outro, a partir de práticas relacionais que incorporam diferentes dimensões, perpassando por questões físicas, psíquicas e sociais.

Percurso Metodológico

Trata-se de uma pesquisa qualitativa em saúde (Minayo, 2008), que, por meio do método da cartografia, voltou-se para a investigação dos aspectos subjetivos e relacionais do uso de drogas por mulheres.

A cartografia enquanto método de pesquisa (Passos et al., 2009) propõe o acompanhamento de objetos processuais, como a produção de subjetividade, por meio de seus efeitos sobre o percurso de investigação. Este método de pesquisa crítico e reflexivo considera que não há afastamento entre pesquisador e pesquisados, já que as construções e análises irão compreender os processos relacionais e de construção da pesquisa. Escolhi esta abordagem por entender que, como orienta Malheiro, “a compreensão dos aspectos mais subjetivos acerca do uso de drogas só é possível com a criação de vínculos e de um diálogo com a pessoa que usa drogas” (Malheiro, 2020, p. 88).

A pesquisa-intervenção cartográfica acompanhou a realização de um grupo de saúde mental com mulheres usuárias de drogas, o qual funcionou como dispositivo de investigação (Hur, 2021). A implementação do grupo enquanto um dispositivo clínico-político situa-se na experiência em um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, a partir da inserção de duas psicólogas-residentes em um CAPS AD e em um Núcleo de Prevenção a Violências e Promoção da Saúde (NUPREVIPS).

A partir dos atendimentos às mulheres nos serviços referidos, eu e minha parceira de trabalho, ambas psicólogas-residentes, identificamos situações-problemas com muitas similaridades em seus processos de cuidado. Com isso, foi possível compreender que há uma singularidade no processo terapêutico com mulheres em contextos de uso de drogas e violência, o qual demanda ações de cuidado coletivas.

Acreditamos e apostamos que tais cuidados deveriam ser construídos com as mulheres, a partir do encontro e das discussões sobre suas realidades de vida, para que assim possam buscar maneiras mais eficazes de mudá-las, desenvolver formas de subverter as produções normativas de saúde e criar linhas de fuga que potencializassem as subjetividades.

A cartografia foi desenvolvida por meio da elaboração coletiva dos encontros do grupo, com a escrita de um diário de campo e a escuta afetiva das narrativas. Tais pistas cartográficas fizeram emergir o que ocorreu no plano intensivo das forças e dos afetos (Passos et al., 2009), na experiência de grupo, e foram localizadas como forma de mapear as categorias de análise.

Com a escrita do diário de campo, foi possível captar e registrar informações objetivas e subjetivas, como sensações, narrativas e acontecimentos presentes nos encontros grupais. De forma complementar, a escuta afetiva das narrativas funcionou como um manejo cartográfico de entrevista (Passos et al., 2009) e oportunizou evidenciar a experiência de grupo por meio da fala, garantindo o acolhimento necessário para que as narrativas sobre os usos, bem como sobre a experiência de participação no grupo, fossem manifestadas.

Busquei mapear os analisadores de processos que emergiram como indicadores intensivos (Hur, 2021) e produziram sentido sobre os processos de subjetivação e produção de cuidado e autonomia na experiência do grupo de saúde mental. Tais analisadores expressaram processos coletivos e singulares vivenciados pelas mulheres usuárias participantes.

Os resultados se referem a produções do dispositivo clínico-político e foram organizados em duas categorias, que se relacionam aos processos em curso na experiência de grupo, identificados como: romper estigmas e produzir liberdades; e mulheres usuárias e a politização do cuidado de si.

O Dispositivo Clínico-Político: Grupo de Saúde Mental com Mulheres “Libertárias”

O grupo ocorreu no período de maio a dezembro de 2021, com dezesseis encontros semanais e presenciais, cada um com duração de três horas. Sua proposição inicial foi organizada em quatro módulos: 1) Acolhimento e integração do grupo; 2) Conhecendo e cuidando de mim; 3) O que eu posso usar: ferramentas de cuidado e autonomia para a saúde das mulheres; 4) Promover cuidado e reparar as violências.

Este dispositivo clínico-político foi proposto como uma experimentação no campo da saúde mental, pautado na lógica antimanicomial de colocar “a doença” (Basaglia et al., 2005) e, nesse caso, o uso de drogas, entre parênteses, e a mulher usuária como protagonista do seu processo de cuidado. Para isso, o trabalho foi orientado pelas perspectivas da clínica ampliada (Brasil et al., 2003), da redução de danos (Petuco, 2014) e do feminismo antiproibicionista (Teixeira, 2018), com a criação de estratégias voltadas ao cuidado de si e à gestão autônoma de prazeres.

A experiência de grupo contou com a participação transitória de sete mulheres, as quais são aqui identificadas como “companheiras” e não meramente participantes da pesquisa. O termo “companheira” se refere ao caráter da cartografia de acompanhamento dos processos de subjetivação, no qual as mulheres usuárias não são objetos de estudo, mas protagonistas na realização do grupo e sujeitas de pesquisa.

Eram mulheres plurais, cis e trans, com idades entre vinte e quarenta e sete anos, brancas e negras, mães e mulheres sem filhos, algumas com nível de escolaridade superior incompleto, outras que não concluíram o nível fundamental, e uma companheira que não era alfabetizada. Algumas delas trabalhavam formalizadas; outras exerciam atividades informais e o trabalho doméstico não remunerado.

Por entender a necessidade de ofertar um espaço mais acolhedor e não estigmatizante para as mulheres, o grupo foi realizado fora dos serviços de saúde nos quais elas faziam acompanhamento, ocorrendo no Centro de Convivência e Integração na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).

O espaço universitário constitui uma importante representação comunitária local, o qual, entretanto, as mulheres não frequentavam. A ampliação das possibilidades territoriais visou à inclusão social das mulheres, e o acesso foi garantido mediante o fornecimento de vale-transporte, considerando que estas eram acompanhadas pelos serviços CAPS AD e NUPREVIPS. Desta forma, também foi possível viabilizar a realização dos encontros em um espaço seguro, com relação às normas de segurança em saúde, considerando o período pandêmico da covid-19.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Parecer de aprovação n. 4.805.602) e pela Secretaria de Saúde do município em que a pesquisa foi desenvolvida (Protocolo n. 607626). As mulheres participantes do grupo aceitaram colaborar com a pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e Discussão

Algumas mulheres participaram do grupo durante todo o período de realização; outras acompanharam alguns encontros pontualmente. Independentemente da frequência, suas passagens provocaram fissuras e criaram fluxos de cuidados. A potência dos encontros se consolidou na relação de parceria entre elas, que, a partir de suas narrativas, puderam encontrar identificações em suas histórias, mas também a singularidade nas relações de uso.

Nessas relações de troca, foram tecidos laços de amizade que se consolidaram para além dos encontros grupais. Ao chegar no grupo, elas comumente diziam: “Não tenho amigas” ou “Nunca participei de um encontro assim, só com mulheres”.

O grupo se constituiu como possibilidade de experimentação dessas relações, as quais foram mantidas por meio de contatos virtuais via WhatsApp, encontros pela cidade e parcerias para frequentar as atividades no CAPS AD. Além de combinarem de se encontrar no serviço de saúde mental, elas passaram a se articular para estarem juntas nas oficinas do CAPS AD, ocupando esses espaços e movimentando esse ambiente, no qual predominava a participação de homens.

Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) são os serviços mais procurados pelas mulheres com necessidades decorrentes do uso de drogas (Delfino, 2021) e são considerados como um lugar importante de apoio para elas (Pierry et al., 2021). Entretanto, são serviços que apresentam maior prevalência do público masculino, o que incide diretamente no acolhimento das mulheres nestes espaços, haja vista que a hegemonia masculina faz com que as mulheres vivenciem constantes situações de constrangimento (Delfino, 2021; Pierry et al., 2021).

Algumas estratégias destes serviços desfavorecem a atenção às mulheres usuárias de drogas quando as inserem como minorias em espaços majoritariamente masculinizados, pois acabam por limitá-las quanto à expressão de suas questões, fazendo com que evitem participar das ações de cuidado propostas, especialmente em atividades coletivas como grupos e oficinas. Desta forma, o acolhimento e o apoio entre mulheres nos CAPS AD, somados às estratégias que consideram as desigualdades de gênero, são essenciais para a sua vinculação, pois essa relação propicia o sentimento de identidade e pertencimento (Pierry et al., 2021).

Um movimento que permeou toda a experiência do grupo foi o acolhimento de novas companheiras, o qual era feito por nós, as psicólogas dos serviços, e pelas próprias mulheres participantes do grupo. Ao se conhecerem, as mulheres prontamente se interessavam pela história de vida uma da outra, bem como falavam de seus acompanhamentos nos serviços, como chegaram até o grupo e como estava sendo a experiência de participação. Nesses relatos, identificaram objetivos em comum, como a busca e o fortalecimento da autonomia e do cuidado de si.

Em um dos encontros, tivemos o acolhimento de uma companheira, que aqui chamarei de Isabel. Mulher negra de quarenta anos, é acompanhada pelo CAPS AD, especialmente pelo seu uso de crack. Ao chegar no grupo, Isabel contou sobre o seu contexto de vida e expressou como se sentia ao ter a sua autonomia limitada, por ser analfabeta e por conta do seu problema com o uso de drogas, o que faz com que ela seja dependente do marido e do CAPS AD para acessar o que necessita. “O que eu mais queria era ser livre e não depender mais do meu marido e do CAPS pra fazer as coisas”.

Carla, companheira de grupo que também frequenta o CAPS AD, ao escutar, acolheu a narrativa e disse: “É por isso que todas estamos aqui, porque queremos ser livres, independentes . . . Eu acho que a gente devia dar um nome pro grupo, o que tem a ver com ­liberdade?” Elas pensaram em sugestões, mas não gostaram de nenhuma, então eu sugeri: “Que tal se chamarmos de libertárias?”. O termo fez sentido, e elas o acolheram.

Nesse fluxo de falar e constituir os sentidos e objetivos do grupo, as mulheres conseguiram nomear a experiência de grupo, identificando-o como “Libertárias”, que consiste na expressão do desejo de se libertarem de relações de dependência e das marcas de sofrimento e estigma causados pelas relações danosas de uso de drogas e de violência, funcionando como expressão do desejo pela sua autonomia.

Romper Estigmas e Produzir Liberdades

Esta categoria apresenta e discute como as companheiras se subjetivaram na experiência de grupo com relação ao processo de identificação, sobre o que é ser uma mulher usuária de drogas, considerando que o sujeito, enquanto categoria, não se trata de um indivíduo que preexiste; pelo contrário, é na produção de si, em relação com o outro, que são produzidas as vivências e experiências que constituem o sujeito, buscando romper com os estigmas socialmente atribuídos e produzindo subjetividades mais livres, com o reconhecimento de que suas possibilidades de vida não se reduzem às relações de uso, mas que elas podem se tornar mais autônomas na realização de projetos de vida que desejam para si mesmas.

Ao se juntarem ao grupo, as companheiras se identificam e se apresentam a partir de suas relações de uso de drogas, “sou uma alcoólatra em recuperação”, “sou mãe e tenho um problema com álcool”. Ao se identificarem desta forma, as mulheres falam sobre como o estigma sobre os usos de drogas incide sobre as formas como percebem a si mesmas e são percebidas em suas relações afetivas e sociais.

Os indivíduos estigmatizados são os que produzem “desvios”, nisso, mais do que classificar, há um processo de apagamento do eu, em detrimento a essa classificação homogeneizante (Goffman, 1981). Assim, quando pensamos na categoria “mulher usuária de drogas” e pomos em questão o estigma, estamos considerando esses constructos sociais que cristalizam suas identidades, despotencializando a própria subjetividade e promovendo um apagamento do eu.

Desta forma, “relações desiguais de gênero e modelos tradicionais hegemônicos de feminilidade e masculinidade são reproduzidos no uso de drogas” (Silva et al., 2021, p.10), o que faz com que as mulheres sofram consequências danosas em relação à representação social do uso, sendo a maior estigmatização. Deste modo, é comum que as mulheres expressem vergonha e culpa por usarem drogas, considerando que este é um comportamento tido como desviante do padrão normativo atribuído às mulheres.

No grupo, as companheiras compartilharam que são comumente taxadas de “vagabundas”, especialmente quando fazem uso em lugares públicos e, com isso, discutem sobre as suas percepções quanto às diferenças nas experiências de uso de drogas entre homens e mulheres em uma sociedade machista, na qual o uso de drogas por mulheres é visto como imoral e, pelos homens, como algo natural.

Silvia, uma companheira de grupo, mãe e trabalhadora, ao compartilhar situações de risco que vivencia para conseguir fazer o seu uso de álcool, relata:

Eu queria ter um lugar pra beber, porque em casa eu não posso, mas também não tenho coragem de beber numa lanchonete ou coisa assim, porque é feio, né, mulher bebendo cerveja. . . Então eu bebo na rua, andando por aí. . .”.

Contudo, não é possível pensar o estigma na experiência de mulheres usuárias de drogas apenas a partir do marcador de gênero. Ainda que, no imaginário social, o consumo de drogas por mulheres esteja relacionado à ideia de desajuste com a feminilidade, esses sentidos atingem as mulheres de maneiras diversas, sendo necessário considerar outros marcadores sociais que também são estruturantes das relações sociais, como raça e classe (Malheiro, 2020), visto que, historicamente os papéis de mãe, esposa e cuidadora da família foram atribuídos às mulheres brancas, enquanto as mulheres negras “eram vistas pelo olhar desumanizador do racismo como incapazes do exercício da maternidade, traficantes e criminosas” (Malheiro, 2020, p. 241).

No grupo com as mulheres, o estigma é discutido a partir destes marcadores sociais, considerando que, em sua maioria, as participantes são mulheres negras e periféricas. No caso de uma companheira, Bruna, mulher cis, jovem e negra, que teve o direito à maternidade negado ao ser abordada pela polícia e estar fumando um baseado na presença da filha, ela diz: “Minha filha tá pagando por um erro que não é dela, é meu. Ela foi levada pro abrigo porque eu escolhi fumar maconha”.

De início, Bruna individualiza a situação de violência que ela e a filha estão vivenciando, atribuindo toda a responsabilidade dos fatos para si. Ao compartilhar a situação, Bruna é acolhida pelas companheiras do grupo, que questionam outros elementos da história, discutindo coletivamente sobre a ação dos órgãos de proteção e os motivos que levaram ao desfecho atual. Assim, Bruna passou a compreender a situação a partir de uma concepção ampliada e crítica, reconhecendo como o proibicionismo e o racismo incidem em sua realidade de negação do direito à maternidade pelo uso de drogas.

Inicialmente, o consumo de drogas é compreendido pelas companheiras como “o problema” de suas vidas ou como o objeto responsável pelas mazelas e dificuldades que enfrentam, como exemplo, quando elas atribuem ao uso o fato de estarem desempregadas.

Ao chegar no grupo, Maria, uma companheira com quarenta e sete anos, que tinha o ensino fundamental incompleto e quase nenhuma experiência de trabalho, ao compartilhar sobre seus objetivos de conseguir um emprego e voltar a morar na sua casa, referiu: “Preciso conseguir me controlar com a bebida, parar de vez para poder trabalhar”, atribuindo ao consumo do álcool o motivo pelo qual ela não conseguia um emprego.

Para as mulheres, a droga assumirá um lugar de primazia da negatividade, cujo uso só pode estar atrelado a acontecimentos ruins e prejudiciais, ao se compreender a questão das drogas a partir da biopolítica, ou seja, um poder que se exerce sobre os corpos, de forma a discipliná-los, através de dispositivos. “É isto o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele” (Foucault, 2019).

Assim, conceitualmente, podemos pensar na droga como um dispositivo biopolítico, que exerce o poder de assujeitar as mulheres, a partir dessa economia do biopoder (Foucault, 1979), ancorada na estigmatização e no proibicionismo. O entendimento apresentado pelas mulheres sobre o uso de drogas como “problemático”, refere-se a uma construção social que foi fomentada pela ciência proibicionista com a Guerra às Drogas (Malheiro, 2020). Tal concepção hegemônica segue vigente, e a lógica da política proibicionista de que a droga é um mal que precisa ser combatido segue sendo reproduzida pela sociedade e, consequentemente, permeando os serviços de saúde, especialmente os CAPS AD.

Como efeito no processo de cuidado, as mulheres passam a se identificar como doentes, acometidas por um problema de saúde que demanda tratamento constante. Para que consigam se controlar e ficar abstinentes, entendem que devem ir assiduamente ao serviço, e quando não conseguem manter a assiduidade pelos mais variados motivos, sentem que falharam com o tratamento, o que acaba frustrando as suas ideias de autonomia (Pierry et al., 2021).

Desse modo, o estigma relacionado ao uso, além de empobrecer a subjetividade das mulheres, a partir dessa normatização, acaba incidindo negativamente em seus processos de cuidado, já que as instituições incorporam os estigmas. Até mesmo em espaços como o CAPS AD ainda há reproduções machistas e proibicionistas que acabam por negligenciar a atenção às mulheres. Esse ponto foi central em minha análise, bem como na construção do dispositivo clínico-político.

Na experiência de grupo, o estigma foi compartilhado pelas mulheres em suas narrativas a partir dos diferentes marcadores e sentidos, conforme evidenciado nos exemplos aqui citados. Nesse processo de falar sobre as opressões estigmatizantes, elas também puderam refletir de forma crítica sobre tais atravessamentos. Mais do que acolher uma à outra, ao escutarem as histórias, as mulheres se implicaram nos acontecimentos, questionando se as violências e as dificuldades que enfrentam seriam culpa de seus usos de drogas ou efeitos de um sistema opressor.

Com isso, aconteceram no grupo discussões sobre o proibicionismo e a política de guerra às drogas. Nesses diálogos, as companheiras também expressaram questionamentos que tinham acerca do uso de drogas, como a dúvida se a maconha realmente “matava os neurônios”, o que abriu espaço para conversarmos sobre os mitos que foram criados para criminalizar e proibir o uso da maconha, e o sentido político e social da proibição.

As discussões entre as companheiras sobre questões envolvendo o uso de drogas em uma perspectiva crítica-reflexiva incidiu na desconstrução da concepção do uso de drogas como “o problema”, e, consequentemente, as narrativas culpabilizadoras foram dando lugar para a expressão sincera sobre as experiências de uso, emergindo a compreensão do uso de drogas em uma perspectiva relacional.

Diferente da noção de padrão de uso, que considera a intensidade, frequência e o contexto (Silveira & Doering-Silveira, 2016), as relações de uso se referem aos afetos que atravessam e constituem essas experiências (Paz et al., 2017), considerando os efeitos no corpo e na subjetividade. Tal entendimento nos permite rastrear quais são os processos de subjetivação que acontecem no encontro das mulheres com as drogas, quais as relações de uso estabelecidas, os sentidos atribuídos e as possibilidades de cuidado.

Aconteceu na experiência de grupo um processo de produção subjetiva com relação ao desejo por liberdade, ao desenvolvimento da autonomia das mulheres com relação aos seus usos e aos seus projetos de vida. Ao passo que as companheiras puderam dialogar abertamente sobre o uso de drogas como uma questão que atravessa as suas realidades e as constitui enquanto mulher, emergiu o reconhecimento do uso como uma relação singular, com sentidos e funções diferentes. Tal entendimento incidiu na desconstrução da concepção hegemônica do uso apenas como danoso ou problemático, e abriu caminhos para que elas pudessem agenciar possibilidades de cuidado de si.

Mulheres usuárias e a politização do cuidado de si

Esta categoria apresenta e discute o processo de subjetivação em curso na experiência de grupo que incidiu na produção de subjetividades mais autônomas com relação ao cuidado de si. De maneira inicial, é preciso destacar que o cuidado de si trata-se de um exercício ético de se ocupar consigo mesmo (Foucault, 2005).

Além de práticas que tem como fim o cuidado consigo mesmo, essa categoria ocupa um campo de saber na própria saúde. A partir dessa compreensão, os módulos 3 e 4 propostos pelo dispositivo clínico-político tratavam diretamente do cuidado de si, a partir das noções acerca do autoconhecimento e da autonomia.

Lançando mão de práticas analíticas acerca dos processos de vida e de recursos de autoconhecimento e autocuidado, levamos as mulheres a pensarem, individual e coletivamente, sobre si mesmas e os papéis que ocupavam. Isso é o que foi chamado de “cuidado de si”. Nesse espaço, de relação intersubjetiva, a droga adquire um sentido de recurso, não mais como um objeto externo a ser denegado.

Inicialmente, ao falar sobre suas relações com o uso de drogas, “eu fumo pra me acalmar, ficar de boa”, “eu gosto de beber pra relaxar, assim, na minha casa…é o meu momento” acontece, na experiência de grupo, um reconhecimento por parte das companheiras do uso como um recurso de cuidado de si, especialmente ao considerarem o momento de uso como o único momento que têm consigo mesmas. A partir desse reconhecimento, as mulheres conversam e refletem sobre a dificuldade de terem momentos para si, de fazerem atividades que gostam e lhe dão prazer, de cuidarem da sua aparência e investirem em recursos que propiciem bem-estar.

A expressão dessas questões acontece especialmente nos encontros em que propusemos práticas experimentais de autocuidado, através de movimentos corporais, alguns mais expansivos, como a dança, outros mais introspectivos, como práticas de yoga e relaxamento, e também com a utilização de recursos como argila, plantas e óleos essenciais, que foram manejados para o cuidado terapêutico e estético.

O que busco evidenciar é que, se antes as mulheres apresentavam uma limitação com relação ao cuidado de si, seja pelo estigma, seja pela relação danosa de uso, no grupo, há uma produção subjetiva que institui uma nova relação delas consigo mesmas e com as drogas, o que se dá com a experimentação de movimentos de autocuidado e nas relações de afeto que elas estabelecem entre si por meio do grupo. Com isso, elas reproduzem os movimentos experimentados no grupo em casa e criam também outras experiências de cuidado e prazer consigo mesmas.

Algumas companheiras compartilham que fazem esses movimentos de cuidado de si combinados com o uso de drogas, descobrindo outras formas de experienciar estes usos. Outras companheiras referem a substituição do uso de drogas por outros recursos de cuidado, ampliando as possibilidades. Assim, a experiência de grupo potencializa o “pensar novas formas estratégicas de gestão dos prazeres a partir da ótica do feminismo antiproibicionista” (Teixeira, 2018).

Após os encontros em que realizamos práticas corporais, Bruna conta que passou a fazer também em casa, por reconhecer os benefícios dos movimentos, “eu não sabia que me alongar me fazia tão bem, agora todo dia eu faço um pouco antes de dormir, pra acalmar a ansiedade”. As companheiras passaram a se relacionar com o seu corpo e a sua aparência física numa perspectiva de investimento afetivo e de cuidado com a autoestima. Uma delas buscou mudar a relação com a comida; outra mudou o cabelo, e outra colocou alongamento de unhas (algo que ela nunca teria experimentado).

Elas passaram também a priorizar o cuidado com a saúde e, com isso, começaram a frequentar as consultas médicas, realizando exames e procedimentos de rotina que antes não faziam, além de manterem o acompanhamento psicoterapêutico, o qual elas identificaram que se tornou um complemento do grupo “quando tem alguma coisa que a gente fala aqui que mexe comigo, eu converso com a minha psicóloga lá no CAPS”.

Quando não conseguiam acessar os atendimentos de forma gratuita pelo SUS, elas passaram também a se organizar financeiramente para isso. Um exemplo é Carla, que buscou equilibrar o valor gasto na compra das drogas para bancar o tratamento odontológico, “o dinheiro que antes eu só gastava na droga agora eu tô [sic] pagando o meu tratamento no dentista, tô [sic] cuidando dos meus dentes”.

Em um dos encontros, Isabel, umas das companheiras, fala: “Encontrei um grupo para cuidar de mim”, reconhecendo a singularidade deste espaço, diferentemente dos que ela frequentava no CAPS AD, “de início, teve dias que eu não queria vir, achei bem desafiador, mas, mesmo assim, eu disse: Não, eu vou, porque como que eu quero uma mudança se eu não der um passo diferente?”

A politização do cuidado de si emerge na experiência de grupo como efeito do processo de reconhecimento e desconstrução do estigma, que se dá através das discussões sobre as opressões machistas, racistas e proibicionistas que sofrem por serem mulheres usuárias. Assim, acontece uma mudança de posicionamento das mulheres perante a droga, que deixa de ser de “impotência diante de um problema” e assume uma postura ativa, enquanto usuária que escolhe quando, como e para quais fins utiliza a sua substância de preferência.

Considera-se que a compreensão por parte das pessoas que usam drogas quanto à dimensão individual de uso como relação socialmente construída e significada propicia o desenvolvimento da autonomia, pois faz com que se reconheçam enquanto sujeitas ativas diante de seus usos (Paz et al., 2017).

Para o fortalecimento das mulheres nas suas relações com as drogas, especialmente em um contexto opressor, faz-se necessário “construir mecanismos de autocuidado individual e coletivo de proteção e fortalecimento pessoal, com o intuito de assegurar a maximização do prazer e a minimização de riscos e danos” (Teixeira, 2018, p. 55).

A experimentação do cuidado em suas dimensões corporais, analíticas e relacionais, que foi propiciada pelo grupo, contribuiu para o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o cuidado de si, como um direito a ser exercido, independentemente de suas relações de uso de drogas. Houve, então, uma produção subjetiva com relação ao cuidado, que potencializou modos de vida mais autônomos e livres.

Cabe destacar também que, como resultado desse processo de subjetivação política, as mulheres passaram a mapear projetos de vida a partir de seus desejos e sonhos. Verônica, uma companheira, compartilhou com o grupo a sua conquista ao tirar a carteira de motorista e falou sobre a sua próxima meta: voltar a cursar Pedagogia.

Jéssica, uma companheira que nunca havia trabalhado fora de casa, porque o marido não aceitava, passou a ver o trabalho como uma possibilidade de desenvolver a sua autonomia e se inscreveu para um processo seletivo na prefeitura municipal. E, ainda, Carla, que precisou ser afastada do trabalho por motivos de sofrimento psíquico, passou a considerar a possibilidade de fazer um curso de cabeleireira, para trabalhar com o que gosta.

Os efeitos do dispositivo clínico-político apontam para uma certa crítica às práticas de sujeição que estigmatizam as mulheres, em torno da categoria histórica “droga”. Quando falamos em processos de subjetivação, predispomos sujeitos livres e autônomos. Aqui, estamos trazendo uma crítica a uma identidade cristalizada em torno da categoria “usuária de drogas”. Para além disso, trazemos a possibilidade de “[...] promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que nos foi imposta a vários séculos” (Foucault, 2013, p. 239), assim politizando o cuidado de si, por meio do da compreensão de si mesmas como sujeitas de direito, mulheres que, independentemente de suas relações de uso de drogas, são capazes de agenciar cuidado e qualidade de vida de forma autônoma.

O desejo de “libertação” das mulheres, como nos denota o nome do grupo, parte do reconhecimento do contexto histórico e político de estigmatização, mas, além disso, de um processo de subjetivação múltiplo, em que a liberdade se dá nos processos micropolíticos e na produção afetiva do cuidado.

Considerações Finais

A partir desta pesquisa-intervenção, busquei interrogar as possibilidades de cuidado entre mulheres, a partir de um dispositivo clínico-político, um grupo de saúde mental com mulheres usuárias de drogas. Diante desse acompanhamento, explorei aspectos subjetivos e relacionais do uso de drogas pelas companheiras do grupo, compreendendo a heterogeneidade do campo e a possibilidade da criação de uma pesquisa que se construiu a partir da formação de vínculos.

De maneira inicial, saliento que a compreensão do uso de drogas fora do estigma de uma negatividade, mas como uma construção histórica, política e cultural, que deve ser entendido relacionalmente, norteou as minhas análises expressas neste trabalho. Além disso, a perspectiva de droga enquanto dispositivo biopolítico pode colocar em evidência as relações de poder, que sujeitam as mulheres e produzem saberes científicos proibicionistas.

Este foi um ponto central para sustentar a proposição feita de que é possível agenciar experiências de cuidado em saúde que não excluam as relações de uso de drogas para instituir modos normativos do que se considera saudável, mas que componham com essas relações, no objetivo de produzir autonomia na gestão de prazeres e riscos a partir do uso de substâncias.

A cartografia por meio desse olhar construtivista me possibilitou apresentar um caminho sensível às narrativas das mulheres e, ainda, tecer relações contingentes com o campo da pesquisa e as investigações propostas, rompendo a lógica das produções hegemônicas sobre uso de drogas. Destaco também que o campo de uso de drogas e gênero é incipiente; dessa forma, essa cartografia também contribui para uma sensibilização da temática. Diante da pesquisa, reafirmo o compromisso ético-político de revelar as relações de poder e construir um saber antiproibicionista diante da ciência hegemônica (Malheiro, 2020).

Destaco que, diante das análises, as categorias que emergiram da experiência foram pautadas pela questão da estigmatização, de como as mulheres se representavam, a partir da ótica proibicionista do uso de drogas por mulheres, marcadas pelas opressões de raça e gênero. Tais concepções apontaram para a necessidade de produzir rupturas e a perspectiva de cuidado em saúde, pautada pela lógica da redução de danos. Ainda, o direito ao cuidado de si como um exercício de saúde, e como um acesso à autonomia, foi central. A partir dessas questões, as mulheres puderam reformular a visão sobre seus usos de drogas e expandir seus recursos de cuidado em liberdade.

Portanto, essa cartografia também tensiona o campo da atenção psicossocial, pensando como o estigma atravessa o cuidado das mulheres, incidindo negativamente sobre ele e ocasionando sofrimento e negligência. Ao trazer experiências coletivas, pautadas em um trabalho com viés antiproibicionista para o cuidado das mulheres, ela apresenta a lacuna diante dos serviços e a potencialidade do dispositivo clínico-político proposto.

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Recebido em: 18/09/2022

Última revisão: 24/01/2024

Aceite final: 28/02/2024

Sobre os autores:

Alana Oliveira da Cunha: [Autora para contato]. Especialista em Saúde Mental, Atenção e Reabilitação Psicossocial e também psicóloga pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Residente em Saúde Coletiva com ênfase em Planejamento e Gestão do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. E-mail: alanacunha.psi@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7599-989X

Vitória de Oliveira de Souza: Mestra em Desenvolvimento Socioeconômico, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, e psicóloga pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Professora no curso de psicologia do Centro Universitário (Univinte – Fucap). E-mail: vitoria.olv.souza@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7306-7888

Dipaula Minotto da Silva: Doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Psicóloga docente e tutora no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Atenção e Reabilitação Psicossocial da UNESC. E-mail: dms@unesc.net, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0411-2478

Maiton Bernardelli: Doutor e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Psicólogo pelo Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG). Docente e coordenador do curso de Psicologia do FSG Bento Gonçalves. E-mail: bernardelli.maiton@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1118-113X

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v16i1.2156

Relatos de pesquisa