O que Pode um Psicanalista na Pediatria Oncológica: Do Luto ao Desejo do Analista

What Can a Psychoanalyst do in Pediatric Onqcology: From Mourning to the Analyst’s Desire

Qué Puede Hacer un Psicoanalista en la Oncología Pediátrica: Desde el Duelo hasta el Deseo del Analista

Marina Leorne Cruz Mesquita1

Vinicius Anciães Darriba

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Resumo

Este artigo parte das reflexões e dos questionamentos advindos da prática como psicóloga residente no setor pediátrico de um hospital oncológico. Local onde entramos em contato com crianças e adolescentes atravessados pelos efeitos físicos e psíquicos do tratamento do câncer. A partir da orientação ética e teórica psicanalítica, oferecemos um lugar de fala a esses seres, muitas vezes silenciados pela lógica médica. Diante disso, surgem os questionamentos: o que podemos oferecer a essas crianças e esses adolescentes? Como fazer valer a orientação psicanalítica diante da dureza do adoecimento e tratamento oncológico? E, então, o que pode um analista no acompanhamento de crianças e adolescentes com câncer? Com o objetivo de nortear nossas respostas, apresentamos um caso clínico como instrumento para a realização de um estudo teórico-clínico, guiado pelos ensinamentos de Freud e Lacan. O trabalho de luto e o real da clínica guiam a discussão a partir da análise da prática clínica. No retorno à teoria, chegamos ao desejo do analista como função que possibilita a sustentação do nosso trabalho diante do real da clínica oncológica com crianças e adolescentes.

Palavras-chave: Psicanálise, Câncer, Pediatria, Ética Clínica, Luto

Abstract

This article is based on reflections and questions arising from the practice as resident psychologist in the pediatric department of an oncologic hospital. There, we encountered children and adolescents impacted by the physical and psychic effects of cancer treatment. Grounded in ethical and psychoanalytical theory, we provide a platform for these beings to voice their experiences, often silenced by medical logic. This prompts questions: what can we offer to these children and adolescents? How can psychoanalytic orientation be validated in the face of the harshness of illness and cancer treatment? So, what can an analyst do when treating children and adolescents with cancer? With the aim of guiding our responses, we present a clinical case as a tool for conducting a theoretical-clinical study, guided by the teachings of Freud and Lacan. The work of mourning and the real of the clinic guide the discussion through an analysis of clinical practice. Returning to theory, we arrive at the desire of the analyst as a function that enables the sustenance of our work in the face of the real of oncology with children and adolescents.

Keywords: Psychoanalysis, Cancer, Pediatrics, Clinical Ethic, Mourning

Resumen

Este artículo se despliega a partir de las reflexiones y cuestionamientos provenientes de la práctica como psicóloga residente en el sector de pediatría de un hospital oncológico. Es un lugar donde entramos en contacto con niños y adolescentes traspasados por los efectos físicos y psíquicos del tratamiento del cáncer. Fundamentados en la ética y la teoría psicoanalítica, proporcionamos un espacio para que estos individuos expresen sus vivencias, a menudos silenciadas por la lógica médica. Esto genera preguntas: ¿qué podemos ofrecer a estos niños y adolescentes? ¿Cómo hacer valer la orientación psicoanalítica delante la dureza de la enfermedad y el tratamiento del cáncer? Y, entonces, ¿qué puede hacer un analista en la atención de niños y adolescentes con cáncer? Con el objetivo de orientar nuestras respuestas, presentamos un caso clínico como herramienta para llevar a cabo un estudio teórico-clínico, guiado por las enseñanzas de Freud y Lacan. El trabajo de duelo y el real de la clínica guían la discusión a través de un análisis de la práctica clínica. Al regresar a la teoría, llegamos al deseo del analista como una función que permite el sostenimiento de nuestro trabajo frente al real de la oncología con niños y adolescentes.

Palabras clave: Psicoanálisis, Cáncer, Pediatría, Ética Clínica, Duelo

Introdução

O presente trabalho é fruto das reflexões e dos questionamentos advindos da atuação como psicóloga residente na clínica pediátrica de um hospital de referência no tratamento oncológico. Importante ressaltar que, enquanto a entrada no Programa de Residência se deu a partir do cargo de psicóloga, a escuta que possibilitou o trabalho desenvolvido com as crianças, os adolescentes e suas famílias foi a de analista. Sendo assim, as discussões suscitadas a seguir serão guiadas pelo viés psicanalítico.

Neste hospital, o setor pediátrico é voltado para o atendimento de crianças e adolescentes de zero a dezoito anos com câncer, tendo como principais tratamentos a quimioterapia, a radioterapia e as cirurgias de ressecção tumoral. A partir da confirmação diagnóstica, inicia-se o percurso em que o corpo das crianças e dos adolescentes é submetido a diversas intervenções que podem deixar marcas físicas e psíquicas indeléveis.

Para além da dor, o tratamento oncológico gera uma importante ruptura na vida, nos laços sociais e no processo de constituição desses sujeitos que, de um dia para o outro, são afastados da escola, das suas atividades, do convívio social e familiar, para adentrar no universo hospitalar. Esse é constituído por consultas ambulatoriais, internações nas enfermarias ou unidades intensivas, abordagens por diferentes profissionais, diversos exames e procedimentos em que o foco passa a ser a doença, o tumor e a busca por sua cura.

É diante desse contexto que entramos em contato com as crianças e os adolescentes e que nos deparamos com uma realidade que é difícil de descrever, de colocar em palavras: a doença, a invasão, as mudanças, intervenções, o sofrimento, a dor; mas também as conquistas, os avanços, a recuperação, as invenções, superações. Acompanhar todo esse processo em crianças e adolescentes, pessoas ainda no início da vida, constituindo-se, começando a investir em si e em seus desejos, é ainda mais difícil; porém, de certa forma, mais leve. Leve porque é um outro tipo de lida, leve porque há brincadeiras, histórias, desenhos e pinturas, leve porque, muitas vezes, não há o peso trazido pelo significante “câncer”.

Entretanto, apesar disso que nomeamos leveza, a clínica por si só é dura. O tratamento é duro. Acompanhar seus efeitos nas crianças e nos adolescentes é duro. Acompanhar suas famílias, atravessadas pelo medo de perdê-los, é duro. Acompanhar, eventualmente, a morte deles é duro. Diante disso, nós nos perguntamos: o que podemos oferecer a essas crianças e esses adolescentes? Como fazer valer a orientação psicanalítica diante da dureza do adoecimento e tratamento oncológico? E, então, o que pode um analista no acompanhamento de crianças e adolescentes com câncer?

Nenhuma resposta a essas perguntas foi instantânea ou se apresentou com certa obviedade. Pelo contrário, foi necessário tempo, elaboração, além dos aprendizados diários com o acompanhamento de cada sujeito em tratamento para compreender o que entra em jogo na clínica oncológica. Com o objetivo de elucidar tais questões, faremos uma imersão no universo da oncologia, destacando suas singularidades no que diz respeito ao atendimento de crianças e adolescentes. Conforme afirma Freud (1912/2012), na psicanálise, tratamento e pesquisa coincidem. Sendo assim, será apresentado um caso clínico com o objetivo de rea­lizar uma articulação teórico-clínica que guiará a discussão proposta.

O Universo da Oncoloagia

A rotina em uma enfermaria pediátrica tende a escancarar o que há de mais devastador no tratamento oncológico. Muitas crianças e adolescentes respondem bem ao tratamento sem passar por maiores intercorrências; geralmente são aquelas acompanhadas, na maior parte do tempo, no ambulatório, precisando ser internadas em momentos pontuais para alguns procedimentos. Porém, há outra parte (bem menor estatisticamente, mas gigantesca para todos que estão envolvidos na rotina das enfermarias) que não reage bem ao tratamento, apresentando diversas intercorrências, desenvolvendo metástases e necessitando de intervenções constantes. São essas as crianças e esses adolescentes que tendem a passar a maior parte do tempo internadas. São essas que têm seus corpos mais invadidos, mais remexidos, são essas que vivenciam diariamente aquilo que, muitas vezes, não consegue ser traduzido em palavras.

Como abordá-las? Como criar um espaço em que se sintam seguras para se expressar? Como permitir que se expressem em um ambiente que tende a calá-las, desconsiderá-las? A equipe hospitalar é composta por diversos profissionais: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, entre outros. Todos entram em contato e acompanham as crianças e os adolescentes internados, que, muitas vezes, ficam receosos com as intervenções, temerosos pelos procedimentos ou até cansados de todas as diferentes abordagens. Por isso, frequentemente, é por meio de uma aproximação cautelosa, já com algum brinquedo ou jogo em mãos, que entramos em contato pela primeira vez com os pacientes. Nosso intuito é demarcar um lugar que não é o de mexer no corpo, examinar ou furar, mas um lugar de escuta, de brincadeiras, um lugar sem protocolos, em que o objetivo é dar voz a esses sujeitos.

No acompanhamento clínico hospitalar de crianças e adolescentes, há algo muito específico no que diz respeito ao modo como os atendimentos são realizados. As crianças (e os adolescentes) não se expressam necessariamente e apenas pela palavra – seja por conta da pouca idade ou da dificuldade, e até mesmo impossibilidade, de falar sobre a experiência do adoecimento e seu tratamento. Isso exige de nós, psicólogos e psicanalistas, uma outra presença, na qual atividades lúdicas como brincadeiras, jogos e desenhos se tornam instrumentos fundamentais para que eles consigam se expressar, começando a colocar suas questões em trabalho.

Não é raro observar alguns profissionais que focam apenas nos protocolos e nas burocracias, agindo com dureza diante dos procedimentos e das intervenções, buscando, dessa forma, protegerem-se, e evitando ter contato com as crianças e os adolescentes em tratamento. Por que essa atitude? Porque não é simples lidar com o sofrimento deles e de suas famílias. Não é fácil testemunhar pessoas tão jovens, que ainda têm – ou teriam – tanto pela frente, enfrentando doenças, submetendo-se a cirurgias invasivas, perdendo parte de seus corpos e, em alguns casos, morrendo. Muitos profissionais se protegem porque sofrem também (Molina et al., 2007; Monteiro et al., 2015). É uma dura realidade. No entanto, apesar de tudo isso, a aposta em dar voz a esses sujeitos prevalece, e o que surge a seguir fornece forças para continuar apostando.

A partir da psicanálise, entramos em contato com essas crianças e esses adolescentes, buscando acessar, para além do Eu imaginário e consciente, o lugar outro de sujeito que se depreende da formulação do inconsciente por Freud, atravessado por fantasias e desejos. Conforme destaca Alberti (2008, p. 153), o psicanalista que “representa” a psicanálise no hospital deve “fazer valer o que há de mais genuíno no cidadão: sua própria subjetividade, determinada como é pelas leis da linguagem, pelo inconsciente, pela divisão subjetiva”. Sendo assim, a psicanálise contribui ética e epistemicamente para o trabalho no hospital, ao “lembrar à medicina que os pacientes ali não são objeto de intervenção clínica, mas sujeitos” (Alberti, 2008, p. 158) que possuem algo a dizer de si e do adoecimento. É a partir dessa escuta que convidamos as crianças e os adolescentes, muitas vezes silenciados e objetalizados pela rotina médica, a falarem, por meio do modo e dos recursos disponíveis, sobre o momento vivido.

Nas palavras de Lacan (1955/1998, p. 360): “a psicanálise é uma prática subordinada em sua destinação ao que há de mais particular no sujeito . . . [e, como enfatizado por Freud], a ciência analítica deve ser recolocada em questão na análise de cada caso”. Desse modo, a partir do acompanhamento de cada criança e cada adolescente, considerando-os como sujeitos diante do adoecimento, o analista pode contribuir para a elaboração das rupturas e do excesso traumático que o câncer e seu tratamento podem atualizar. Assim, por meio da oferta de escuta, de um espaço livre de demandas ou intervenções, iniciamos a costura de um laço transferencial com cada criança, cada adolescente e suas famílias. Construímos, no meio do turbilhão do adoecimento e seu tratamento, um espaço para a fala do sujeito em sua singularidade e em sua relação única com o adoecimento. Espaço para falar sobre suas questões, medos e fantasias, um espaço que é deles, para elaborar e, quando possível, reinventar.

Ana2 e seu Passarinho

Ana, uma criança de apenas sete anos, ao tratar um tumor de seios paranasais (seios da face), ensinou-nos muito sobre a vida e a morte e contribuiu para as reflexões presentes neste artigo. O início do seu tratamento ilustra a maneira frequente como crianças são desconsideradas diante das intervenções médicas.

Por conta do crescimento do tumor que ameaçava lhe asfixiar, Ana precisou ser submetida a um procedimento de traqueostomia – que consiste na inserção de uma cânula na traqueia para possibilitar a respiração, de modo a não depender mais do nariz ou da boca para exercer tal função. Porém, atravessada pelo saber, diante do protocolo e na posse da técnica e dos instrumentos para efetuar o procedimento, a equipe médica não explicou para a menina o que seria feito em seu corpo. Ana acordou, sem nenhum aviso prévio, com um buraco em seu pescoço e sem conseguir falar – tendo em vista a necessidade de adaptação e acompanhamento fonoaudiológico para o retorno da emissão dos sons por meio do tamponamento da cânula. Ela foi, assim, desconsiderada em seu próprio tratamento.

Após o ocorrido, a menina parou de confiar em todos, tanto na equipe quanto em seus pais, e tornou-se resistente e arredia a cada aproximação e manipulação. Momento esse em que o saber se deparou com um limite, fazendo com que as médicas solicitassem atendimento psicológico para ela. O saber médico – visando à eficiência do tratamento da paciente a partir de um protocolo – viu escancarada a sua falha, o sujeito, que passou a se manifestar, a se impor, e diante do qual a equipe não sabia mais o que fazer.

Conhecemo-nos no segundo momento de seu tratamento, quando Ana internou para uma nova linha de quimioterapia. Logo chamou a atenção o seu conhecimento acerca do que estava acontecendo: ela falou que estava no hospital para fazer uma quimioterapia “mais forte” e descreveu seus possíveis efeitos colaterais. Compreender os procedimentos e todos os passos da proposta terapêutica foi o modo que ela desenvolveu, por meio do acompanhamento psicológico com outra profissional que lhe atendeu inicialmente, para prosseguir com seu tratamento. Notei, ao longo dos atendimentos, que a cada exame e procedimento marcado, Ana perguntava para sua mãe “Como é este exame mesmo?” ou “Esse é aquele que o médico vai fazer...?”, e sua mãe lhe explicava. Desta forma, ela se preparava e permitia cada intervenção médica em seu corpo.

Algo que também surgiu como recurso para que ela se colocasse ativamente diante de seu tratamento era a brincadeira com a maleta de kit médico. Conforme destacado por Freud (1920/2006, p. 143), “se o médico examina a garganta da criança ou a submete a uma pequena cirurgia, podemos estar certos de que essa vivência assustadora será o conteúdo da próxima brincadeira”. Assim, utilizando os instrumentos médicos contidos na maleta, em alguns atendimentos, brincando, Ana tornou-se a médica e, ao me colocar no lugar de paciente, repetia em meu corpo os procedimentos que eram realizados no dela, assumindo, assim, o lugar ativo de “senhora da situação” (Freud, 1920/2006, p. 143).

Após essa internação, atendi Ana no ambulatório e ela pôde falar sobre pesadelos recorrentes que a faziam querer dormir com os pais todas as noites. Neles, algo acontecia e ela se perdia ou era tirada de seus pais, o que a fazia acordar chorando e angustiada. Algo aí começou a aparecer. Ela passou a temer uma separação, desejando a presença constante dos pais ao seu lado. Ao buscar que Ana falasse sobre si e sobre sua experiência do adoecimento, foi possível construir um lugar onde ela pôde colocar em palavras o que, antes de qualquer um, ela começou a entender.

Na internação seguinte, o inchaço e o formato do seu rosto mostravam que o tumor estava em evolução. Ana, atrelada a seus desejos, costumava trazer para os atendimentos as coisas que gostava de fazer em casa, como dançar e brincar, e sempre falava sobre seus passarinhos, em especial o Pedro e a Joia: descrevia como cuidava deles, como os alimentava, como eles ficavam quando estavam estressados ou quando brigavam. Eles eram seus grandes companheiros. Mais desanimada, Ana falou durante um atendimento sobre seu passarinho, o Pedro. Relatou que Pedro tinha um companheiro, de quem ele gostava muito, mas que um dia ele ficou doente e morreu, deixando Pedro muito triste no canto de sua gaiola. Ana seguiu dizendo que hoje quem estava doente era o Pedro e que ele não estava conseguindo evacuar. Ressalta que seu pai estava dando antibiótico para o passarinho e que, se ele não melhorasse, iria levá-lo ao veterinário ou iria soltá-lo para ir embora. Perguntei o que ela preferia que fosse feito e ela respondeu que preferia soltá-lo, “porque ele precisava viver” [sic]. Aqui, ao falar sobre Pedro, por alusão, Ana falava de si, sobre a morte e seu desejo de viver. 

Pouco tempo depois, começou a se recolher em si mesma, parou de brincar e disse à mãe que podia dar todos os seus brinquedos, pois não iria mais usá-los – isso porque, diferentemente do que se imagina sobre a percepção das crianças, ela sabia muito bem o que estava acontecendo. Nos nossos encontros seguintes, com uma feição entristecida e raivosa, ela não quis mais conversar, apenas chorava e eu permanecia ao seu lado. Sustentar o silêncio é um ato que convoca o sujeito e, mesmo sem falar – não conseguia ter significantes para falar de sua morte –, Ana podia mostrar ali o que estava sentindo. Além disso, o crescimento do tumor, que já havia obstruído suas vias nasais, gerava fortes dores de cabeça e na área do pescoço, de modo que ela se fechava cada vez mais em si mesma.

O período que seguiu foi marcado por muitas perdas e intervenções por conta da evolução do tumor no corpo de Ana. Para que ela continuasse a respirar foi necessário recolocar a traqueostomia. Pouco tempo depois, ela perdeu a visão, o que fez com que se fechasse totalmente. Ela parou de falar (respondendo apenas sim ou não com a cabeça) e não aceitava mais nenhum tipo de intervenção lúdica (como ouvir histórias, por exemplo). Se antes temia sua morte, agora estava tomada por ela. Em sua última internação, deparou-se com mais uma limitação: não conseguia engolir, e a saída encontrada pela equipe foi a realização de uma gastrostomia. Ou seja, Ana, que já não lidava bem com a traqueostomia, precisou ser submetida a mais um procedimento invasivo, precisou ter mais uma parte de seu pequeno corpo invadida.

Foi um final marcado por muitas perdas, limitações e invasões, um final que, diferentemente do primeiro tratamento, não possibilitou a Ana novas invenções. Cinco dias após a realização da gastrostomia, já muito fraca e com um quadro extremamente complicado, ela faleceu. Ao contrário do que preferia ter feito com seu passarinho, não a deixaram “livre para voar”. Ana foi colocada em um respirador que a manteve viva durante alguns dias. Acompanhei Ana até o final e, mesmo rejeitando todas as ofertas de interação, ela seguia permitindo o meu retorno.

O Real da Clínica e o Luto

A inserção nesse universo oncológico, que foi retratado no caso, coloca-nos diante da dureza de uma realidade que por vezes não é passível de tradução simbólica, mas que é sentida, experimentada como aquilo que se impõe diante de nós e que nos exige um posicionamento. A inserção na oncologia nos coloca, então, diante do real3 da clínica, que pode ser traduzido como o “impossível de ser tratado pelo saber” (Alberti, 2019, p. 16). Estamos diante dele ao testemunhar as profundas perdas causadas pelo tratamento e adoecimento, que geram um abalo na ancoragem psíquica nesses sujeitos, impondo a eles uma nova (e muitas vezes brutal) realidade. Ao experimentar a impotência sentida por todos, principalmente pelos pais, diante da impossibilidade de algo ser feito para frear o avanço da doença. E ao acompanhar, nos casos extremos, a morte, em sua face mais real, de crianças e adolescentes.

Diante do acompanhamento de cada sujeito, constatou-se que, para ser possível sustentar o tratamento oncológico e as inúmeras perdas, renúncias e sofrimentos impostos por ele, o trabalho de luto surge como fundamental – tanto por parte das crianças e adolescentes quanto por parte de seus pais. Luto pela saúde perdida, luto pelo corpo e pela imagem corporal modificados, luto pelo que é preciso perder para tentar ganhar um modo de continuar a viver.

O luto é descrito por Freud (1917/2006, p. 103) como a reação “à perda de uma pessoa amada, ou à perda de abstrações colocadas em seu lugar, tais como pátria, liberdade, um ideal etc”. O seu trabalho consiste no desinvestimento libidinal de todas as relações que se mantinham com esse objeto amado que, conforme verificado pelo teste de realidade, não existe mais. Entretanto, é um trabalho que enfrenta uma forte oposição, pois, como salientado pelo autor, “de modo geral o ser humano – mesmo quando um substituto já se delineia no horizonte – nunca abandona de bom grado uma posição libidinal antes ocupada” (Freud, 1917/2006, p. 104). Portanto, o luto se apresenta como um processo penoso que requer um importante gasto de tempo e de energia, enquanto, de modo simultâneo, o objeto que foi perdido continua a existir psiquicamente:

Cada uma das lembranças e expectativas que vinculavam a libido ao objeto é trazida à tona e recebe uma nova camada de carga, isto é, de sobreinvestimento [Überbesetzung]. Em cada um dos vínculos vai se processando então uma paulatina dissolução dos laços de libido (Freud, 1917/2006, p. 105).

Apesar de bastante doloroso, Freud ressalta que o luto é um processo natural e que, ao alcançar o seu fim, o Eu se encontra desinibido e novamente livre para investir em novos objetos. Lacan, no Seminário livro 10: a angústia (1962-1963/2005, p. 363), aborda o luto por um prisma que considera “simultaneamente idêntico e ao contrário” de Freud. Para o autor, o trabalho do luto parece ser feito para “manter e sustentar todos esses vínculos de detalhes, na verdade, a fim de restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto mascarado, o objeto a” – o objeto causa do desejo4. Afirma que, posteriormente, será possível ofertar um substituto para esse objeto, mas que ele, na realidade, não será mais importante do que aquele que inicialmente ocupou o seu lugar. Nesse sentido, Lacan parece relativizar a liberdade de substituição pelo Eu, enfatizada por Freud, após o término do trabalho de luto, para investir sua libido em outros objetos, visto que “cada luto comporta algo de insubstituível” (Castilho & Bastos, 2013, p. 99).

Sobre o objeto do luto, no Seminário livro 6: O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-1959/2016, p. 359) destaca ser “numa certa relação de identificação que esse objeto adquire seu alcance, que suas manifestações se agrupam e se organizam”. Identificação essa que considera ter sido designada por Freud como uma “incorporação” do objeto perdido. No luto, o sujeito imerge em sua dor, mantendo relação com o objeto amado perdido, o que o faz existir de maneira ainda mais intensa justamente por não corresponder a mais nada que exista. Diante disso, Lacan (1958-1959/2016, p. 360) afirma que “o luto, que é uma perda verdadeira, intolerável para o ser humano, lhe provoca um buraco no real”. E continua:

esse buraco oferece o lugar onde se projeta precisamente o significante faltante . . . ­significante essencial à estrutura do Outro, aquele cuja ausência torna o Outro impotente para nos dar nossa resposta. Esse significante, só podemos pagá-lo com nossa carne e nosso sangue. Ele é essencialmente o falo sob o véu (Lacan, 1958-1959/2016, p. 360).

A perda do objeto amado abre um buraco que causa uma desordem, visto que todos os elementos significantes são insuficientes para dar conta desse furo aberto na existência. Assim, ao redor do luto, todo o sistema significante é posto em jogo. Nesse sentido, Lacan (1958-1959/2016, p. 364) nos mostra que o “luto vem coincidir com uma hiância essencial, a principal hiância simbólica, a falta simbólica”. No buraco aberto, em que o significante faltante encontrou seu lugar, mas sem ser encontrado, “vêm pulular no seu lugar todas as imagens ligadas aos fenômenos do luto” (Lacan, 1958-1959/2016, p. 360).

Há, então, uma valorização do objeto perdido, diante desse buraco causado pela perda, que desvela o a. O pequeno a, por sua vez, possui a angústia como tradução subjetiva, o que faz com que o caráter angustiante do encontro com a perda venha se manifestar. Vieira (2005) destaca que a dor, o trauma e a angústia possuem relação estreita com a apresentação do objeto como desaninhado, separado do corpo. O trabalho de luto consiste na valorização do que se perdeu para desinvestir tal objeto e, ao final do processo, uma nova roupagem para o a ser possível, reconstruindo o equilíbrio imaginário.

Portanto, a clínica no hospital oncológico deixa claro que o tratamento se dá em um processo de luto constante, uma vez que é necessária a elaboração do luto pela perda da saúde, pela vida que levavam até então, pela perda da imagem ideal, pelo corpo “como era antes”, perdas essas que foram abruptamente impostas pelo adoecimento. O trabalho de luto é árduo, é doloroso, mas possibilita a subjetivação das alterações na vida e na imagem corporal, de modo que as crianças e os adolescentes não se identifiquem de maneira melancólica com o objeto perdido, possibilitando a criação de novas formas de estar no mundo com câncer, ou de sobreviver a ele com algum desejo e inventividade.

Voltando o olhar para o caso de Ana, foi possível observar que, no início, houve um período de ressignificação de seu tratamento, em que as brincadeiras surgiram como modo de se apropriar e se colocar como sujeito diante dos procedimentos e propostas medicamentosas. Ao longo do seu acompanhamento, foi elaborando o luto por aquilo que perdeu a partir do adoecimento, destacando o que gostava de fazer e brincar, as pessoas e os animais que cuidava e amava, atrelada aos seus desejos. Porém, quando seu corpo deixa de responder ao tratamento, tornou-se visível em seu rosto que algo não ia bem, e ela sabia. Ana soube antes de qualquer um o que estava acontecendo.

Assim, é possível supor que primeiro, diante de sua imagem alterada e do que isso significava para ela, surgiu a angústia – que se manifestou também no sonho em que era separada de seus pais. A partir daí, veio o medo. Medo de ficar sozinha. E, depois, veio o que poderíamos interrogar se tratar de um luto: Ana, ao falar sobre a doença de seu passarinho, fala de si, fala sobre a sua morte. Aos poucos, foi retirando seu investimento do mundo externo – disse que sua mãe poderia doar todos os seus brinquedos, porque ela não iria mais usá-los. Foi cada vez mais se fechando em si mesma, até de fato partir.

Logo, ao garantir um espaço para que as crianças e os adolescentes possam falar, por meio dos recursos que lhe estiverem disponíveis, sobre o adoecimento, o tratamento e sobre o que estão vivendo, fazemos uma mediação entre elas e esse buraco que surgiu a partir das perdas. Possibilitando, então, que, diante do impossível que se impôs, fosse possível falar sobre alguma coisa, contribuindo para que o trabalho de luto fosse realizado. Talvez seja essa a pequena grande contribuição do psicanalista diante da oferta de escuta aos sujeitos em tratamento oncológico.

Porém, para que isso aconteça, para que possamos contribuir para o trabalho de luto das crianças, dos adolescentes e de suas famílias, precisamos marcar a nossa presença constante no tratamento desses sujeitos. Logo, precisamos estar disponíveis a escutar, disponíveis a ter contato com esse real da clínica oncológica.

É possível afirmar que o que pôde estar presente o tempo todo no acompanhamento da Ana foi a persistência da analista em fazer valer o sujeito do inconsciente diante do impossível, do real da morte. Porque, na clínica oncológica, não lidamos com uma morte simbólica, mas com a morte em sua face mais real. É diante dela que nos colocamos, sustentamos e suportamos uma posição de escuta, de trabalho, mesmo diante dos limites físicos e orgânicos, apostando que, enquanto há vida, há sujeito a ser escutado – de acordo com os recursos que estiverem disponíveis para tal.

Entretanto, essa presença, no que diz respeito a um hospital, trabalhando com crianças e adolescentes com câncer, muitas vezes devastados pelo tratamento, não se dá espontaneamente. Lidar com o sofrimento do outro, com o luto dos pais pelos filhos doentes, com as crianças e os adolescentes em luto diante das perdas e mutilações, não é algo simples. Lidar com a morte deles toca o inominável. Sustentar o real da clínica oncológica não é qualquer coisa. Não existe livro, aula ou instituição que ensine ao psicanalista, ou a qualquer um, como agir diante da morte. Desse modo, a “simples” presença do analista, acompanhando os sujeitos em tratamento oncológico na pediatria, já é um desafio.

Aprendemos com Freud que a morte não possui representação no aparelho psíquico, de modo que, no inconsciente, somos todos imortais. Porém, o trabalho clínico na oncologia nos coloca diariamente diante do luto e da morte, o que faz com que a nossa “própria capacidade de fazer o luto [seja] recolocada em ação, temos de algum modo que retomar as lembranças daqueles que amamos . . . Além disso, temos de nos defrontar com a nossa própria finitude e fazer o luto de nossa própria vida” (Jorge, 2017, p. 220). E, diante disso tudo, precisamos estar disponíveis e atentos para acolher e escutar as crianças/adolescentes e suas famílias.

Como sustentar a posição de analista, por exemplo, diante da fala de Ana, quando, por alusão ao seu passarinho, coloca em jogo sua própria morte? Nas palavras de Jorge (2017, p. 220), “temos que operar em nós o mais difícil de todos os trabalhos de simbolização e que talvez seja a prova mais radical para um psicanalista: ouvir um discurso sobre a morte, aproximar-se da morte a esse ponto – abordar a dimensão de não senso radical da vida”. Mas como colocar o sujeito em trabalho diante da morte? Ou como, diante da morte, apostar no sujeito? Aqui entra em jogo o desejo do analista.

O Desejo do Analista

O desejo do analista é uma função desenvolvida por Lacan a partir do questionamento acerca do lugar ocupado pelo analista na direção da análise do paciente. Conforme ­destacado em seu escrito A direção do tratamento e os princípios de seu poder (Lacan, 1958/1998), cabe ao psicanalista dirigir o tratamento, mas não o paciente.

No que diz respeito ao atendimento de crianças e adolescentes, a demanda é frequentemente vinda dos pais ou daqueles que são responsáveis pelo cuidado e educação deles. Entretanto, no ambiente hospitalar, tal demanda tende a vir dos profissionais de saúde que acompanham o tratamento. Em ambos os casos, diferentemente de um jovem ou adulto que deliberadamente endereça seu sofrimento psíquico a alguém em busca de tratamento, às crianças e aos adolescentes esse espaço é ofertado a partir da solicitação de outros. Porém, isso não impede que, através do laço transferencial estabelecido com o analista, eles produzam sua própria demanda. É nesse sentido que trabalhamos no hospital, convidando-os para falar, expressar-se, abrindo um espaço de escuta. Uma escuta atenta, sem precedentes, sem saber prévio sobre aquele quem fala, uma escuta que visa ouvir:

Que seja para-além do discurso que se acomoda nossa escuta, sei disso melhor do que ninguém, quando simplesmente tomo o caminho de ouvir, e não de auscultar. Sim, isso mesmo, não de auscultar a resistência, a tensão, o opistótono, a palidez, a descarga de adrenalina (sic) em que se reconstituiria um Eu mais forte [...]: o que escuto é por ouvir (Lacan, 1958/1998, p. 622).

Porém, para que o analista consiga ocupar esse lugar de escuta, para que sustente e guie o processo analítico, Lacan destaca que há um preço: ele tem que pagar com suas palavras; com o que “há de essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser”; e ele também tem que pagar com a sua pessoa, “na medida em que haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência” (Lacan, 1958/1998b, p. 593). Ao analista, é necessário um afastamento do seu próprio ser, para que ele consiga estar disponível para escutar o paciente, para que consiga se oferecer de suporte para sua demanda e para que ele esteja seguro de sua ação diante do analisando.

É diante disso que Lacan (1958/1998b, p. 621) introduz o desejo do psicanalista, pensando sobre a sua posição diante da demanda do analisando e da direção do tratamento, e, nesse sentido, ressalta a importância de “formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista”. Assim, conforme destaca Rinaldi (2017, p. 1), “o conceito de desejo do analista, como operador clínico fundamental da prática analítica nasce, portanto, diretamente vinculado à ética da psicanálise como ética do desejo”.

Esse tema é abordado por Lacan no Seminário livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960/1988), partindo do seu posicionamento contrário ao modo como a psicanálise estava sendo aplicada pelos pós-freudianos, vinculada a um moralismo, e visando afastar-se da visão aristotélica sobre a felicidade como um Bem Supremo. A partir das descobertas freudianas, Lacan destaca que a ética psicanalítica diz respeito a uma ética do sujeito, que condiz com o seu desejo – desejo esse inconsciente, que não vai de encontro à moral instituída.

Logo, a prática clínica psicanalítica opera a partir de uma ética voltada para o desejo, o que se distancia do ideal de felicidade como um fim, já que não se pode antecipar o que é felicidade ou o que é um bem para o sujeito, pois isso diz respeito à singularidade da realidade psíquica de cada um. Trata-se, assim, de uma ética que demarca que “os princípios que orientam a ação do analista não se confundem com um desejo de curar nem se subordinam a ele” (Lima, 2020, p. 88). Uma ética que orienta o analisando em sua relação ao real (Lacan, 1959-1960/1988), uma vez que o sujeito, desde o início de sua existência, é marcado por uma falta – determinando-o como falta-a-ser – falta essa, causa do desejo. Nas palavras de Lima (2020, p. 90):

. . . é desde a primeira mítica experiência de satisfação freudiana como experiência inaugural do desejo, descrita no célebre “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1996), que o sujeito está em falta e não há completude possível, uma vez que o objeto que poderia completá-lo está perdido desde sempre e em seu lugar resta um furo, Das Ding, a Coisa freudiana.

Sendo assim, a partir da ética da psicanálise, é possível pensar na posição ocupada pelo analista que, situando-se mais pela falta-a-ser, deve colocar o seu próprio ser em suspensão, o que é apenas possível por conta do desejo, descrito por Lacan (1959-1960/1988, p. 360) como um “desejo prevenido”, que é o desejo do analista. Prevenido por saber que o que ele pode dar diante do que o analisando lhe demanda é justamente o seu desejo, desejo advertido “de que há castração, de que há impossibilidade” (Rinaldi, 2017).

Esse desejo, Lacan não o nomeia, mas o cerca a partir do ponto fundamental em que se relacionam desejo com desejo. Conforme salientado pelo autor, “por trás do amor dito de transferência, podemos dizer que o que há é a afirmação do laço do desejo do analista com o desejo do paciente” (Lacan, 1964/2008, p. 246). Porém, não se trata do mesmo desejo: o analista, ao colocar seu desejo pessoal entre parênteses, ao se calar, mantém o enigma do seu desejo, permitindo assim que a função do desejo, como oriundo do lugar do Outro, consiga se manifestar. Desse modo, o desejo do analista surge “não como um desejo puro, . . ., mas como desejo de que, para além do narcisismo, surja a diferença” (Rinaldi, 1997, p. 3).

Assim, ao analista é possível sustentar um lugar vazio de seus próprios valores, intenções e desejos pessoais, o que lhe possibilita se oferecer como suporte para as questões e demandas do analisando, sem respondê-las, abrindo um espaço livre de julgamentos ou suposições para que ele fale o que lhe vier à cabeça. Com isso, no âmbito hospitalar com crianças e adolescentes, é possibilitada a oferta de um lugar livre de certo ou errado, livre de demandas dirigidas a eles, livre de intervenções, invasões e procedimentos. Oferecemo-nos, assim, como suporte daquilo que eles quiserem falar, brincar, desenhar, reclamar, expressar. Nas palavras de Lima (2020, p. 85):

quando o analista sustenta sua posição a partir do desejo do analista, se abstendo de responder como sujeito, segundo seus próprios valores e paixões, ou como especialista veiculando um saber que fecha a questão, pode haver como efeito a mobilização do sujeito do inconsciente e o que estava inacessível pode aparecer.

Portanto, o desejo do analista é essencial para que o lugar do psicanalista no tratamento do paciente seja sustentado e para que, então, seja possível o acesso ao sujeito e ao desejo inconsciente, motivo pelo qual Lacan (1964/2008, p. 225) o designou como “ponto-pivô” da operação analítica. Conforme destaca Jorge (2017, p. 186), “um dos maiores nomes que Lacan deu ao desejo do analista foi o desejo de saber, isto é, desejo movido pela falta de saber, pela falta de saber fantasístico, pelo não saber que sustenta a operação analítica”.

Sendo assim, o desejo do analista, como desejo de saber, pode ser descrito como o desejo de colocar o paciente em trabalho, como o desejo de que haja análise e, portanto, de que surja o desejo. Logo, é a função desejo do analista que opera diante do acompanhamento das crianças e dos adolescentes em tratamento oncológico. Opera tornando possível a sustentação da nossa posição por meio de uma escuta, abrindo um espaço de fala diante de todas as devastações causadas pelo câncer. No momento da escuta, é o desejo do analista que torna possível um esvaziamento de nós mesmos, um afastamento dos sentimentos causados pela dureza da situação enfrentada pelas crianças e pelos adolescentes, atuando como desejo de acessar esses sujeitos, para que consigam se colocar, para que contem suas histórias.

Como ressalta Jorge (2017, p. 164), “o analista se interessa pela singularidade do sujeito e, portanto, pela apreensão inteiramente subjetiva que ele pode vir a formular sobre suas vivências, na maioria das vezes apagada por uma significação generalizante”. Desse modo, inseridos no contexto hospitalar, podemos ofertar uma escuta analítica possibilitando que cada criança e cada adolescente saia do lugar de objeto imposto pelo tratamento, saia do apagamento causado pelo termo “paciente oncológico”, e venha dizer de si.

Entretanto, nem sempre a fala está disponível, seja por conta das limitações físicas impostas pelo tratamento, seja pela idade, que muitas vezes impossibilita uma expressão concisa acerca do momento vivido. Assim, o desejo do analista possibilita a sustentação da nossa presença, presença capaz de colocar tais sujeitos em trabalho, ou presença para mostrar que há ali uma aposta no sujeito, podendo ele advir ou não. Aposta essa que se traduz em investimento, independentemente da situação em que essas crianças e esses adolescentes se encontram.

Considerações Finais

Conforme nos ensinou Freud, destacado por Alberti (2008, p. 152), “. . . no campo da psicanálise não há prática sem teoria que, por sua vez, advém da prática”. Esse foi o caminho que possibilitou as respostas para nossos questionamentos. A partir do referencial teórico analítico, nós nos colocamos diante das crianças, adolescentes e suas famílias, por meio do nosso não saber, buscando que falem sobre si. E o que surge desse encontro, que é completamente singular, ensina-nos sobre a nossa prática e requer, por sua vez, um retorno à teoria.

Ao nos debruçarmos sobre o caso da Ana, foi possível observar a potência daquilo que surge quando se garante um espaço de fala às crianças e aos adolescentes em tratamento oncológico, quando se permite que, para além das tentativas de silenciamento, o sujeito se manifeste. Testemunhamos o quanto uma criança, diferentemente do imaginário do senso comum, é capaz de assimilar e de dizer sobre o seu próprio adoecimento. Observamos, na prática, a função essencial do trabalho de luto na oncologia, que pode ser a nossa maior contribuição para esses sujeitos. Vimos que é o trabalho de luto que torna possível tanto a subjetivação das perdas e criação de saídas para seguir desejante, para se manter no percurso do tratamento oncológico, quanto o desinvestimento do mundo externo e recolhimento diante do real da morte.

Por meio da análise da nossa prática, norteada pelos questionamentos que suscitaram o presente artigo, fizemos um retorno à teoria e chegamos, então, ao conceito de desejo do analista como função que nos possibilita operar com o real da clínica aqui apresentada.

Logo, é possível afirmar que é a nossa presença, a nossa escuta analítica, que podemos oferecer a essas crianças e esses adolescentes em tratamento oncológico. É o desejo do analista que permite que sustentemos a nossa posição perante o luto, a dor, o sofrimento de seres tão novos e de suas famílias, diante da morte. É o que possibilita que deixemos a nossa própria angústia em suspensão diante de tudo o que acompanhamos junto às crianças e aos adolescentes, e, assim, que consigamos ocupar esse lugar diariamente, independentemente da gravidade do adoecimento e das perdas sofridas por eles. Para tal, é preciso não responder à angústia supondo um saber que suprimiria a dimensão trágica da experiência, pretendendo trabalhar pela criança diante dos limites ali radicalmente encarnados.

Portanto, é a partir desse desejo advertido que é possível apostar em cada criança e cada adolescente em tratamento oncológico; retornar quando eles não podem, não conseguem ou não querem interagir; insistir que ali, diante da angústia da devastação, há um desejo que pode ser reconhecido; reconhecer que, mesmo tão perto da morte, há um sujeito que merece ser ouvido, mesmo quando na direção de se recolher em face da morte iminente. Podemos dizer, assim, que a presença do analista na clínica oncológica, atravessada pelo desejo do analista, contribui para que, diante do impossível, surja um trabalho possível, ainda que da ordem de um luto efetivo. A partir disso, o que surge nas singularidades de cada caso é o que dá forças para seguir investindo, seguir apostando na potencialidade do nosso trabalho, mesmo em uma clínica tão dura, tão real.

Referências

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Recebido em: 27/10/2022

Última revisão: 23/09/2023

Aceite final: 17/12/2023

Sobre os autores:

Marina Leorne Cruz Mesquita: Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Psicóloga na Casa de Saúde São José. E-mail: marina_leorne@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9020-591X

Vinicius Anciães Darriba: Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsa Prociência UERJ e Bolsa Produtividade em Pesquisa PQ2 CNPq. Professor associado no Instituto de Psicologia da UERJ. E-mail: viniciusdarriba@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9986-6554


1 Endereço completo: Rua Macedo Sobrinho, 21, Humaitá, Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22271-080. Telefone: (21)2538-7600.

2 Nome fictício para garantir o sigilo da criança e sua família.

3 O real é um dos três registros estabelecidos por Lacan que, junto ao simbólico e ao imaginário, constitui as “categorias elementares sem as quais não podemos distinguir nada na nossa experiência” (Lacan, 1953-1954/2009, p. 352). O real, como destacado por Jorge (2017, p.152), é “da ordem do não-sentido, da falta de sentido, e se define para Lacan pelo ‘impossível de ser simbolizado’. . . . [É o que] escapa radicalmente a toda e qualquer possibilidade de representação, ele ex-siste ao simbólico”. O imaginário, por sua vez, é o avesso do real, é o campo do sentido, da experiência do corpo como unidade. Já o simbólico é o duplo sentido, “é a insistência da linguagem com sua massa de ambiguidade inarredável” (Jorge, 2017, p. 152).

4 Lacan (1960-1961/1992) se debruça sobre o significante agalma e seu sentido de “brilhante”, “galante”, para caracterizar o que veio a chamar de objeto a. Não se trata de um objeto comum, especular, que possa ser descrito, nomeado, é um objeto de outro tipo. Ao insistir que o objeto variável da pulsão de Freud remete à falta, Lacan percorreu um caminho da sustentação dessa falta do objeto para a concepção de um objeto da falta (Darriba, 2005). Aqui, já não se trata mais “do resgate da centralidade da falta no objeto para Freud, mas da proposição de um objeto singular na obra de Lacan” (Darriba, 2005, p. 65), o objeto causa do desejo. Deste modo, ao demarcar a ausência do objeto, Lacan destaca que o desejo não se relaciona com a sua presença, mas mantém relação estrita com a sua falta. O objeto a representa o que o autor destaca como sendo uma das maiores descobertas da investigação analítica: a “descoberta do lado fundamentalmente parcial do objeto na medida em que ele é pivô, centro, chave do desejo humano” (Lacan, 1960-1961/1992, p. 147).

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v15i1.2213