O Trabalho de Escuta no Hospital: Contribuições da Psicanálise à Luz de um Caso Clínico

The Listening Work in the Hospital: Contributions of Psychoanalysis in Light of a Clinical Case

El Trabajo de Escucha en el Hospital: Aportes del Psicoanálisis a la Luz de un Caso Clínico

Diego Alonso Soares Dias1

Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais

Marina Mendonça Herzog

Centro Psíquico da Adolescência e Infância/Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CEPAI/FHEMIG)

Resumo

O presente artigo tem como objetivo problematizar aspectos relacionados à maneira como um analista pode vir a desenvolver sua prática no contexto hospitalar, prática essa atravessada por dificuldades e tensionamentos de diferentes ordens. Interessa-nos sustentar, por meio de nossa elaboração, traços e elementos que apontam para a especificidade da prática analítica no hospital. Para isso, procedemos de maneira a marcar as diferenças existentes entre a psicanálise (que se interessa, antes de mais nada, pelo sujeito em sua singularidade) e a medicina (orientada por normas que têm como objetivo o alcance de um ideal de cura estabelecido). Utilizamos, para a construção de nossa argumentação, fragmentos de um caso clínico, sendo que, por meio de tais fragmentos, foi possível estabelecermos pontos que nos auxiliaram na reflexão sobre o trabalho analítico no contexto hospitalar.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Clínica

Abstract

This article aims to problematize aspects related to the way an analyst may develop his practice in the hospital context, a practice that comes across multiple obstacles and challenges. To do this, we intend to raise and sustain aspects related to the specificity of analytical practice in the hospital. In order to achieve such goal, we pointed out the existing differences between psychoanalysis (which is interested in the subject's singularity) and medicine (which follows a path guided by an established ideal of cure). Our argumentation was built above fragments of a clinical case, through which was possible to establish points that help us to reflect about the analytical work in the hospital context.

Keywords: Psychoanalysis, Hospital, Clinic

Resumen

Este artículo tiene como objetivo señalar problemáticas relacionadas con la manera en que un analista puede desarrollar su práctica en el contexto hospitalario, una tarea que se encuentra atravesada por dificultades y tensiones de diferentes índoles. Nos interesa sustentar, por medio de nuestra elaboración, características y elementos que apunten hacia la especificidad de la práctica analítica en el hospital. Para ello, procedemos a marcar las diferencias existentes entre el psicoanálisis (que se interesa, sobre todo, por el sujeto en su singularidad), y la medicina (orientada por normas que tienen como objetivo el alcance de un ideal de curación establecido). Para la construcción de nuestro argumento, utilizamos fragmentos de un caso clínico, siendo que, por medio de ellos, fue posible establecer puntos de encuentro, los cuales nos ayudaron a reflexionar sobre el trabajo analítico en el contexto hospitalario.

Palabras clave: Psicoanálisis, Hospital, Clínica

Observações Introdutórias: a Psicanálise como o Avesso da Medicina

A atuação do analista na instituição hospitalar envolve muitos desafios, ao mesmo tempo que abre possibilidades de intervenção e reflexões. Por um lado, a prática da psicanálise está orientada, do ponto de vista ético, pelo que há de mais singular em cada caso. Já os saberes orientados pelo discurso médico priorizam o bem-estar do paciente, a partir de um ideal institucional de objetivação e normalidade que exclui, muitas vezes, o sujeito em sua singularidade.

Na prática médica, observamos uma importância ímpar atribuída ao tratamento da doença, o doente sendo entendido como o meio pelo qual a enfermidade se manifesta. Busca-se extraí-la do homem que padece, para que se consiga o restabelecimento do corpo adoecido. O doente, para o discurso médico, é localizado por meio da equação “Doente = Homem + Doença”, sendo que tal equação é desfeita no momento em que a doença é tratada (Clavreul, 1983, p. 99-100). Ao abordar a doença com certa distância em relação ao homem, afastamos a possibilidade de que o sujeito, com seus impasses e sua divisão constitutiva, faça-se presente de imediato no raciocínio médico2.

De acordo com Clavreul (1983), a psicanálise configura-se como o avesso da medicina. Sendo assim, as intervenções analíticas reintroduzem o que a medicina procura desconsiderar em sua técnica e forma de organização. A atuação da medicina se caracteriza por ser fundamentalmente normativa. Um de seus princípios é evitar impasses que coloquem em questão a estruturação do saber médico. Afinal, impasses remetem a questionamentos ou a disfuncionalidades e levam ao encontro do que foge à norma. Se, para o corpo médico, em momentos como esses as dificuldades se tornam extremas, é justamente aí que se tornam possíveis as contribuições psicanalíticas. Ao dizer que a psicanálise é o avesso da medicina, indicamos, antes de mais nada, que estamos diante de propostas de atuação que subvertem, continuamente, modelos pautados por ideais médicos, dentre eles o ideal de cura adequado à estruturação deste campo.

O ideal da cura é tomado pela medicina como um dever, um dever ser. Trata-se de uma visada a ser perseguida continuamente, a partir das regras do jogo estipuladas de início. Por isso, Clavreul (1983) lembra que o sistema médico se aproxima do ordenamento jurídico, tal como teorizado por Kelsen, no qual as normas do direito se estabelecem em torno de um dever ser, e não em função de um sistema de causalidade estabelecido. Não se trata de uma causa que conduz a um determinado efeito. Se algo acontece (o adoecimento, por exemplo), deve-se avaliar se o ocorrido irá se submeter ou não a um determinado ordenamento. Se sim, estabelece-se um sistema de articulações que determina como se darão os desdobramentos do que aconteceu. No momento em que um paciente, com sua doença, submete-se ao ordenamento médico, uma forma de articulação e de tratamento se impõem sobre o caso, determinando os destinos dos cuidados a serem oferecidos (Clavreul, 1983).

A entrada da psicanálise em um caso, muitas vezes, coloca em questão o arranjo esboçado acima. Sua proposta de atuação estrutura-se à margem de ideais estabelecidos e do que deve ser. Com o adoecimento, encontramo-nos com um fenômeno que se relaciona a um não funcionamento. Em vez de promover uma adequação por meio da imposição de um ordenamento a ser seguido, o analista volta-se ao trabalho de escuta, busca trazer à cena elementos relacionados ao adoecimento que possam ser vinculados ao sujeito que padece. Não se trata de uma forma de intervenção oposta ou hostil à atuação médica. Trata-se, ­efetivamente, de uma prática que reintroduz a maneira singular com que o sujeito experiencia seu próprio adoecimento. Para que isso ocorra, não há ideal a ser seguido.

Diante disso, surge a questão: haveria possibilidade para a ocorrência de intervenções analíticas em um contexto hospitalar? De que forma? O presente trabalho orienta-se a partir desses questionamentos. Procuraremos, com o auxílio de fragmentos clínicos de um caso, sustentar que, apesar das especificidades nas formas de atuação médica e psicanalítica (por vezes, permeadas por tensões), é possível um trabalho analítico com um sujeito em sofrimento no contexto hospitalar.

Desdobramentos e construções de um caso clínico no contexto hospitalar

O caso clínico em questão esteve internado para tratamento cardiológico, tendo sido acompanhado por uma psicanalista por dois meses e meio, aproximadamente. Túlio (nome fictício) tem 72 anos e reside em um município da região metropolitana de Belo Horizonte com sua esposa, Ângela (nome fictício). Ao apresentar dor torácica, foi levado à policlínica de sua cidade, diagnosticado com infarto agudo do miocárdio (IAM) e transferido para o hospital, onde ficou internado por mais de três meses.

De imediato, é possível destacar, nas evoluções de seu prontuário médico, significantes como paciente “tranquilo”, “sem queixas”, “cooperativo”, os quais ressoam como padrões dentro da linguagem protocolar do discurso médico, mas que evidenciam o caráter singular do caso. Será mesmo “tranquilo” um paciente que se apresenta “sem queixas”, como apontado pelo discurso médico? Como operar com a ética da psicanálise, isto é, com a ética do bem-dizer (Lacan, 1959-60/1985), dentro de uma instituição que trabalha em prol do bem-estar e de um ideal de cura? Como intervir quando não há solicitação de atendimento, uma vez que o paciente não apresenta queixas, nem mesmo em termos psíquicos?

Cabe aqui uma primeira observação, pois nos encontramos, a princípio, diante de um paciente subordinado ao ordenamento médico. O tratamento transcorre sem embaraços importantes que questionem este discurso. Túlio se apresenta de forma cooperativa e tranquila. A equação que evocamos anteriormente, com a ajuda de Clavreul (1983, p. 99-100), “Doente = Homem + Doença”, encontra, nesse momento, sua perfeita expressão. É possível o tratamento da doença sem incômodos ou ruídos que, eventualmente, o homem possa emitir. É como se, nesse momento, o doente tivesse alcançado o posicionamento ideal do ponto de vista médico, ao se igualar à doença (Doente = Doença), anulando-se, assim, o sujeito em sua singularidade.

O mesmo não ocorria com Ângela, esposa de Túlio, que mostrava, de acordo com a equipe médica, traços de ansiedade e fragilidade psíquica durante a internação. De forma diferente de Túlio, colocava a equipe médica em situação de impasse, o que determinou a solicitação de intervenção ao serviço de psicologia e psicanálise.

Durante as discussões sobre o caso de Ângela ocorridas em supervisão, surgiu uma nova questão: “E o Túlio, alguém vai atendê-lo?”. A analista que escutava Ângela observou que Túlio parecia ter algum tipo “deficiência”. Era difícil entender o que ele falava. Segundo a esposa, ele teve “a cabeça ruim desde sempre”. Todavia, em determinado dia, em que a psicanalista buscou Ângela para o atendimento e não a encontrou, Túlio pediu que ela ficasse um pouco mais para que pudessem conversar.

Seu pedido abriu a possibilidade para que uma demanda pudesse ser endereçada, e um espaço de fala pudesse ser construído, fazendo-o sair da posição objetalizada em que se encontrava. Neste espaço, o discurso da psicanálise se alojou e pôde operar no contexto hospitalar. Túlio, afinal, não era tão indiferente ao que acontecia ao seu redor e, à sua maneira, pediu a palavra.

Sem se ater a um saber prévio do caso por meio dos registros do prontuário, uma primeira abordagem foi realizada. Um espaço de fala foi demarcado, tendo em vista que, desde as “boas-vindas” dadas ao sujeito, entram em jogo o ato analítico e a ética da psicanálise (Miller, 1997, p. 224).

Evidencia-se, nessa passagem, a reintrodução do sujeito na cena sem nenhum tipo de mediação por parte do saber médico. São as próprias escuta e leitura clínicas que nos orientam na intervenção junto ao paciente. O tratamento da doença continua, mas as lacunas por meio das quais o sujeito se manifesta encontram, agora, um endereçamento possível. Com esse manejo, portanto, o tratamento da doença deixa de orientar-se de forma exclusiva pela identificação entre doença e doente. Uma falha nessa articulação tão solidamente estabelecida surge e encontra, na palavra, o meio de se presentificar.

Apesar da primeira abertura, o atendimento, no entanto, não acontece com facilidade. Quando a psicanalista lhe dirige uma pergunta, Túlio se mostra hesitante e pede que a questão seja endereçada à esposa, que “sabe das coisas”. Insiste em dizer que “sua cabeça é ruim” e que “é esquecido”. A esposa, Ângela, diz à analista que Túlio apresenta episódios de delirium3. Acorda de madrugada, procura seu fogão para fazer café, fica ansioso e quer deixar o hospital. Quando questionado, Túlio fala que não se lembra de nada. Por sua vez, Ângela demanda respostas e soluções por parte da equipe, exige explicações, ao mesmo tempo que se queixa da dependência e falta de autonomia de Túlio.

No período inicial do atendimento a Túlio, percebemos momentos em que algo de sua posição subjetiva se manifesta. São pequenas aberturas, com um rápido fechamento na sequência. Túlio se abre, por exemplo, e solicita que a analista que atende a esposa fique por mais tempo. Posteriormente, tem dificuldade de falar e sugere a sua analista que converse com sua esposa, fechando-se em seu silêncio. No que se refere aos episódios de delirium, nossa impressão é a de que eles também são pequenas aberturas, nas quais algo íntimo de Túlio surge no período noturno. Não suscitando, no entanto, nenhuma questão ou curiosidade, o paciente fecha-se novamente.

Concomitante a essa dificuldade inicial no atendimento, a presença da esposa de Túlio é marcante. Ângela procura manter o controle sobre os procedimentos realizados com ele. Túlio, quando questionado sobre o seu tratamento, continua a dizer: “Minha esposa é quem sabe” ou “Eu não sei de nada”. Diante daquela que “tudo sabe”, resta pouco espaço para o sujeito, e Túlio acomoda-se, então, na posição de objeto de um Outro totalitário, encarnado tanto na figura da esposa quanto no discurso médico vigente.

Se, por um lado, percebemos que Túlio encontra-se submetido ao ordenamento médico, sendo, em função disso, considerado um paciente pouco queixoso e tranquilo, por outro lado, Ângela assume o lugar de quem deve falar por seu marido, tomando-o como incapaz para isso. As ocorrências, os sintomas médicos, as alterações orgânicas e fisiológicas, o uso das medicações prescritas, os efeitos adversos surgidos em função da utilização dessas, tudo é comunicado por Ângela, a quem quiser ouvir. A incumbência de exigir o melhor tratamento e cuidado recai, também, sobre ela, que assume o papel de porta-voz do marido, anulando-se e anulando-o ao mesmo tempo.

Podemos observar, nesse contexto, uma parceria sintomática estabelecida entre o discurso médico e Ângela. Associado a isso, nas respostas dadas por cada um à situação, encontra-se em jogo o funcionamento do casal. A parceria estabelecida por eles ao longo de anos de casamento influi nos desdobramentos da situação e nos destinos possíveis para o tratamento em questão.

Levando-se em conta os objetivos do texto e a situação de internação hospitalar, destacamos a hipótese de que Túlio encontra-se alienado nos significantes que se referem ao seu tratamento e ao discurso médico, a ponto de se ausentar subjetivamente dos próprios cuidados a ele oferecidos. O consentimento do paciente com a normatização ocorrida é correlata de sua posição alienada. O sujeito se silencia, enquanto a força do discurso médico se manifesta. Qualquer tentativa de questionamento por parte do paciente é entendida como uma manifestação menor, podendo ser rechaçada. O discurso médico se impõe, e a forma como Túlio lida com as questões de sua vida é correlativa dessa imposição.

Túlio, no entanto, começa, com o avanço dos atendimentos, a revelar indícios que apontam para a tentativa de um trabalho de separação. Nesse sentido, torna-se importante evocarmos Lacan (1964/2008), a partir das considerações de Soler (1997), que, ao refletir sobre a operação de alienação do sujeito no Outro, menciona, em contrapartida, a operação de separação. A alienação ocorre como alienação a uma cadeia significante, enquanto a separação está relacionada ao distanciamento desta cadeia. A separação desvela a falta, tanto no campo do Outro quanto no campo do sujeito, e ocorre em função de uma ação, tal como elucidado no seguinte fragmento:

A alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a alienação. É um destino ligado à fala. Mas a separação não é destino. A separação é algo que pode ou não estar presente, e aqui Lacan evoca um velle, em francês vouloir, em inglês a want, um querer. Isso é muito semelhante a uma ação pelo sujeito (Soler, 1997, p. 62).

De acordo com Soler (1997), estruturalmente, enquanto sujeitos, estamos alienados. É o preço a ser pago por nos tornarmos falantes. O sujeito, ao engendrar-se, aliena-se na linguagem. A alienação é uma das operações constituintes do sujeito. No caso de Túlio, deparamo-nos, portanto, com um tipo de atualização da operação de alienação. Túlio aliena-se no discurso médico e estabelece um laço com a equipe por meio dessa alienação. Submete-se às exigências médicas ao se encontrar com a encarnação de um Outro consistente, que se esforça para se mostrar total e sem furos. Na mesma linha, observamos Ângela, aliada ao discurso médico, adotando um posicionamento consistente e totalizante diante de seu marido.

A separação introduz um elemento concernente à falta. Ao se afastar da cadeia que se refere diretamente ao Outro alienante, torna-se possível ao sujeito iniciar um trabalho que incida diretamente sobre si mesmo. De acordo com Lacan, por meio da separação, surge a possibilidade de o sujeito “engendrar-se” (Lacan, 1964/2008, p. 209). Ao buscar separar-se do Outro, entra em questão o sujeito em si, em sua singularidade. Em outras palavras, problematiza-se, por meio da operação de separação, de engendramento, o desejo do sujeito.

O caso de Túlio demonstra como marcas significantes advindas do campo do Outro têm como efeito torná-lo aquele “que não sabe”, o que contribuiu para que ele responda a partir de uma posição subjetiva débil diante do próprio desejo. Vale ressaltar que, no contexto de uma internação, isso pode se tornar ainda mais marcante.

O Manejo da Transferência

Podemos dizer que a investigação sobre a transferência toca o desejo do analista como aquele que vai na contramão da tomada do ser falante como objeto. Nesse sentido, o analista deve sustentar o discurso analítico, servindo-se como destinatário do sofrimento do sujeito, oferecendo-lhe o lugar da palavra e dando-lhe, portanto, a chance de sair da posição de objeto falado pelo Outro. Em nosso caso, de um objeto falado pelo discurso médico.

No início do tratamento, Túlio, nos momentos em que não convocava sua esposa para falar por ele, dizia que “estava tudo tranquilo” e que não tinha “nada de errado”. Aos poucos, no entanto, as queixas começaram a aparecer. Túlio fala que, no hospital, “se sente preso”. O significante “preso” é destacado pela analista. Ele começa então a dizer de suas limitações e da dependência que experimenta. Sustenta sua vontade de voltar para casa, ao mesmo tempo que demonstra estar preocupado com esse retorno. Seus dizeres se deslocam e Túlio fala sobre o que gosta de fazer em casa, como cuidar da horta, fazer comida e limpar. Conta sobre os empregos que já teve e diz que, atualmente, está aposentado. Percebemos, então, que os conteúdos domésticos surgidos em seus episódios de delirium não eram eventos desconexos.

Nesse momento do tratamento, Túlio pede à analista que não comente com ninguém sobre os conteúdos trazidos à sessão, demonstrando preocupação com a possibilidade de a família ter acesso a estes. Essa preocupação é relevante, já que sua esposa e filha costumavam invadir o seu espaço, entrando no quarto no momento do atendimento ou querendo saber o que foi dito. Túlio começa a tomar a palavra, e essa ação provoca incômodo. Ao buscar se separar, fala de sua vida e do que é seu.

Cabe observar que o próprio Túlio manifesta certos incômodos em relação ao trabalho que acontece. Afinal, há uma mudança, pois, nos momentos do atendimento, ele já não se encontra orientado por um discurso totalitário que exige que ele ocupe um determinado lugar. A regra fundamental da associação livre trazia a Túlio a possibilidade de falar o que lhe viesse à cabeça. Balizas que sinalizavam como ele deveria se colocar, portanto, não tinham mais a mesma eficácia. Em função disso, tornava-se necessário, com certa frequência, que se reafirmasse a existência de um sigilo a respeito de tudo o que ele expressava nas sessões. Demarcava-se, assim, sempre que necessário, seu espaço singular de fala. Falar de si e questionar os enunciados do Outro, para Túlio, não era tarefa fácil.

À medida que o tratamento caminha, Túlio começa a discorrer sobre memórias e eventos de sua história, esboçando questionamentos acerca dos dizeres que o fixavam na posição do que “não sabe” e do que “tem a cabeça ruim”. Significantes extraídos no campo do Outro eram, portanto, trabalhados, e, como consequência, a posição subjetiva de Túlio era ­problematizada nessa dinâmica. O que pode ser ilustrado com a passagem de Lacan:

O significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito (Lacan, 1964/2008, p. 203).

Se, por um lado, Túlio apresenta-se como o efeito dos significantes “cabeça ruim” e aquele que “não sabe”, por outro lado, adota-os para se expressar. As interrogações de Túlio sobre a posição na qual se alojava fazem com que, aos poucos, ele se depare com sua própria divisão subjetiva, com aquilo que falta. Trata-se, conforme Soler (1997) pontua, do destino das tentativas de separação, o que leva à certa desorganização por parte do sujeito. Com isso, Túlio começa a descolar-se também da posição do paciente “tranquilo” e “sem queixas” dos registros do prontuário. Começa a se angustiar: lágrimas caem em momentos em que palavras faltam e queixas se tornam mais claras e frequentes. O psiquiatra foi acionado por meio de uma interconsulta da equipe médica, e a avaliação foi realizada em conjunto com a sua esposa. Ainda assim, permaneciam, no prontuário, dizeres da esposa entre aspas, falando a respeito dele.

O Desejo como Tratamento para a Angústia

Com as tentativas de separação dos enunciados advindos do Outro, torna-se possível que sejam colocados em cena aspectos relativos ao desejo, sobretudo enquanto efeito da falta que se insinua na situação. Palavras faltam, ele chora e surpreende-se com o afeto que irrompe e ao qual ele não consegue dar lugar.

A irrupção da angústia, aqui, encontra-se intrinsecamente vinculada ao enigma do desejo do Outro. No momento em que Túlio começa a ensaiar, como possibilidade, o afastamento dos enunciados que tinham sobre ele grande pregnância, abre-se um espaço para a questão relativa ao lugar de objeto ocupado pelo sujeito diante do desejo do Outro, tal como elucidado por Lacan:

A angústia manifesta-se, sensivelmente, como relacionada de maneira complexa com o desejo do Outro. Desde essa primeira abordagem, indiquei que a função angustiante do desejo do Outro estava ligada a eu não saber que objeto a sou eu para esse desejo4 (Lacan, 1962-63/2005, p. 353).

Túlio, ao se questionar a respeito da posição na qual se encontrava petrificado, como aquele que “não sabe” e que “tem a cabeça ruim”, experimenta dificuldades para se localizar diante do desejo do Outro, como anteriormente. No momento em que se angustia, encontra-se diante do que Freud (1926/1996) entende como um sinal de perigo interno, que remete o sujeito à aproximação daquilo que resiste em se deixar significantizar.

Nesse sentido, a angústia entendida como sinal, de acordo com Lacan (1962-63/2005), possui intrínseca relação com o momento anterior à cessão do objeto. Trata-se, com efeito, de um momento em que há um excesso, que extrapola as possibilidades de significação e que desorganiza. Um sinal de perigo manifesta-se sob a forma de angústia, pois o Outro se apresenta sem falta. Não é possível, nesse momento, que o sujeito se configure como objeto (a) para o Outro, o que faz com que o Outro se torne um ponto opaco, presente e ao mesmo tempo excessivamente estranho e incômodo.

Diante de uma situação como essas, uma alternativa de solução se esboça por meio do desejo ancorado no ponto de falta no Outro, permitindo ao sujeito ultrapassar o que seriam as mensagens, os ditos e ditados do Outro (Elia, 1995). Trata-se, novamente, da colocação em cena de aspectos relacionados a um trabalho de separação. A tentativa por parte do sujeito é a de separar-se do Outro, sendo que essa separação se relaciona a um sujeito desejoso de falta e de distanciamento do Outro em seu excesso. De acordo com Lacan (1962-63/2005), com essa operação, busca-se tomar o objeto como um objeto cedível, que se configura como causa de desejo, consequentemente. Em suas palavras, trata-se de:

Um resto precário e submisso, sem dúvida, pois, como todos sabem hoje em dia, sou para sempre o objeto cedível, o objeto de troca, e esse objeto é o princípio que me faz desejar, que me torna desejoso de uma falta – falta que não é uma falta do sujeito, mas uma carência imposta ao gozo situado no nível do Outro. (Lacan, 1962-63/2005, p. 359).

Nesse período, Túlio chora durante os atendimentos e diz não entender o que acontece com ele, já que “nunca foi de chorar”. Ressalta não estar sentindo dor no corpo, na verdade, não sente “nada”. Mais uma vez, pede à psicanalista para conversar com a sua esposa, acrescentando que “ela sabe explicar melhor”. Prontamente, a analista ressalta que estava ali para escutá-lo. Nesse momento, ele coloca a mão no peito e diz: “por dentro eu estou sentindo”. O espaço de tratamento torna-se uma via para que, a partir desse nada, Túlio, enfim, fale de si e construa suas próprias respostas orientadas por seu desejo.

Túlio mantém-se angustiado e se questiona a respeito desse “não saber” em que se encontra aprisionado. Fala de forma exaltada que “não sabe o que está acontecendo com ele”. Diz se sentir “abafado” e, à medida que fala e nomeia o que sente, expressa alívio. Vieira (2002, p. 6) aponta que a especificidade da psicanálise talvez se localize no fazer dizer aquilo que insiste no campo do inominável. Diante da angústia de Túlio, palavras se fazem necessárias, para que seja possível um trabalho sobre aquilo que, paradoxalmente, foge à linguagem.

Elementos relacionados à falta surgem nesse momento. Túlio começa a falar sobre a falta que sente do cigarro, tendo em vista que ele fumava em torno de sete maços por dia, há mais de 50 anos, e interrompeu o uso durante a internação. Conta que dormia com um maço embaixo do travesseiro e, durante a madrugada, acordava e fumava quando perdia o sono. Ao ser questionado sobre o que o fazia perder o sono, Túlio diz que começou a ter o sono leve quando trabalhava como vigia noturno (há cerca de 20 anos). Nesse período, ele destaca, precisava se manter alerta, e o cigarro o tranquilizava. Ressalta que a ansiedade se manifestava à noite, e sua dificuldade de dormir talvez se relacione à falta que sente do cigarro. Uma falta se apresenta em uma passagem relacionada a sua vida laboral e o aproxima e o reinsere na via de seu desejo.

Nesse momento do tratamento, Túlio também fala sobre uma forte preocupação de entrarem em sua casa e roubarem seus objetos enquanto ele estava internado no hospital. Trata-se, a nosso ver, de mais um efeito do tratamento. Ele se engaja, cada vez mais, em reflexões sobre elementos de sua história, conquistas que podem faltar, e é necessário que Túlio crie algum tipo de resposta para essa possibilidade. Ao expressar-se sobre seu desejo, Túlio introduz a dimensão da falta, consente com ela e com a inexistência de garantias em nossas decisões e escolhas.

Menciona a possibilidade de se separar de sua esposa e expressa o medo de ficar em casa sozinho. Se, em determinados momentos, o sujeito se precipita em direção ao seu desejo, em outros recua, o que faz com que posicionamentos anteriormente adotados diante do Outro ressurjam. Nesse momento, a própria menção à esposa é significativa. Ao expressar o temor de ficar sozinho, reaparece a esposa como a figura capaz de lhe oferecer os cuidados adequados. Túlio hesita e parece demandar o restabelecimento da situação anterior, em que ele se coloca novamente em posição objetificada, petrificada em torno de certos significantes, retornando a um estado de alienação anterior.

No atendimento seguinte, nova alternância. Ele conta sobre um sonho que teve, onde estavam ele e o seu antigo patrão. No sonho, ambos haviam bebido demais e tinham “ultrapassado os limites”, a ponto de sofrerem um acidente de carro. Túlio conta que, no sonho, ele chamava o seu patrão, e ele não respondia nada; portanto, achava que ele havia morrido. Quando questionado sobre o que ele havia pensando a respeito desse sonho, Túlio diz que acha que “ficou com esse negócio de morte na cabeça”. Conta que o seu único irmão vivo fez uma visita para ele na semana passada e que ele chorou muito. Ressalta que já está ficando velho e não consegue fazer muita coisa, que está mais devagar e “limitado”. Aos poucos, Túlio foi conseguindo se apropriar mais das suas próprias limitações e foi elaborando algumas saídas e o que poderia ser feito apesar delas. Com isso, ele fez vacilar um pouco o campo de articulação que o circunscrevia em torno daquele que “tem a cabeça ruim desde sempre”. Túlio retoma o fio de seu trabalho por meio da palavra, mantendo-se, com isso, traços de um funcionamento desejante em atividade.

Nos últimos atendimentos, logo antes de sua liberação do hospital, Túlio foi se tornando cada vez mais investido e interessado nas questões relativas ao seu tratamento. Ao final, destaca que foi importante ter alguém para poder conversar nesse período e agradece pelo trabalho de escuta. Com um tom de humor, diz à analista que ela foi a culpada por ele estar falando mais. Com Túlio, fica a impressão de que um trabalho analítico foi iniciado, cabendo agora a ele a decisão sobre a continuidade ou não desse processo.

Considerações finais

Com o caso de Túlio, é possível observar um trabalho psíquico que se estrutura por meio de diferentes tempos. Em um primeiro tempo, encontramos um sujeito em uma posição de alienação a significantes que produzem um efeito de aprisionamento e dificultam sua capacidade de expressão. Ainda assim, com os recursos que dispõe no momento, ele consegue formalizar uma demanda de tratamento. Um segundo tempo se inaugura com isso, iniciando-se um período em que o paciente se organiza de forma a realizar um trabalho de separação, colocando em jogo seu desejo, não sem os momentos em que a angústia se faz presente.

Nesse sentido, um tratamento que a princípio limitava-se e estruturava-se em torno do ordenamento médico ganha novos contornos, abrindo-se a novas possibilidades de atuação. Ainda que de forma contingencial inicialmente, a demanda para um trabalho via palavra pôde ser acolhida, sendo justamente esse ato inaugural que permitiu alguns dos desdobramentos que pudemos testemunhar. Diante da pergunta “Para que serve um analista?”, Rodrigues (2013, p 126) ressalta que “ele serve para dar à morte seu estatuto de operador da vida”, isto é, a morte simbólica referente à castração, que dá ao ser falante recursos para lidar com o real. Nesse sentido, o espaço de atendimento constituiu um lugar onde Túlio pôde lidar, ainda que de forma inicial, com a experiência da castração, construindo e tecendo, por meio das palavras, uma via de abertura para enunciar algo relacionado ao seu desejo, a partir de um lugar de escuta que apostou no sujeito e no desabrochar de suas soluções singulares.

Para finalizar, cabe ainda dizermos que o trabalho desenvolvido não desconsiderou o contexto no qual se inseriu. Foi no contexto hospitalar que surgiram as questões que começaram a ser trabalhadas. Algumas dessas interrogações puderam, efetivamente, ser problematizadas. Outras, apesar de vislumbradas, não. Encontramo-nos diante de um contexto com especificidades, sendo que essas especificidades modulam e direcionam o que é possível no trabalho realizado. Dessa forma, concordamos com Moretto (2001), ao pontuar que, ainda que seja difícil, a psicanálise não deve recuar diante do hospital, sendo que devemos nos aventurar em uma situação como essa levando em conta, de forma primordial, a ética psicanalítica.

Referências

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Vieira, M. A. (2002). O lugar da psicanálise na medicina: Introdução a uma conferência de Jacques Lacan. Cadernos do IPUB, 8(21), 115–125.

Recebido em: 30/09/2022
Aceite final: 23/09/2023

Sobre os autores:

Diego Alonso Soares Dias: Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicanalista e psicólogo pela PUC-Minas. Atua no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Preceptor da Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital das Clínicas da UFMG. E-mail: dasdias@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5848-8526

Marina Mendonça Herzog: Especialista em Saúde, com ênfase em Saúde Cardiovascular, pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Psicanalista, psicóloga pelo Centro Psíquico da Adolescência e Infância da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CEPAI/FHEMIG). Referência técnica em saúde mental. E-mail: marinaherzog00@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7575-4489


1 Endereço de contato: Avenida Professor Alfredo Balena, 110, Santa Efigênia. CEP: 30130-100. Telefone: (31) 3307-9275

2 A medicina, tal como surge em nossa discussão, deve ser entendida como um discurso, isto é, um discurso que se organiza de determinada maneira e que gera efeitos, promovendo o estabelecimento de um certo tipo de laço. Com isso, deve-se dizer que não é nosso interesse fazermos uma crítica ou comentário a respeito de especialidades médicas individualmente, que organizam sua prática levando-se em conta suas especificidades. Interessa-nos, nesse texto, trabalharmos por meio da tentativa de entendimento do discurso médico, sua estrutura e os efeitos que dele advém.

3 Delirium é uma síndrome psicopatológica relacionada, principalmente, ao rebaixamento do nível de consciência. É, portanto, uma síndrome vinculada a aspectos quantitativos da consciência, apesar de eventualmente também surgirem elementos de cunho qualitativo, como a presença de alucinações. Os pacientes que apresentam delirium podem mostrar-se confusos, desorientados no tempo e no espaço, agitados ou lentificados em termos motores, além de ansiosos. Esse quadro pode se manifestar em função de uma determinada doença ou devido ao uso de alguma medicação (Dalgalarrondo, 2000).

4 Nesse momento de sua elaboração, Lacan enfatiza que sua reflexão sobre o objeto incide prioritariamente em um nível escópico, uma vez que é nesse nível que a estrutura do desejo se encontra mais alienada, ao mesmo tempo em que o objeto a se apresenta mais mascarado enquanto tal. Em função desse arranjo, o sujeito mostra-se mais garantido quanto à angústia (Lacan, 1962-63/2005, p. 353). Em Túlio, consideramos que é justamente esse arranjo estabelecido que começa a sofrer modificações. Por mais que tenhamos motivos para considerar que a reflexão a respeito do objeto escópico encontre sua plena expressão no caso que apresentamos, os limites do trabalho em questão não permite que façamos mais nenhum tipo de aprofundamento nessa temática, limitando-nos a essas observações.

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2405