Violência de Gênero: Feminilidade, Corpo e Masoquismo sob a Ótica da Psicanálise

Gender Violence: Femininity, Body and Masochism from a Psychoanalytic Perspective

Violencia de Género: Feminidad, Cuerpo y Masoquismo bajo la Óptica del Psicoanálisis

Mariana Rezende Alves de Oliveira

Universidade de São Paulo

Tiago Humberto Rodrigues Rocha1

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Resumo

A denúncia de violência doméstica e a busca por auxílio médico, frequentemente, geram medo e represália em mulheres, uma vez que não é incomum a imputação da culpa à própria vítima, tendo como efeito o processo de silenciamento subjetivo por parte de quem sofre. Este estudo buscou realizar uma análise do discurso dentro do conceito da feminilidade do início do século XX aos dias atuais e suas possíveis tensões com a violência de gênero, sob a ótica da psicanálise. Esta análise foi feita a partir dos relatos de três mulheres que, apesar de vítimas, viram-se responsabilizadas pela violência sofrida. A pesquisa foi realizada em um centro de atenção à saúde da mulher de uma cidade do interior de Minas Gerais, utilizando-se de uma entrevista semiestruturada. Como resultado, foram elencadas três categorias para nossa análise, as quais envolveram três questões principais: o lugar social do feminino, o corpo e o masoquismo em suas relações com o Outro/outro. Conclui-se que é intratável pensar uma prática de saúde com as vítimas sem que se considerem os aspectos da fantasia inconsciente envolvidos na trama da violência.

Palavras-chave: Violência de Gênero, Feminilidade, Corpo, Masoquismo Feminino, Psicanálise

Abstract

Reporting domestic violence and seeking medical help often generate fear and reprisals in women, since it is not uncommon for the victim to be blamed, with the effect of subjective silencing on the part of those who suffer. This study sought to carry out an analysis of the discourse within the concept of femininity from the beginning of the twentieth century to the present day and its possible tensions with gender violence, from the perspective of psychoanalysis. This analysis was based on the reports of three women who, despite being victims, found themselves responsible for the violence they suffered. The research was carried out in a women's health care center in a city in the interior of Minas Gerais, using a semi-structured interview. As a result, three categories were listed for our analysis that involved three main issues: the social place of the feminine, the body, and masochism in its relations with the Other/other. It is concluded that it is intractable to think about a health practice with the victims without considering the aspects of unconscious fantasy involved in the web of violence.

Keywords: Gender Violence, Femininity, Body, Female Masochism, Psychoanalysis

Resumen

La denuncia de la violencia doméstica y la búsqueda de ayuda médica suelen generar miedo y represalias en las mujeres, ya que no es raro que se culpe a la víctima, con el efecto de silenciamiento subjetivo por parte de quien la sufre. Este estudio buscó realizar un análisis del discurso dentro del concepto de feminidad desde principios del siglo XX hasta la actualidad y sus posibles tensiones con la violencia de género, desde la perspectiva del psicoanálisis. Este análisis se basó en los relatos de tres mujeres que, a pesar de ser víctimas, se encontraron responsables de la violencia que sufrieron. La investigación fue realizada en un centro de salud de la mujer de una ciudad del interior de Minas Gerais, por medio de una entrevista semiestructurada. Como resultado, se enumeraron tres categorías para nuestro análisis que involucraban tres temas principales: el lugar social de lo femenino, el cuerpo y el masoquismo en sus relaciones con el Otro/otro. Se concluye que es intratable pensar en una práctica de salud con las víctimas sin considerar los aspectos de fantasía inconsciente involucrados en la red de violencia.

Palabras clave: Violencia de Género, Feminidad, Cuerpo, Masoquismo Femenino, Psicoanálisis

Introdução

Para o Ministério da Saúde, a violência sexual contra a mulher é considerada como uma manifestação de violência de gênero, pois ela é perpetuada na história por uma cultura patriarcal e violenta, podendo também ser considerada na dimensão de uma pandemia em que o agressor é alguém próximo da vítima (Ministério da Saúde, 2012).

Estima-se que 35% das mulheres em todo o mundo já tenham sofrido qualquer violência física e/ou sexual praticada por parceiro íntimo ou violência sexual por um não parceiro em algum momento de suas vidas (World Health Organization [WHO], 2013). Atualmente, os crimes contra a liberdade sexual são: estupro (art. 213); violação sexual mediante fraude (art. 215); e assédio sexual (art. 216-A) (Ministério da Saúde, 2012).

Ao longo do ano de 2018, 16 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de violência, o que significa dizer que, em comparação à pesquisa feita em 2017, não houve redução (Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2019). Entre as entrevistadas pelo FBSP que reconheceram ter sofrido algum tipo de violência, 52% afirmam não ter feito nada após o episódio, 13% procuraram ajuda da família e 12% dos amigos e apenas 11% disseram ter procurado uma delegacia da mulher (FBSP, 2019).

Em 2020, a OMS declarou o início da pandemia do novo coronavírus e, mundialmente, medidas preventivas foram adotadas, incluindo o isolamento social (WHO, 2020). No Brasil, esta medida também foi adotada, fazendo com que mulheres ficassem presas em casa com seus agressores e longe das redes de apoio. Em um levantamento feito pelo FBSP em março de 2020, foram registradas quedas nos casos de violência sexual em comparação ao mesmo período em 2019 (FBSP, 2020). No entanto, essa queda se deve não a uma queda literal dos casos, mas de um aumento da dificuldade e de uma diminuição robusta das denúncias, devido ao isolamento social (FBSP, 2020).

O fenômeno da violência sexual – e todos os outros tipos de violência contra a mulher – pode ser caracterizado como opressão de gênero, definido por um conjunto de crenças culturais, políticas, psicológicas e econômicas. Para escapar deste ciclo de violência, a vítima deve reconhecer que está em um relacionamento abusivo, mas a conduta não punitiva e malconduzida após as queixas faz com que cada vez menos mulheres tenham receio em denunciar, até mesmo para a rede de apoio familiar (Sacco et al., 2020). Não causa surpresa que, no imaginário das mulheres, a violência sexual tenha repercussões na forma simbólica e moral, produzindo vulnerabilidades e promovendo sensação de constante insegurança, o que só ajuda a perpetuar uma cultura patriarcal.

Em uma sociedade em que a violência contra a mulher é uma questão de gênero, cria-se a ilusão que as atitudes e os comportamentos femininos necessitam ser preventivos. Isso só potencializará os sentimentos – marcados como insegurança, vergonha e, principalmente, medo – decorrentes do trauma recente. O efeito mais nefasto de tal retórica é tornar a mulher a própria responsável por eventuais episódios de agressão que possa vir a sofrer, promovendo a culpabilização da vítima.

Culpabilizar a vítima tornou-se algo comum, como mostrou o FBSP (2017), em que 27% dos homens entrevistados concordavam que, em alguns casos, a mulher também pode ter tido culpa de ter sido estuprada. Ou seja, quase um terço dos homens considera que a própria vítima é a culpada pelo ato de violência. Enquanto isso, a ação do agressor na violência é enxergada como comportamento consequente da atitude da mulher, sem que isso cause danos à saúde física, mental ou à vida profissional e pessoal do homem.

O estupro é a violência sexual que ocorre com maior frequência e que causa mais danos físicos e psicológicos à vítima. Dadas tais consequências, o Ministério da Saúde (2012) declara que a mulher violentada sexualmente necessita de assistência humanizada na interação com os profissionais nos serviços de saúde. No entanto, Vieira e Hasse (2017) apontam que os modelos de atendimento à violência – predominantemente paternalista e de revitimização da mulher – também são vistos como um problema por serem pouco emancipadores, não promoverem reflexão, possibilidades de escolha e independência da mulher.

Os autores Vieira e Hasse (2017) apontam que a invisibilidade da violência ainda é um desafio para profissionais da assistência social, segurança e saúde, pois estes não diferenciam dentre os determinantes sociais os diferentes tipos de violência. Desta forma, a violência de gênero representa uma violação aos direitos da mulher e limita suas possibilidades na vida em sociedade, além de depreciar sua dignidade e ter seus direitos de privacidade, intimidade, liberdade e autonomia violados. Até aqui apresentamos apenas os dados estatísticos a respeito da violência contra a mulher, deixando ainda em suspenso as possíveis considerações psicanalíticas a esse respeito, já que estas serão mais bem apresentadas no momento da discussão.

A psicanálise bem nos ensina que a formação do sintoma se relaciona diretamente à inadequação da simbolização da experiência traumática. Tal processo de elaboração da violência sofrida é o que possibilita a passagem do trauma à narrativa subjetivada, como destaca Dunker (2011). Para a construção desta pesquisa, interessa-nos pensar as relações entre as consequentes violências sofridas durante toda a experiência traumática, aí inclusa a culpabilização da vítima. Por vezes, esta sofre nova violência ao ser acusada por “estar vestindo as roupas erradas”, “no lugar errado e na hora errada”, “ter seduzido o agressor” etc.; ou seja, uma torção discursiva em que a mulher, de vítima, torna-se algoz de si mesma, criando-se uma retórica de culpabilização.

Método

Sobre as participantes

A princípio, esta pesquisa seria realizada com dez participantes. No entanto, após cinco meses buscando possíveis participantes, apenas três mulheres aceitaram participar. Cabe notar que, embora agendássemos o dia e o horário para a entrevista, elas acabavam por telefonar e desmarcar ou simplesmente não compareciam. Tal fato não deixa de ser tomado como significativo, uma vez que discutiremos a respeito do silenciamento das vítimas. Assim, chegou-se às participantes a partir de prontuários de mulheres cadastradas em um programa de auxílio psicológico e médico para vítimas de violência em uma instituição de atendimento à saúde integral da mulher, de uma cidade do interior de Minas Gerais. Como critério de inclusão, foi estabelecido apenas que as participantes deveriam ter mais de dezoito anos e ter passado por pelo menos uma experiência de violência.

Instrumentos

Foi utilizada uma entrevista semiestruturada com 33 questões relativas à percepção da violência sofrida, da busca (ou não) por atendimento médico e psicológico, mudanças (ou não) na vida pessoal e profissional após a violência e das relações da vítima com pessoas próximas, após a vivência da violência. Todos os instrumentos foram criados pelos pesquisadores, com base na literatura já existente.

Procedimentos

A coleta de dados ocorreu de junho a outubro de 2018. As participantes foram selecionadas de forma randômica, convidadas por meio de uma busca ativa e telefonemas realizados pelos pesquisadores. Os instrumentos foram aplicados pessoalmente em uma sala reservada da instituição em dia e horário acordado entre participante e pesquisadora. Antes da aplicação dos instrumentos, buscamos estabelecer certo vínculo a partir de uma conversa informal entre a entrevistadora e as participantes. Em seguida, os termos de consentimento para gravação e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foram assinados pelas participantes. Após a realização das entrevistas, foi feita a transcrição delas. Tanto o áudio quanto a transcrição ficaram restritos apenas à pesquisadora.

Análise de dados

Foi realizada uma análise qualitativa das entrevistas, por meio da análise de conteúdo, tal como nos apresenta Turato (2008). Segundo o autor, o estabelecimento dos eixos de discussão se dá a partir da leitura exaustiva do material de pesquisa, em que os conteúdos serão tomados em consideração a partir de duas vertentes: a repetição e a relevância. Assim, para discussão que aqui será apresentada, os eixos temáticos foram separados conforme seus conteúdos se repetiam nas diferentes entrevistas ou em diferentes momentos de uma mesma entrevista. Simultaneamente, os conteúdos que mostravam certa relevância, ou seja, aquilo que se destacou à escuta do pesquisador dado seu valor discursivo, também foi considerado para a montagem dos eixos de investigação e discussão. Toda a sustentação da discussão se deu a partir da psicanálise, debatida por autores contemporâneos de inspiração Freud-Lacaniana. Em seguida, as respostas foram relacionadas entre si para avaliar a ocorrência de determinados fatores e agrupadas em eixos de discussão.

Considerações éticas

O desenvolvimento deste projeto está amparado nas resoluções n. 196, de 10/10/1996, e n. 251, de 05/08/1997, do Conselho Nacional de Saúde. A participação neste projeto foi voluntária e, antes do início da coleta de dados, todas as participantes formalizaram sua anuência mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Toda a pesquisa foi conduzida após aprovação do CEP (CAAE: 81395917.0.0000.5154).

Resultados

Previamente ao início das entrevistas, foram separados 40 prontuários compatíveis com os critérios de inclusão. No entanto, foi possível entrar em contato com apenas 20 mulheres, entre as quais nove não aceitaram participar da pesquisa. Dentre as 11 mulheres que participariam da pesquisa, apenas três compareceram. As oito que faltaram optaram por recusar a manter a participação, o que não deixa de ser significativo. Dentre as justificativas para a recusa, temos as mais comuns: dificuldade em relembrar o ocorrido; frustração e raiva com os serviços especializados; medo de retaliação; ainda estar com o processo na Justiça; não acreditar que os serviços existentes funcionem; ou medo de terem suas informações pessoais divulgadas.

As três participantes tinham idades entre 40 e 60 anos. Todas possuíam filhos e estavam afastadas do trabalho no momento da pesquisa, por invalidez física ou em decorrência de problemas psicológicos. As violências relatadas pelas participantes foram sempre intrafamiliares. Elas apresentavam um forte discurso de apoio na religião, e duas relataram total suporte familiar. Em relação à verbalização da(s) violência(s), apenas uma das participantes nunca havia compartilhado com nenhum familiar ou profissional da área da saúde até o momento da participação nesta pesquisa. Todas as participantes relataram desconfiança e medo de retaliação por parte dos serviços especializados.

A partir das respostas obtidas pelas participantes e das evidentes consequências físicas, psicológicas e sociais das violências relatadas, os seguintes eixos de discussão foram delineados: 1. O lugar social do feminino e a feminilidade; 2. O corpo feminino e seus sintomas; e 3. Masoquismo feminino e seus impasses na relação com o Outro/outro. As falas das participantes estão identificadas com os nomes fictícios Geni, Helena e Amélia, de modo a proteger suas identidades.

Discussão

O Lugar Social do Feminino e a Feminilidade

Como eu vou fazer pra ser mulher? Mulher, como? Feminina. Mas feminina, como? Dócil. O tempo todo dócil, como minha avó, que ele adorava. Não agressiva como minha mãe, que meu pai abandonou. Você já deve ter percebido que eu não sou nada dócil. Mas eu me faço de dócil, se precisar; boazinha, bobinha. . . Eles adoram (Kehl, 2016, p. 154).

A construção social do feminino coloca a mulher como um ser que deve submeter-se ao homem. É como se houvesse sua institucionalização como um ser frágil e, portanto, um sujeito que devesse ser controlado (Scaffo & Farias, 2011). Segundo Kehl (2016), o conceito sobre “o que é uma mulher” foi forjado na vida privada, ou seja, no âmbito doméstico, há séculos. Neste locus, há a constituição de um padrão de feminilidade, cuja principal função é promover e institucionalizar o casamento entre a mulher e o lar, desde o século XIX até os dias atuais.

Narvaz (2010) traz em seu texto o conceito de feminilidade que diz que as mulheres se subjetivavam por meio de discursos os quais associavam o feminino à dor, à passividade e ao masoquismo. O que tornava a mulher objeto de desejo e de gozo masculino e inscrevendo aí o seu desejo. Desta maneira, a violência é geralmente considerada algo normal, permanecendo invisível e inquestionável, convergindo para subestimação do fenômeno e suas consequências na vítima (Leite et al., 2017).

Em A organização genital infantil, Freud (1923/1996c) nos diz sobre a ausência da representação psíquica da feminilidade no inconsciente. Em contrapartida ao masculino, que encontra no corpo a materialidade que possa sustentar o falo, do lado feminino a ausência de representação leva à assimilação da feminilidade à passividade e à equação entre ser mulher = ser castrado (Kaufmann, 1996).

Dada sua condição desprovida de uma amarração simbólica correspondente ao todo-fálico masculino, a construção da feminilidade foi a adequação entre a mulher e o homem a partir de uma posição feminina que pudesse sustentar a virilidade masculina (Kehl, 2016). Segundo a autora, seguindo a pena de Freud, a “natureza feminina” precisaria ser domada pela sociedade para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao qual estariam naturalmente designadas: a maternidade. A fim de melhor corresponder a este espaço, a feminilidade é instigada a possuir virtudes próprias: o recato, a docilidade, uma receptividade passiva em relação aos desejos e às necessidades dos homens e, a seguir, dos filhos (Kehl, 2016; Narvaz, 2010; DeSouza & Baldwin, 2000). Externa à casa, Freud considera que a mulher tem sua função social “vazia”, ou seja, possui um escasso interesse e uma passividade ensinada desde a infância – o que tornam essas características quase que inatas às mulheres (Kehl, 2016; Narvaz, 2010). Aqui, uma evidente percepção patriarcal da sociedade freudiana condizente ao nascimento da psicanálise. Postura esta que se faz extensamente atual, conforme será observado ao longo desta discussão.

A feminilidade pode ser denominada como uma construção discursiva produzida a partir da posição masculina, à qual se espera que as mulheres correspondam, na posição que a psicanálise lacaniana designa como sendo a do “Outro discurso” (Kehl, 2016). Assim, vivem formas de alienação, sendo uma delas a aceitação da posição de “Outro discurso”. Ao assumirem essa posição, aceita-se renunciar a falar por si – renunciar a se apropriar de uma das formas universais do falo, o falo da fala, permanecendo socialmente invisíveis.

E ele, no término do nosso namoro, ele me trancou seis dias na casa dele, fez pior que meu tio, com uma arma na minha cabeça. . . . ele [ex-namorado] abusou sexualmente de mim, tinha vezes que eu não queria fazer sexo e ele falava ‘Você não me ama?’. . . e nessa última vez fez igual meu tio, tampou minha boca e fez Ssshhh, você é minha’ (Geni).

Obrigar [a relação sexual] assim, não . . . Eu não conseguia nem tomar banho e ele se ofereceu para me ajudar. Aí começou a me fazer um carinho em outros lugares e eu não queria . . . Só que aí ele meio que forçou (Helena).

A posição de “Outro discurso” pela mulher assumida, tornando-a, aos olhos do parceiro – e da sociedade em geral –, um objeto que existe no discurso do sujeito para satisfazer seu desejo, sua posse, algo que deve servir ao tamponamento da castração no homem. Assim, não possui vontades nem desejos próprios, nem sequer existe em outros contextos, que não o da satisfação libidinal do homem. Seu próprio órgão sexual está lá para satisfazer o “falo”, satisfazendo sua frustração – gerada pela falta deste – da satisfação da fala, silenciada, à satisfação do falo, opressor. É como se, na busca por existir, mesmo que sem o falo, para tornarem-se mulheres e visíveis aos olhos do outro, elas precisassem compensar esta falta no falo do homem.

O fato de serem silenciadas durante a violência está inserido na ideia de que elas sejam invisíveis, espécie de amálgama ao aforisma lacaniano “a mulher não existe” (Lacan, 1971/2009, p. 69). Sua fala inexistente no inconsciente resta muda diante da violência perpetrada por aquele que, na categorial universal abstrata do falo, funda-se na ilusão compartilhada de que a posse do órgão sexual masculino garanta uma identidade, inequívoca e intocada, sintetizada pelo significante fálico.

De acordo com Kehl (2016), a importância do conceito de castração no Outro, na teoria lacaniana, é chamar atenção para o fato de que essa ordem simbólica é aberta e permeável às intervenções significantes do sujeito, pois o modo como os sujeitos se singularizam e se manifestam, enquanto efeitos da linguagem, gera narrativas próprias e modificações no campo simbólico.

Assim . . . obrigar, não. Não me agarrou nem machucou, então não guardo rancor . . . me senti usada . . . Não me estuprou, não (Helena).

Na frase de Helena, pode-se inferir que, ao contar sobre tais experiências, a mulher não consiga ainda se fazer existir como sujeito de desejo, ou seja, não identifique alguma intervenção do significante que possa singulariza-la, constituindo uma narrativa própria. Em outros termos, que se apresenta presa às amarras da linguagem que reserva ao feminino um lugar de impotência, de passividade, sem poder sulcar tal discurso com sua posição de desejo. Um enfraquecimento na apropriação de sua narrativa, diante do fato de que tal experiência pertence a ela unicamente, e não ao homem ou a qualquer outra instância; policial, de saúde ou publicitária.

Para DeSouza et al (2000), a opressão masculina se origina, no Brasil, desde sua colonização pelos portugueses, quando estes mantinham relações sexuais com mulheres indígenas e com escravas africanas (eram vistas como servas e objetos sexuais). A chegada das mulheres brancas durante a era Colonial fez com que surgisse no recém-Brasil um arquétipo do que os autores nomeiam por modelo Maria, ou seja, mulheres assexuadas, submissas e com a vida restrita aos limites da casa ou da Igreja – algo que aponta para a relevância de pensarmos a questão do feminino e seu desenvolvimento em terras tupiniquins.

Mas ele nunca deixou faltar nada dentro de casa, sempre deu tudo (Helena).

Sempre foi um homem bom, com os outros. Um pai muito presente, brincava . . ., mas o problema dele era comigo (Amélia).

Esse arquétipo de mulher baseado no modelo Maria indica também a vocação da mulher única e exclusiva para ser passiva, treinada para o casamento e devotando todo seu tempo e cuidado para amparar o marido, a casa e os filhos, uma vez que “as mulheres foram feitas para viver à sombra de seus maridos e para criar seus filhos” (Bertin, 1990, p. 14). Ainda de acordo com a mesma autora, as mulheres estavam submetidas a fazer consistir em um modo de subjetivação feminino que sustentasse os três k, do alemão, kinder, kirche, keüche (crianças, igreja, cozinha), típicos à mulher vienense dos tempos de Freud.

Se por um lado a maternidade deveria realizar a pretensão edípica de finalmente obter um falo, por outro, era ainda mais solicitado à mulher-mãe, além de cuidado ao marido, cuidado ao lar, dedicação aos filhos e devoção à igreja. É como se a feminilidade não possuísse outra função – tanto da mulher vienense quanto das participantes desta pesquisa – depois de ter cumprido seu único objetivo: a conquista de um homem que lhes dessem um filho (Kehl, 2016). As falas de Helena e Amélia apontam para a função social do homem sendo supervalorizada diante da violência, como se o absolvesse do papel de agressor e colocasse a mulher como culpada por ter desviado de sua função feminina – tendo sido, por isso, agredida.

Como uma espécie de corolário do que foi discutido até agora, encontramos na cultura popular brasileira um forte produtor discursivo de largo alcance: a música. “Ai, que saudades de Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, lançada em 1941, perpetuou na cultura brasileira a imagem de Amélia, mulher sem atributo algum, sem vaidade e que passava fome ao lado do homem que bancava, afinal, assim podia ser “mulher de verdade”. A partir de Amélia – que parece ter se tornado o principal referencial ao arquétipo do modelo de Maria na cultura popular brasileira –, percebe-se a clara distinção dos papéis sociais: homem provedor do dinheiro e dono da casa, e a mulher dona de casa.

O Corpo Feminino e Seus Sintomas

A feminilidade costuma organizar-se em torno do imaginário da falta; na feminilidade, a mulher não tem o falo; ela se oferece para ser tomada como falo a partir de um lugar de falta absoluta, do qual só o desejo de um homem pode resgatá-la (Kehl, 2016, p. 13).

O corpo da mulher é atualmente tratado como um objeto sob regência do capitalismo, na sociedade do consumo, do espetáculo e do narcisismo que, por meio da mídia, influencia os hábitos de consumo e também a subjetividade feminina (Silva & Tílio, 2014). Para os autores, o corpo também é aquilo que o Outro vê e remete de mais imediato. Na teoria freudiana, segundo Kehl (2016), o discurso sobre as características da mulher – narcisismo, predomínio da afetividade sobre o julgamento, infantilidade, baixos interesses culturais, incapacidade de simbolizar a Lei, dependência, erotização da maternidade etc. – se fundamenta na ideia de uma natureza feminina totalmente determinada pelo corpo, pelos órgãos genitais da mulher, supostamente impossíveis de simbolização.

Tem horas que saio com muita roupa e dentro de casa eu não consigo usar um shortinho ou camiseta. Eu evito expor meu corpo totalmente . . . Me falam que meu corpo é muito bonito, desde que eu “tava” crescendo (Geni).

Ele me punha tanto complexo, que eu era gorda, feia, tribufu, essa palavra não sai da minha cabeça . . . Aí eu não tinha coragem de me encarar. Tinha esse espelho de corpo inteiro. Eu passava rápido nesse espelho, às vezes eu virava o rosto pra não me ver. Então eu tinha a impressão de que tudo o que ele falava de mim, eu ia ver no espelho, um bicho (Amélia).

Tais relatos parecem reverberar naquilo que Freud (1933/1996e), em seu ensaio A feminilidade, escreve sobre a atividade das mulheres de tecerem panos como uma espécie de véu para a castração (Freud, 1933/1996e). Ao esconderem seu nada, o que as tornam vazias e passivas, as mulheres se recusariam a expor sua nudez, extraindo desta ação um ganho secundário, ao transformarem a falta ocultada em um tesouro de encantos, dissimulação mascarada (Narvaz, 2010). Para Freud, a inveja do pênis e a não aceitação de sua passividade e castração tornam as mulheres neuróticas histéricas ou perversas e que sua dissimulação busca esconder essa falta por meio da sedução e de encantos (Freud, 1933/1996e). Freud parece reificar um lugar para o feminino, tal como parece ter encontrado em torno do ­conceito de falo para o masculino. A busca de uma significação ao sexo feminino desloca o autor frequentemente para uma posição delicada de reafirmação de um locus de menor valor quando comparado à certeza fálica masculina.

Assim, a questão de a mulher esconder seu corpo como imposição discursiva que lhe garantiria proteção contra olhares maliciosos, assédios etc. – faz semblante à sua própria castração. Destarte, o corpo da mulher existe no imaginário como o Outro que satisfaz o homem e procria – representa a não aceitação da castração, como se tivessem de esconder suas vergonhas, ao mesmo tempo que geraria sedução e encanto, cuja conquista dá ao homem sua confirmação fálica.

Como o principal papel da mulher estaria intimamente relacionado à maternidade, seu corpo serviria exclusivamente para procriar. Após isso, o corpo não teria outra função – uma vez que não haveria uma dimensão discursiva que lhe permitisse um prazer próprio, de seu desejo, já que cumprira seus objetivos: satisfazer ao homem e gerar/cuidar de sua prole.

Igual esse noivado, eu não consigo levar adiante, tem horas que ele abusou sexualmente . . . ah, ‘Você não me ama?’ e vinha pra cima de mim (Geni).

Divorciamos, aí teve um dia que eu tava no barzinho com um cara e ele viu, depois foi até a minha casa, eu tava fazendo comida, pegou a panela quente e jogou na minha cara . . . ele me empurrou na parede, me bateu, me enforcou (Amélia).

O contrato protocolar do casamento ainda exige que a mulher se submeta e que o homem domine. A quebra desse contrato pode dar início a ações que culminem em violência (Scaffo & Farias, 2011; Kehl, 2016). Nas falas das participantes, é possível identificar a objetificação que ocorre com o corpo da mulher. O corpo socialmente visto como propriedade do marido, devendo satisfazê-lo, uma vez que, historicamente, a mulher se relaciona, casa-se e, desse casamento, deve-se gerar filhos, de modo a cumprir o “destino da mulher” (Kehl, 2016; Scaffo & Farias, 2011). Como alegoria, devemos lembrar que se reconhecer como mulher, na fé cristã, aparece na idade média a partir da transferência dos poderes do pai para o marido, sem intermédios, sentenciada: “Eu os declaro: marido e mulher!”.

A ideia de que a mulher é um ser que deva ser controlado produziu formas de violência ao igualar o discurso sobre a feminilidade, um discurso de docilidade, obediência e adequado ao “seu homem” (Scaffo & Farias, 2011). Narvaz (2010) relata que, para uma mulher, não existe horror maior do que ver e sentir o seu corpo, seu espaço psíquico e corporal ser penetrado e invadido por uma sexualidade estranha e estrangeira, sem que ela deseje essa invasão.

A permanência nas relações abusivas geralmente é justificada por fatores externos e de extrema relevância para a mulher, tais como os filhos e a opinião da família, bem como por fatores sociais, como a religião e a dependência financeira. Manter as agressões como segredo e a dificuldade de denunciar se deve por ameaças feitas pelo agressor e pelo medo da mulher em ser desacredita, tal como segue:

Aí a vovó ia dormir e ele tampava minha boca e me agarrava. Dizia que se eu contasse isso a alguém iria me matar . . . medo de perder minha família (Geni).

Eu não consigo guardar mágoa, sabe? . . . Aí se ele [marido] vem e pede desculpas
. . . Meu coração derrete todo, sabe? Acho que assim que tem que agir um cristão . . . Porque antes de ser esposa, eu sou cristã. . . . E Ele [Cristo] ensinou a perdoar
(Helena).

E aí quando eu queria pedir o divórcio, eu procurei meu advogado e meu marido falava que eu não tinha coragem de fazer isso. . . ., mas aí eu esperei meus filhos ficarem mais velhos, mais independentes para poder fazer isso por mim e separar dele. Conversei com meus filhos, eles me apoiaram (Amélia).

A mulher atribui sua permanência em relações conjugais violentas aos filhos, à dificuldade financeira, ao alcoolismo e à perda do emprego do cônjuge, para evitar o desapontamento familiar (Scaffo & Farias, 2011). O medo de represália, a vergonha e possíveis sentimentos de humilhação e culpa são apresentados em mulheres que sofreram violência, sendo que muitas destas veem a si mesmas como sujas, feias e nojentas (Souza et al., 2012; Barbosa et al., 2010). Quanto aos aspectos emocionais, são frequentes os sentimentos de medo da morte, sensação de solidão, vergonha e culpa (Labroncini et al., 2010), tal como apontado pelas entrevistadas.

O padrão das relações de gênero na sociedade tende a responsabilizar a mulher que sofre violência, em vista de algum comportamento considerado “impróprio”) (Machado et al., 2015). De acordo com Leite et al. (2017), tal padrão pode sintomatizar a repetição do trauma vivido encontrando apenas no corpo uma forma de expressão. Em tal universo de repetições, sempre cabe retomar o que Freud (1920/1996b) destaca em Para além do Princípio do Prazer, texto que consideramos da maior importância para pensarmos nossa pesquisa. A experiência traumática trava uma batalha contra a elaboração e inscrição psíquica. Tal marca de excesso, própria à vivência traumática não simbolizada, encontrará no ato sua via privilegiada de expressão. Assim, o excesso mantém uma permanente exigência ao aparelho psíquico que, por não encontrar qualquer recurso, estabelece seu funcionamento a partir da compulsão à repetição.

Neste ponto, é imperioso pensar que a ideia de o corpo feminino ser uma espécie de local preestabelecido de violência e submissão ao outro trata-se, também, de uma repetição de um padrão ainda mais amplo, um padrão que designa o destino feminino como sinônimo de possibilidade de sofrer violência. É inevitável a reflexão que Freud nos conduz a respeito do destino, quando ele destaca que “muitas pessoas nos passam a impressão de estarem sendo perseguidas por um destino maligno, isto é, de haver algo de demoníaco em suas vidas” (Freud, 1920/1996b, p. 147). Afinal, seria possível pensar haver algo não elaborado, próprio da relação do homem com o corpo feminino, que lança a mulher à tragédia do destino da violência?

Masoquismo Feminino e seus Impasses na Relação com o Outro/Outro

Passivas, castradas e naturalmente masoquistas, as mulheres são feitas para o amor e para a maternidade, não devendo ser encorajadas a exercer uma profissão, dado que são mais débeis e sua capacidade de sublimação é menor que a dos homens (Narvaz, 2010, p. 126).

Antes de continuar a discussão a partir deste conceito freudiano sobre o masoquismo feminino e com objetivo de elucidar um pouco melhor a discussão que seguirá, vale a pena tomarmos um texto anterior, que trata do lugar do masoquismo em algumas fantasias ­inconscientes infantis – Bate-se em numa criança (Freud, 1919/2016a). Freud, ao investigar algumas razões pelas quais alguns pacientes apresentavam uma fantasia comum, a saber, a de uma criança sendo espancada por um adulto, encontrará um componente autoerótico de caráter masturbatório no fundamento de tais fantasias, algo que toca tanto o limite do sexual quanto seu desejo por transgressão.

Progredindo com sua investigação, Freud encontra três tempos comuns a esta fantasia que se desdobram. É notório destacar que o autor dá a essas fantasias um lugar de especial destaque, uma vez que elas se dão no momento da travessia do complexo de Édipo, chegando a afirmar se tratar de uma cicatriz do Édipo. Silva e Santiago (2017) destacam que tal expressão parece denotar uma redução das fantasias infantis a uma única, determinante da posição inconsciente do sujeito na relação com outro. A problemática da posição será discutida mais adiante.

Retomando os três tempos da montagem da fantasia por Freud (1919/2016a), temos que, no primeiro tempo (1º), há uma montagem da fantasia em duas fases: “O pai bate em uma criança que eu odeio” seguida de “Portanto, o pai ama apenas a mim”. Assim, parece tratar-se de uma espécie de “triunfo histérico ligado ao amor incestuoso” (Jorge, 2010, p. 101). Aqui, o pai fica colocado no eixo central da fantasia e espanca uma criança qualquer, desconhecida e odiada por aquela que fantasia. Ainda para o autor, a fantasia não é nem sádica nem masoquista, dado que a criança que apanha não é a mesma que fantasia e tampouco é ela quem bate. Quanto ao segundo tempo (2º), há uma importante modificação das posições, já que o pai, em vez de bater em uma criança qualquer, desconhecida, espanca a própria criança que fantasia. Segundo Freud, este momento é uma construção em análise, mantendo-se como fantasia inconsciente e insondável e, em certo sentido, “jamais teve sua existência real” (Freud, 1919/2016a, p. 201). Esta passagem é a que mais interessa para nossa pesquisa, já que o masoquismo aqui aparece quando a criança experimenta a fustigação da culpa pela demanda de amor incestuoso. Assim, a segunda parte da frase do primeiro tempo “Portanto, o pai ama apenas a mim” fica subsumida sob a barra do recalque, ocasionando uma inversão em que a criança se vê não mais sendo amada, uma vez que passou a ser “batida” pelo pai castrador. Enfim, na terceira fase (3º) da articulação da fantasia, tanto o pai quanto a criança saem de cena, e o pai dá lugar a um adulto qualquer que bate não apenas em uma criança, mas em várias, restando a fantasia ligada a uma forte e inequívoca satisfação masturbatória de caráter sádico.

Aqui, interessa-nos pensar que tal universo de fantasias, agora reunidas nesta “cicatriz do Édipo”, determinará a posição do sujeito do inconsciente em sua relação com o Outro, o que implicará nos modos de enlaçamento ao outro. Freud, ainda no mesmo tempo, destaca que, no inconsciente, o sujeito não resta em uma posição passiva quanto a suas próprias fantasias, pelo contrário, ele é ativo, porém sem sabê-lo. A situação em que o sujeito constrói a fantasia é aquela cujo desejo pretende alcançar. Assim, para avançarmos um pouco mais em nossa discussão, lançamos mão de uma preciosa diferenciação entre posição, em sua inserção na linguagem, e lugar, na relação com o outro.

Para nossa pesquisa, conjecturamos que a posição masoquista em que a mulher pode encontrar-se na fantasia inconsciente não deve ser colocada no mesmo nível do lugar de infortúnio e sofrimento que a mulher vítima de violência se encontra na relação com seu parceiro. Podemos conjecturar que tais situações de violência a que a mulher se encontra submetida tem a ver com a posição masoquista de culpa infantil – advinda do 2º tempo da montagem da fantasia na teoria freudiana – à qual ela possa encontrar algum grau de satisfação inconsciente por meio do flagelo da violência, agora na vida adulta. Há uma dimensão sempre ativa na fantasia que podemos supor encontrar satisfação, especialmente ao destacarmos certos significantes ligados à reafirmação da relação de submissão, tais como culpa, religião e família, que aparecem nos relatos das vítimas, quase que como modos de justificar a paralisia em que se encontram, mantendo seu lugar de vítima na relação com outro agressor.

Assim, sentir-se culpada pode levar a mulher a buscar expiar sua culpa, permanecendo vinculada ao ato recorrente de violência. Ao tensionarmos o que a teoria freudiana pode extrair de Bate-se em uma criança (1919/2016a) com O problema econômico do masoquismo (1924/1996d), para nosso trabalho, interessa pensar que a vida adulta revisita a infância justamente no terreno da culpa-punição.

No texto de 1924, Freud problematiza uma nova questão em torno do masoquismo. Cabe destacar que tal trabalho é posterior à virada da teoria psicanalítica promovida durante os anos 1920, com o Para-além do Princípio do Prazer, em que o autor lança uma nova possibilidade de compreensão sobre a ideia do masoquismo. Assim, Freud (1924/1996d) pensará em três possíveis formas de masoquismo: erógeno, mais propriamente ligado à atividade sexual e ao jogo erótico possível daí extrair; o masoquismo feminino, que tem a ver com a posição castrada, submissa e humilhada, tal como uma criança má, que se deixa punir e ser maltratada, desvelando sua relação de desamparo e dependência ao outro.

É de crucial importância destacar que Freud extraiu essas fantasias a partir da análise de fantasias presentes em homens, e tais fantasias somente são compreensíveis se pensadas que têm a ver com o lugar da mulher vitoriana, submetida ao patriarcado dos tempos de Freud. Aos moldes da criança pequena, propriedade do destino dado pelo outro – o pai para a criança, o marido para a mulher –, esta assumiria tal posição, passiva, humilhada e à mercê dos desmandos de seu “proprietário”. Por fim, a terceira forma de submissão masoquista Freud designa como “masoquismo moral”, que tem a ver menos com o lugar ocupado em relação ao outro do que com o próprio jugo do supereu, sendo esta forma de masoquismo uma derivação do segundo.

Para as mulheres desta pesquisa, entre a culpabilização socialmente sofrida e o sentimento de culpa vivido na fantasia inconsciente, parece apenas restar o flagelo não simbolizável do açoite, encontrado no julgamento do outro, na agressão sofrida e como possível forma de expiar a culpa. Por se tratar de uma construção que somente a análise pode alcançar, o masoquismo presente na segunda fase, apresentado em Bate-se em numa criança (1919/2016a), somente pode ser suposto como um profícuo solo sobre o qual outras formas de satisfação masoquista poderiam reverberar. Assim, o masoquismo feminino pode ser pensado agindo tanto na fantasia inconsciente das mulheres entrevistadas quanto na representação que os agressores parecem manifestar sobre qual a posição feminina em relação ao outro. Embora não tenhamos qualquer acesso aos agressores, as entrevistadas revelam que eles parecem colocá-las na mesma posição da criança humilhada do texto freudiano.

Assim, a culpa é um importante agente psíquico que encontra reverberações nos discursos socialmente explicativos a respeito da mulher e do feminino. As mulheres, ao encontrarem dificuldades no processo da denúncia e escuta qualificada da violência, parecem encontrar discursos que naturalizam as agressões, tais como “Mulher gosta de apanhar” e “As filhas seduziram o pai abusivo”. Nesses discursos, as mulheres são tidas como coniventes com seus agressores, são intencionalmente sedutoras e provocam as violências que sofrem (Narvaz, 2010).

Olhavam pra mim com reprovação . . . chegaram a me culpar pelo ocorrido na delegacia . . . Tipo “Você é culpada de isso ter acontecido, se você fosse uma boa pessoa isso não teria acontecido”. Aí o policial fala “O cara gostou tanto que você deve ter causado isso, né? Você que deve ter levado o cara a fazer isso” (Geni).

Eu conto mil verdades, mas as pessoas acreditam na mentira dele . . . Como eu disse, eu tento não provocar ele, sabe? . . . E no fundo a mulher que é espancada é sempre olhada assim . . . Com olhares te julgando . . . no fundo, a delegacia da mulher não é tanto a favor da mulher. Porque aí não é mais delegacia da mulher, é da família . . . na instituição eu fui bem atendida, mas é tudo tão demorado que quando você é atendida você já conseguiu resolver o problema (Helena).

. . . muita gente não acreditava, mas me apoiavam (Amélia).

Cabe destacar que não pretendemos nos valer de certos determinantes sociais, que coadunam para que a mulher se mantenha subjugada por meio de discursos que promovam sua submissa passividade. Tal processo apenas resultaria numa espécie de leitura psicologizante dos processos sócio-históricos de formação da realidade. Para além disto, ao nos valermos da noção de masoquismo, pretendemos articular possíveis fatores estruturais da posição feminina que acabam encontrando certas reverberações na realidade a que tais mulheres se encontram submetidas. Não nos resta dúvidas de que a ideia de submissão feminina encontra-se enraizada na cultura, tendo seu reflexo no fato de que todas as entrevistadas sofreram culpabilização do ato (pela própria violência sofrida) nas instituições que deveriam acolher tal demanda.

Eu me senti envergonhada das pessoas. Que nem um policial quando eu falei que era a segunda agressão. Ele disse “Ah, então você gosta de apanhar! Por que não largou dele?” . . . Mas ele nunca deixou faltar nada dentro de casa, sempre deu tudo. Então ele não é má pessoa, mas com o efeito do álcool vira um monstro . . . Agora ele tá preocupado com a minha pressão, que tá subindo muito . . . E eu tenho que tá até as 15h na casa dessa amiga, ele vai ligar pra saber se eu cheguei (Helena).

Nesta passagem, parece haver certa atualização de um modelo infantil de relação ao outro. Se a criança abre mão de sua satisfação pulsional, é porque a um só tempo ela não quer perder o amor do objeto e admite a dependência vital com ele: “Você faz isso para o meu bem” (Molinie et al., 2005). Este protótipo de modo de se relacionar nos parece reunir e sintetizar, grosso modo, o que o masoquismo feminino parece ressoar em seu protótipo infantil, proposto por Freud no texto de 1919.

Pretendendo articular o que vimos até aqui com a prática do profissional de saúde, compreendemos como fundamental que ele tenha em seu horizonte as várias possibilidades de compreensão a respeito do fenômeno da violência de gênero. Longe da pretensão de pensarmos que o alcance de nosso texto possa servir com uma forma de compreensão universal sobre a violência de gênero, pretendemos aqui muito mais levantar questionamentos e sustentar o mal-estar que sempre se faz presente nos casos em que o sexo feminino pode, por vezes, ter seu desejo silenciado ou, no mais funesto dos casos, realmente extintos.

Considerações Finais

O presente estudo visou realizar breve análise do lugar sócio-histórico da feminilidade, do corpo, do desejo feminino e dos desdobramentos da violência de gênero estrutural inseridas no discurso, a partir dos relatos de três mulheres vitimadas e culpabilizadas pelos abusos sofridos. A pesquisa demonstrou que os sintomas gerados pela violência são potencializados pelos conceitos culturais e sociais do que é ser mulher. A literatura psicanalítica, a partir dos textos de Freud, reforça a ideia de que, historicamente, o conceito sobre o lugar da mulher foi constituído de maneira subjugada, digna de desprezo e inexiste caso não esteja referenciado a um homem (DeSouza et al., 2000).

Tal processo histórico ficou claro ao logo da discussão em torno do primeiro eixo abordado, intitulado O lugar social do feminino e a feminilidade. A pesquisa demonstrou como há processos históricos que ligam a figura feminina a um lugar de menor valor, de desprezo social e que parece ser indissociável aos discursos sobre o feminino na cultura brasileira. Tal lugar histórico trouxe como desdobramento uma reflexão para o segundo eixo de pesquisa O corpo feminino e seus sintomas. Como uma espécie de efeito dos processos históricos abordados no eixo anterior, o corpo feminino foi debatido como um local de posse e desprezo, cuja consentimento parece ser historicamente validado pelo contrato do casamento. As relações abusivas respeitam uma espécie de repetição de um padrão, uma espécie de protocolo prévio que se torna apenas desvelado quando a violência eclode. Por fim, no último eixo de discussão, Masoquismo feminino e seus impasses na relação com o Outro/outro, houve uma reflexão em torno de conceitos estabelecidos pela psicanálise e suas relações e feitos sobre a subjetividade da mulher, com especial destaque à culpa. O processo de revitimização daquela que sofreu violência mostrou-se como uma prática comum nos serviços de saúde, mesmo naqueles dedicados ao cuidado da mulher.

Dado o exposto, o estudo demonstrou diversas limitações devido à dificuldade da abordagem do tema e da precariedade que as instituições públicas especializadas ainda apresentam. O julgamento social e institucional à vítima de violência enfraquece e invalida a denúncia da violência sofrida, que não deixa de encontrar eco na própria condição de entrada da mulher na linguagem. A violência do trauma sofrido, como mostrou a pesquisa, encontra diversas reverberações em aspectos que tocam uma posição infantil frequentemente expressa em fantasias masoquistas, o que fica ainda em maior evidência nas frustrantes buscas por auxílio.

Por causa do “bem” que, por vezes, pretende-se ofertar à mulher vítima de violência, a via do pior é tomada, tendo como consequência discursos que em nada contribuem para a mudança da posição inconsciente na qual estas mulheres se encontram.

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Recebido em: 30/09/2022

Última revisão: 19/09/2023

Aceite final: 17/12/2023

Sobre os autores:

Mariana Rezende Alves de Oliveira: Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (USP/RP), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: mari-rao@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9434-6234

Tiago Humberto Rodrigues Rocha: Doutor em Psicologia com dupla titulação pela Universidade de São Paulo (USP/SP) e pela Université de Rennes 2 (França). Psicólogo e psicanalista pela USP. Professor Adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: tiago.rocha@uftm.edu.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4178-0616


1 Endereço de contato: Universidade Federal do Triângulo Mineiro – Av. Frei Paulino, 30. Bairro Abadia. CEP 38025-180. Tel (34)98418-5556.

doi: http://dx.doi.org/10.20435/ pssa.v15i1.2183