Adolescentes com Anemia Falciforme Submetidos ao Transplante de Células-Tronco: Significados Atribuídos ao Adoecimento e Tratamento

Adolescents With Sickle Cell Anemia Undergoing Stem-Cell Transplantation: Meanings Attributed to the Illness and Treatment

Adolescentes con Anemia Falciforme Sometidos a Trasplante de Células-Madre: Significados Atribuidos a Enfermedad y Tratamento

Aline Guerrieri Accoroni

Lucas dos Santos Lotério

Manoel Antônio dos Santos

Érika Arantes de Oliveira-Cardoso

Universidade de São Paulo

Resumo

Introdução: Anemia falciforme (AF) é uma doença hematológica genética que tem como único tratamento com perspectiva curativa o Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH). Objetivo: Compreender os significados atribuídos ao adoecimento e tratamento por adolescentes com AF submetidos ao TCTH. Método: Estudo exploratório de abordagem qualitativa. A amostra de conveniência foi composta por oito pacientes adolescentes. Foi utilizada entrevista semidirigida aplicada individualmente, audiogravada e transcrita na íntegra. Os dados foram submetidos à análise temática reflexiva. Resultados: Foram elaboradas três categorias temáticas: Convivendo com a doença (dificuldades em lidar com as restrições da AF); Sobrevivendo ao transplante (decisão de realizar o transplante e dificuldades vivenciadas na enfermaria); e Vivendo no pós-transplante (retomando as atividades e melhora na qualidade de vida). Discussão: A decisão de se submeter ao transplante foi pautada na expectativa de cura e/ou de suspensão dos tratamentos convencionais. As maiores dificuldades enfrentadas no período de hospitalização se relacionam à necessidade de se submeter ao isolamento protetor na enfermaria, com restrição do contato social e descontinuidade da vida escolar. Após o transplante, os adolescentes conseguem retomar gradualmente algumas das atividades interrompidas e resgatam planos para o futuro. Conclusão: De modo geral, o tratamento foi dimensionado como uma experiência positiva, a despeito dos riscos e percalços vivenciados em seu percurso. No planejamento das intervenções de saúde, a equipe multiprofissional deve considerar os eventos estressores relacionados ao momento do diagnóstico, à tomada de decisão pelo transplante, às limitações vivenciadas na enfermaria e à reinserção social pós-TCTH.

Palavras-chave: anemia falciforme, adolescência, doenças crônicas, Transplante de Células Tronco-Hematopoéticas, transplante de medula óssea

Abstract

Introduction: Sickle cell anemia (SCA) is a genetic hematological disease for which the only potentially curative treatment is Hematopoietic Stem Cell Transplantation (HSCT). Objective: To comprehend the meanings attributed to illness and treatment by adolescents with SCA undergoing HSCT. Method: An exploratory study with a qualitative approach. The convenience sample comprised eight adolescent patients. Semi-structured individual interviews were conducted, audio-recorded, and transcribed in full. Data were subjected to reflexive thematic analysis. Results: Three thematic categories were developed: Living with the illness (difficulties in dealing with the restrictions of SCA); Surviving the transplant (decision to undergo transplantation and difficulties experienced in the ward); and Living post-transplant (resumption of activities and improvement in quality of life). Discussion: The decision to undergo transplantation was guided by the expectation of a cure and/or the suspension of conventional treatments. The major challenges faced during the hospitalization period were related to the need for protective isolation in the ward, involving restrictions on social contact and discontinuation of school life. After the transplant, adolescents gradually resumed some of the interrupted activities and reclaimed plans for the future. Conclusion: Overall, the treatment was perceived as a positive experience, despite the risks and challenges faced along the way. In health intervention planning, the multidisciplinary healthcare team must consider stress-inducing events related to the moment of diagnosis, the transplantation decision-making process, limitations experienced in the ward, and social reintegration post-HSCT.

Keywords: sickle cell anemia, adolescence, chronic illness, hematopoietic stem cell transplantation, bone marrow transplantation

Resumen

Introducción: La anemia falciforme (AF) es una enfermedad hematológica genética que tiene como único tratamiento con perspectiva curativa el Trasplante de Células Madre Hematopoyéticas (TCMH). Objetivo: Comprender los significados atribuidos al padecimiento y tratamiento por adolescentes con AF sometidos a TCMH. Método: Estudio exploratorio de enfoque cualitativo. La muestra de conveniencia estuvo compuesta por ocho pacientes adolescentes. Se utilizó una entrevista semidirigida aplicada individualmente, grabada y transcrita íntegramente. Los datos fueron sometidos a un análisis temático reflexivo.

Resultados: Se elaboraron tres categorías temáticas: Conviviendo con la enfermedad (dificultades para enfrentar las restricciones de la AF); Sobreviviendo al trasplante (decisión de someterse al trasplante y dificultades experimentadas en la enfermería); y Viviendo en el post-trasplante (reanudación de actividades y mejora en la calidad de vida). Discusión: La decisión de someterse al trasplante se basó en la expectativa de curación y/o suspensión de tratamientos convencionales. Las principales dificultades enfrentadas durante el período de hospitalización estuvieron relacionadas con la necesidad de someterse a un aislamiento protector en la enfermería, con restricción del contacto social y la interrupción de la vida escolar. Después del trasplante, los adolescentes retomaron gradualmente algunas de las actividades interrumpidas y recuperaron planes para el futuro. Conclusión: En general, el tratamiento fue calificado como una experiencia positiva, a pesar de los riesgos y contratiempos experimentados a lo largo del camino. En la planificación de las intervenciones de salud, el equipo multiprofesional debe tener en cuenta los eventos estresores relacionados con el momento del diagnóstico, la toma de decisión para el trasplante, las limitaciones experimentadas en la enfermaría y la reintegración social post-TCTH.

Palabras clave: anemia falciforme, adolescência, enfermedades crónicas, trasplante de células madre hematopoyéticas, trasplante de médula óssea

Introdução

Doenças crônicas podem ser definidas como um conjunto de condições de saúde que acarretam restrições funcionais, físicas e/ou mentais e têm duração mínima de um ano, bem como necessidade de acompanhamento constante de uma equipe multiprofissional de saúde especializada (Raghupathi & Raghupathi, 2018). Dentre as doenças crônicas hematológicas, destaca-se a anemia falciforme (AF), que representa a enfermidade hereditária mais prevalente no mundo. A AF é caracterizada por uma anomalia genética que afeta o modo como as hemácias são formadas. Essa alteração prejudica a formação da hemoglobina, componente essencial do sangue responsável pelo transporte de oxigênio para os tecidos e órgãos, que, na AF, apresenta-se em forma de foice, desencadeando episódios dolorosos de vaso-oclusão e propensão a infecções. Essas manifestações da doença podem ser controladas por meio de tratamento farmacológico, administrado para atenuar as crises vaso-oclusivas e reduzir o tempo de internação (Silva et al., 2021).

Uma das consequências da AF é que os pacientes que vivem com a doença, após certo tempo, podem apresentar complicações crônicas, as quais impactam negativamente suas vidas, obrigando-os a lidar com frustrações, limitações e perdas progressivas de funcionalidade. Muitas vezes o paciente necessita se adaptar a estilos de vida bem diferentes da população em geral e de outras pessoas de sua faixa etária, devido aos efeitos adversos do uso crônico de medicamentos e das constantes internações hospitalares. Estudos têm mostrado que essas restrições acabam por desencadear condições debilitantes, que dificultam a organização do cotidiano dos pacientes e contribuem para altas taxas de incapacidade e desemprego (Pires et al., 2022), além de prejuízos na qualidade de vida (Lotério et al., 2022).

Dentre as propostas terapêuticas atualmente disponíveis para a AF, o Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) é a única estratégia que oferece possibilidade curativa para a doença (Kanter et al., 2021; Silva & Salim, 2022). No entanto, é um procedimento invasivo, que envolve alto risco de morbimortalidade (Faria et al., 2021). O TCTH é organizado em três etapas: 1) pré-TCTH: que precede a internação para o transplante, momento dedicado a avaliações e exames; 2) TCTH: internação em isolamento protetor por um período de 30 a 40 dias; nessa etapa, o paciente recebe o condicionamento quimioterápico, a infusão da medula e aguarda até que o enxerto comece a funcionar; 3) Pós-TCTH: etapa caracterizada pela alta hospitalar e pelo acompanhamento ambulatorial (Lotério et al., 2022).

A decisão de submeter-se ao TCTH coloca o adolescente e sua família diante de uma situação dilemática, pois enfrentam uma condição paradoxal, uma vez que o procedimento acena com uma promessa factível de cura, mas ao mesmo tempo pode ser vivenciado e significado como uma nova ameaça devido ao risco de complicações. Esses riscos são esclarecidos pela equipe multiprofissional no pré-transplante e precisam ser ponderados na tomada de decisão, já que o TCTH pode acarretar consequências adversas, com perda da integridade física e até mesmo o óbito. Ademais, após a decisão, é comum observar elevados níveis de estresse e ansiedade devido à incerteza vivenciada até a identificação de um doador compatível e à necessidade de reorganização psicossocial da família, que tem de se engajar em inúmeras tarefas para complementar os cuidados exigidos na preparação, assim como durante e após a realização do transplante (Garcia et al., 2022).

Durante a internação para o TCTH, o adolescente com AF necessita habituar-se às novas demandas que instauram uma rotina rigorosa de cuidados, submetendo-se a exames e procedimentos invasivos, uso diário de medicamentos, manutenção do isolamento protetor e manejo dos efeitos colaterais do tratamento (náusea, vômito, diarreia, alopecia, entre outros). Ao mesmo tempo, é preciso abrir mão de uma rotina anterior de convívio familiar que envolvia momentos de lazer e sociabilidade, estudos, viagens e brincadeiras com amigos, o que expõe o adolescente a um sofrimento emocional persistente que também pode afetar o bem-estar de seus familiares (Bastos et al., 2021; Oliveira-Cardoso et al., 2018).

Após o TCTH, os adolescentes ainda terão de lidar com outros desconfortos decorrentes das implicações do tratamento, em especial as alterações da qualidade de vida. É um período de transição para uma vida como transplantado, que impõe novas exigências e a necessidade de administrar as múltiplas restrições impostas pela condição (Lotério et al., 2022). Dessa forma, além das limitações físicas causadas pelos efeitos colaterais do tratamento (dor, queda de cabelo, escurecimento da pele, emagrecimento ou edemaciamento), que desencadeiam alterações na imagem corporal, o adolescente também enfrentará perturbações em seus hábitos de vida, como prejuízos da capacidade produtiva, com baixo rendimento escolar ou laboral, alterações da função sexual, perda de autonomia e limitações no desempenho de alguns papéis sociais (Garcia et al., 2022).

Em muitos casos a família enfrenta sobrecarga financeira, em especial devido à necessidade de interrupções frequentes das atividades laborais pelos pais, além do sofrimento emocional e da exaustão em razão da necessidade de se dedicarem integralmente aos cuidados do paciente (Abreu & Costa Junior, 2018). Em vista dessas demandas superlativas, observa-se que as implicações decorrentes do TCTH não se limitam ao período de estadia no hospital, uma vez que, após a alta hospitalar, impõe-se um regime de cuidado integral no ambiente doméstico, o que torna a rotina desgastante. Além disso, há necessidade de retornos periódicos ao hospital para realização de exames e consultas ambulatoriais (Oliveira-Cardoso et al., 2018).

Considerando o panorama apresentado e a necessidade de oferecer suporte contínuo para os pacientes e suas famílias, por meio do planejamento de intervenções psicossociais, é imprescindível compreender como os adolescentes com AF constroem significados que lhes permitem subjetivar a doença e a experiência do transplante. As pesquisas com adolescentes submetidos ao TCTH ainda são escassas (Faria et al., 2021), o que constitui uma barreira para a melhoria da qualidade de vida desse segmento vulnerável da população.

A investigação dos fatores psicossociais envolvidos nesse contexto se mostra necessária para que seja possível compreender o modo como os adolescentes submetidos ao TCTH constroem significados sobre a doença e o tratamento. Esse conhecimento pode resultar no aprimoramento dos cuidados oferecidos pela equipe de saúde, com o desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais efetivas para essa população específica. Assim, este estudo tem como objetivo compreender os significados atribuídos ao adoecimento e ao tratamento por adolescentes com AF submetidos ao TCTH.

Método

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa. Foi utilizado o método clínico-qualitativo, que busca compreender os fenômenos relacionados ao processo saúde-doença-cuidado, a partir da análise dos significados atribuídos pelos atores envolvidos nos settings de saúde (Turato, 2013).

Participantes

Foram entrevistados oito pacientes adolescentes diagnosticados com AF de ambos os sexos, com idades entre 12 e 18 anos incompletos, atendidos na Unidade de Transplante de Medula Óssea de um hospital público universitário da região sudeste do país, no período compreendido entre agosto de 2018 e abril de 2019 (Tabela 1). Os participantes foram selecionados por conveniência, a partir de indicações dos profissionais do serviço e das observações da equipe de pesquisadores que atuava no serviço. O número foi definido com base no critério de saturação dos dados (Turato, 2013).

Tabela 1

Perfil dos Participantes Quanto a Idade, Idade ao Receber o TCTH, Escolaridade, Renda Familiar, Procedência, Tempo de Transplante

Nome fictício

Idade atual

Idade ao receber o TCTH

Escolaridade

Procedência / Estado

Renda familiar*

Tempo de transplante (anos)

Bruna

12

10

Ensino Fundamental

Salvador-BA

4 A 10 SM

2

Jonas

13

10

Ensino Fundamental

Divinópolis-MG

4 A 10 SM

3

Ester

14

10

Ensino Fundamental

Belém-PA

4 A 10 SM

4

Cristiane

14

12

Ensino Fundamental

Belém-PA

2 A 4 SM

2

Ana

16

10

Ensino Médio

Rio de Janeiro-RJ

10 A 20 SM

6

Ricardo

16

12

Ensino Médio

Dourados-MS

10 A 20 SM

4

Herick

17

12

Ensino Médio

Goiânia-GO

Acima de 20 SM

5

Renata

18

12

Ensino Médio

Igarapé-MG

10 a 20 SM

6

* Salário-mínimo equivalente a R$954,00 em 2018.

Para seleção dos participantes, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: pacientes com idades entre 12 e 17 anos e 11 meses, com diagnóstico de AF, que tinham ciência do diagnóstico, haviam sido submetidos ao transplante há no mínimo um ano e apresentavam estado cognitivo preservado. Foram excluídos participantes que apresentavam diagnóstico de outras doenças hematológicas, indícios de alterações cognitivas ou sintomas indicativos de estado psicótico agudo, ou que estavam extremamente debilitados ou com dificuldades acentuadas de comunicação que poderiam inviabilizar o engajamento na situação de entrevista.

Instrumentos

Para a composição do corpus de pesquisa foram utilizados dois instrumentos:

a) Questionário de Classificação Econômica – Critério Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2022), um instrumento padronizado e de acesso aberto com base nos itens de conforto doméstico e nível de escolaridade da pessoa de referência (“chefe de família”), visando avaliar o estrato socioeconômico do participante.

b) Roteiro de entrevista semidirigida, desenvolvido para este estudo a partir da literatura e da expertise da equipe de pesquisa. A entrevista baseou-se em um roteiro temático, que além de coletar dados sociodemográficos, investigou a experiência de adoecimento e tratamento: questões referentes à organização da vida pré-adoecimento, impacto do diagnóstico, perdas vivenciadas nesse período e, posteriormente, fontes de apoio social, experiência do TCTH e da transição para o viver como paciente transplantado.

Procedimento

Coleta de dados: a anuência foi formalizada por meio de prévia assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pelos pais ou responsáveis legais, seguida do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), firmado pelos adolescentes.

A coleta foi operacionalizada em dois momentos:

a) Período pré-pandemia de Covid-19: os participantes foram abordados presencialmente na data do retorno ambulatorial e convidados a participar da pesquisa. A entrevista foi realizada em sala reservada, com gravação de áudio, mediante anuência dos participantes e de seus responsáveis. A coleta de dados foi concluída em um único encontro, com duração média de 60 minutos.

b) Durante a pandemia: Pais e adolescentes foram contatados pela pesquisadora por meio do número de telefone registrado no serviço, sendo apresentado o projeto e seus objetivos por mensagem de texto. Havendo manifestação de interesse e disponibilidade para colaborar, a pesquisadora entrava em contato por chamada de áudio ou de vídeo com os pais, para explicar os pormenores da pesquisa e obter o consentimento para se comunicar com o(a) filho(a). Em caso de anuência, era firmado o TCLE. Em seguida, o adolescente era contatado e se repetia o convite para colaborar com a pesquisa, seguido da assinatura do TALE, por meio digital. A entrevista foi realizada de maneira síncrona (chamada de vídeo em tempo real) ou assíncrona (pela troca de áudios), de acordo com a preferência de cada participante, que pôde escolher a maneira com a qual se sentia mais confortável para participar. Foram consideradas as possíveis limitações do ambiente digital, tais como: dificuldade em estabelecer o vínculo, falta de controle do ambiente de aplicação, eventual interferência de acontecimentos e/ou falta de privacidade, entre outras.

Análise dos dados: os dados do Questionário de Classificação Econômica foram tabulados segundo as recomendações do instrumento. Sua utilização nesta pesquisa objetivou caracterizar o poder aquisitivo das famílias, dado o potencial impacto da situação de adoecimento grave de um filho na situação financeira.

As entrevistas, captadas a partir dos registros de áudio, foram transcritas na íntegra e literalmente, respeitando a sequência e a forma como foram emitidas as falas. Posteriormente, os dados foram submetidos à Análise Temática Reflexiva (ATR) (Braun & Clarke, 2019), de acordo com as recomendações propostas pelas autoras. Essa técnica é útil na pesquisa qualitativa por permitir descrever em detalhes o conjunto de dados obtidos, com flexibilidade nas análises, possibilitando identificar, analisar e gerar padrões (temas) a partir da codificação dos relatos. É uma análise minimamente organizada para não perder a fluidez do processo. As autoras priorizam a reflexividade, o engajamento teórico e o uso criativo do conhecimento, considerando central o papel da subjetividade do pesquisador nas análises.

A análise temática foi desenvolvida de acordo com os seis passos propostos por Braun e Clarke (2019): (1) familiarização com os dados; (2) geração de códigos iniciais; (3) criação dos temas; 4) revisão dos temas identificados; (5) definição e nomeação dos temas; e (6) produção do relatório. Em síntese, foram realizadas leituras exaustivas do material transcrito, possibilitando a identificação de padrões, que, por sua vez, deram origem aos códigos. Após a codificação, foram estabelecidas a posteriori as categorias temáticas, que subsidiaram a interpretação dos resultados, a partir do cotejamento entre o que emergiu nas entrevistas, o referencial teórico e os achados encontrados na literatura.

Considerações Éticas

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (CAEE 91022518.7.0000.5407). Foram seguidos os procedimentos éticos preconizados pela Resolução nº 466/2012 para pesquisas que envolvem seres humanos. Os participantes receberam autorização dos responsáveis e foram antecipadamente esclarecidos acerca dos objetivos do estudo, da preservação do anonimato e das condições de resguardo do sigilo e confidencialidade que protegem os dados obtidos.

Por serem abordados temas sensíveis, com potencial de despertar algum sofrimento a partir das lembranças que evocam situações de desconforto, perdas e dor psíquica, durante as entrevistas a pesquisadora tomou os devidos cuidados para evitar a exposição desnecessária dos entrevistados, considerando também que se tratavam de adolescentes em ­situação de vulnerabilidade. Os temas foram abordados em tom parcimonioso e respeitando o limite individual de tolerância à exposição de cada um à rememoração de experiências críticas que emergiram durante as entrevistas. Para preservar a identidade, os participantes foram identificados com nomes fictícios.

Resultados e Discussão

A média de idade dos pacientes foi de 15 anos (dp = 2,07), sendo que quatro pacientes tinham, no momento da coleta, idade superior a 15 anos, e os outros quatro, idade inferior a esse marco etário. A renda familiar média foi de, aproximadamente, R$ 2.654,00. Nenhum dos entrevistados era proveniente do estado de São Paulo. Essa caracterização da amostra permite visualizar algumas variáveis que influenciam a experiência dos adolescentes: a considerável distância entre a cidade de origem e o local de tratamento, as mudanças de hábitos e do ambiente cultural e as limitações financeiras (Abreu & Costa Junior, 2018).

Em relação à idade na ocasião da realização do TCTH, a média de idade foi de 11 anos (dp = 1,24), tendo o paciente mais velho 13 anos e o mais novo 10 anos. O tempo mínimo decorrido desde a realização do TCTH foi de dois anos e o máximo de seis anos, com tempo médio de 3,8 anos (dp = 1,45). O tempo é um fator importante para aferir as condições de recuperação de aspectos da funcionalidade comprometidos pela doença e a retomada das atividades sociais e laborais em alguns casos, com a redução das restrições no cotidiano e espaçamento maior dos retornos médicos; além disso, essa variável também permite inferir o tempo de convívio com o temor da recidiva da doença de base (Oliveira-Cardoso et al., 2018).

Após a análise de dados, os temas que emergiram propiciaram a construção de três categorias temáticas: Convivendo com a doença; Sobrevivendo ao transplante; Vivendo no pós-transplante. Essas categorias ilustram os sentidos construídos pelos adolescentes para a doença e a experiência do tratamento (TCTH).

Convivendo com a doença

A maioria dos participantes recebeu o diagnóstico logo após o nascimento, com a realização do teste do pezinho, portanto, sem a possibilidade de uma participação efetiva da criança no momento da comunicação do diagnóstico aos familiares. Essa experiência foi vivenciada pelos pais com extremo sofrimento e preocupação, segundo relato dos filhos, uma vez que, durante todo o processo para engravidar e durante o período da gestação, é usual que o casal se prepare para o nascimento de um filho cujas características foram idealizadas. O diagnóstico precoce de uma doença crônica e grave como a AF rompe com a expectativa e imagem do filho idealizado, deflagrando a necessidade de ajustar as expectativas à realidade para assegurar a aceitação do filho real. É preciso que a equipe de saúde mostre sensibilidade para compreender esse movimento (Martins & Silva, 2020).

[...] minha mãe conta que foi descoberto no teste do pezinho, antes não tinha como saber. Eu tive que ficar internado depois que nasci. Fiquei 21 dias no CTI. Quando saí, aí veio o teste do pezinho. Acho que foi um impacto [...] Minha mãe diz que uma das primeiras coisas que a gente tem que fazer é aceitar. Mas a aceitação no ser humano é um pouco complicada quando é um bebê muito esperado. (Jonas)

Apenas três dos participantes receberam o diagnóstico em outro momento, após serem levados ao hospital pelos pais já com a manifestação de sintomas da doença. O diagnóstico da doença falciforme vem acompanhado de insegurança e medo, uma vez que a maioria dos familiares não tinha conhecimento sobre a doença, inclusive aqueles que tinham casos diagnosticados na família. Essa é uma realidade comumente observada nos quadros falciformes, o que reforça a importância do trabalho da equipe multidisciplinar no sentido de educar e orientar os pais para que se possam prevenir as complicações (Figueiredo et al., 2019).

Eu tinha quatro meses de idade, e minha mãe estranhou a minha cor. Aí com seis meses eu comecei a fazer a primeira transfusão. Aí depois dessa transfusão ela descobriu que eu tinha anemia falciforme e que já tinha gente na família com essa doença que ela não conhecia. Aí foi quando eu tinha 11 meses de idade que ela descobriu o que era, e que me deram um diagnóstico fechado. (Ester)

Durante as entrevistas, os adolescentes comentaram sobre as preocupações e o impacto emocional que o diagnóstico gerou em seus pais e demais familiares. Esses participantes pontuaram que, a partir dos relatos que ouviram dos pais sobre o momento do diagnóstico, perceberam que eles ficaram intensamente mobilizados, tristes e preocupados com o que estava acontecendo. Chama a atenção o comentário de Ana, de que sua mãe começou a se questionar sobre qual erro havia cometido durante a gravidez para que sua filha nascesse com AF. O sentimento de culpa parece ser uma vivência emocional muito comum em pais de crianças com doença falciforme, conforme reportado em outros estudos (Gesteira et al., 2020; Pinto et al., 2023).

Eles nunca tinham ouvido falar, eu fui o primeiro caso na minha família, sabe? Eles ficaram bem assim curiosos, até que teve um médico da minha cidade, que eu não lembro o nome, mas que ajudou bastante eles, sabe? Explicou tudo, eles conversaram, minha mãe conta que ela ficou muito mal, ficou achando que o erro era dela, ficou naquela... Meu pai também se assustou bastante, só que aí, depois, eles conversando [...]. Mas no começo eles ficaram bem assustados. (Ana)

No que se refere à vivência dos sintomas, quatro participantes relataram que foram se familiarizando aos poucos com a doença por meio do tratamento e do manejo dos sintomas, que se manifestaram ao longo de toda a vida, com apoio das explicações dos pais e dos médicos.

É, eu já estava me acostumando com as furadas [de agulha], já estava entendendo... Minha mãe me contava e eu ia descobrindo pelos meus colegas também, e eu também fui pesquisar na internet, né. Aí, depois eu fui descobrir o nome da doença, anemia ­falciforme, aí eu fui pesquisar, né. (Cristiane)

Os participantes afirmaram que os sintomas vivenciados durante a infância e início da adolescência acarretaram prejuízos na vida social e escolar, em razão das restrições para realizarem algumas atividades, como nadar e correr, e a alta taxa de abstenção nas aulas devido às crises de dor e às hospitalizações frequentes. Uma revisão de escopo (Lopes et al., 2023) ressalta a importância de considerar as características da adolescência no planejamento das intervenções de saúde na AF, uma vez que, por se sentirem diferentes dos demais, os pacientes podem ser acometidos por sentimentos de rejeição e timidez, e não se sentir ­confortáveis para buscar ajuda. De acordo com o estudo de caso realizado por Lino et al. (2021), os impactos do adoecimento crônico no adolescente podem provocar mudanças significativas no cotidiano, maior empobrecimento de experiências e limitações na realização de atividades significativas e prazerosas.

Muitas dores nas articulações, ossos, dores no peito [...]. As dores me atrapalhavam muito. Os sintomas me atrapalhavam para ir na escola por conta das dores muito frequentes, inclusive para fazer atividades físicas, por conta do cansaço e das dores. (Ricardo)

A literatura aponta que tais mudanças abrem espaço para a criação de uma rotina atravessada por demandas do tratamento, hospitalizações e sintomas álgicos e, consequentemente, demandam o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e elaboração de novos significados para que os pacientes consigam se ajustar da melhor forma possível a um viver com limitações (Ezenwosu et al, 2021; Freire et al., 2020; Silva et al., 2021).

Constata-se, portanto, que o diagnóstico veio acompanhado por desconhecimento sobre a doença pela família, o que aumenta a ansiedade e diminui a sensação de competência para o cuidado. Cria-se a necessidade de inserir cuidados especiais na rotina doméstica. A vida dos pacientes é marcada por crises de dor, demandas de cuidados intensivos e prejuízos em diferentes áreas da vida (Ezenwosu et al, 2021; Freire et al., 2020; Silva et al., 2021). Esses dados evidenciam a necessidade de construção de uma rede de suporte robusta, o que exige maior divulgação da doença à população geral, com uso de linguagem clara e acessível, por exemplo, na elaboração de manuais, panfletos e livros educativos (Alegre et al., 2022).

Sobrevivendo ao transplante

Em relação ao conhecimento prévio sobre o TCTH, a maioria dos participantes não conhecia essa terapêutica até o momento em que a equipe de saúde lhes apresentou a indicação dessa modalidade de tratamento. A possibilidade de realização do transplante veio acompanhada por esperança, mas também por aumento de preocupação devido ao temor de suas consequências negativas. Essa ambivalência está relacionada ao fato de que o transplante representa tanto uma ameaça à vida como a única possibilidade de sobrevida em longo prazo (Garcia et al., 2022), o que exige a gestão da incerteza na transição para a vida de transplantado.

Eu fiquei um pouco... Eu tive medo, de verdade eu tive medo, tanto comigo quanto com meus pais. Eu fiquei naquela preocupação com meus pais. Eu não sabia o que estava por vir, mas eu pensei: “Ah, vamos arriscar”. E os médicos tinham falado que, para AF, a expectativa de vida é de até 40 anos e tudo mais, e eu já estava tendo reação recebendo o sangue, então, meio que não tinha outra saída. (Ana)

A tomada de decisão pela realização do TCTH foi mediada pela equipe de saúde. Os profissionais ponderaram os possíveis riscos e benefícios da opção por esse tratamento e deram detalhes de como seria o transplante, sendo que um fator decisivo para o aceite foi a possibilidade de redução ou supressão dos tratamentos convencionais dolorosos e invasivos, redução da rotina de idas ao hospital, remoção dos sintomas recorrentes, tais como cansaço, dores e desânimo, além de eventual cura da doença. Esses resultados são consistentes com os encontrados por outros estudos (Moniz et al., 2022; Oliveira et al., 2020).

A minha sensação foi de felicidade, acreditei que eu ia me curar. E eu logo já fiquei feliz, estava alegre. [...] Eu não tive medo porque, tipo, fazer o transplante sempre foi meu sonho, apesar de que eu não sabia que existiam riscos. E minha mãe também me disse essas coisas, me apoiou nas coisas, incentivou bastante para eu não sentir medo. Ela conversou comigo, eu deixei nas mãos de Deus e tudo deu certo. (Bruna)

Posteriormente, a confirmação do familiar compatível para a doação da medula óssea veio acompanhada de alívio e alegria, além da constatação de que paciente e doador passaram a manter uma relação mais próxima após a doação. Essa sensação de gratidão e a mudança no relacionamento pós-doação são esperadas no cenário do TCTH com doador aparentado (Garcia et al., 2022).

A gente era muito próximo, mas agora estamos parecendo irmãos gêmeos, tudo que eu penso ele pensa, tudo que eu quero fazer, ele também quer fazer. É panela e balde. (Bruna)

O longo tempo de isolamento na enfermaria e, consequentemente, o afastamento do convívio social e do contato com os amigos e a escola marcam a ruptura da normalidade. Juntamente com os efeitos adversos do tratamento (em especial, a perda de cabelo ou de pelos, além de outros desconfortos físicos, como a mucosite), essas foram as maiores dificuldades mencionadas pelos adolescentes durante o TCTH, o que corrobora achados obtidos por estudos anteriores (Bastos, et al., 2021; Moniz et al., 2022; Oliveira-Cardoso et al., 2018). A presença e o apoio recebido em tempo integral do familiar acompanhante, uma exigência da equipe responsável pelo TCTH, foram considerados decisivos para amenizar a solidão e os impactos da internação (Szczepanik et al., 2018).

A gente fica muito debilitada, sabe? Aí tudo que eu comia eu passava mal. E teve aquela coisa de dar muita feridinha na boca e perder o cabelo também, eu fiquei naquela, sabe? E os remédios, eram muitos remédios também, e tinham alguns que eram muito ruins. ... Então, ter minha mãe comigo me ajudou muito. (Ana)

De acordo com Pontes et al. (2022), a hospitalização consiste um processo crítico para o binômio criança-família, na medida em que o paciente é retirado de seu núcleo social e familiar, experimenta um ambiente desconhecido e é exposto a procedimentos invasivos na maioria das vezes, o que pode desencadear sofrimento físico e psicológico, dor, cansaço, estresse e alterações na rotina de pacientes e famílias.

De modo geral, apesar de se tratar de um procedimento de elevado risco e que implica muitos desafios e dificuldades, a realização do TCTH foi significada de forma positiva pelos participantes e seus familiares, contribuindo para reativar a esperança de retomada de atividades prazerosas e de conquista de melhor qualidade de vida. Os sentimentos vivenciados no momento de decisão de se submeter ao transplante foram intensos e contrastantes, mesclando alegria e medo, possibilidade aguardada de cura e surpresa (“susto”). Os participantes evidenciaram a relevância da intervenção ativa por parte da equipe e da presença constante de um familiar durante a internação.

Vivendo no pós-transplante

De modo geral, todos os participantes avaliaram sua saúde atual de forma positiva, pontuando que percebiam que sua condição geral de saúde estava melhor do que antes do ­transplante, pois já eram capazes de realizar atividades, como correr, brincar e outras que exigem esforço físico, as quais não conseguiam executar quando estavam doentes. Essa melhora da condição física é um desfecho importante observado nos pacientes com AF no pós-TCTH, em especial no que tange à ausência dos episódios de dor, que antes eram recorrentes (Lotério et al., 2022).

Quando eu ia na piscina, por exemplo, a noite eu passava mal, entendeu? Por causa da falta do sangue. Aí minha mãe já me bloqueava, sabe? Tinha aquele limite, pois quando eu estava brincando na piscina, desidratava muito rápido. Toda vez que eu ia na piscina, eu já vinha direto para o hospital, porque desidratava. Depois do transplante, não. Eu já posso tomar banho na piscina, já posso brincar e andar mais de patins. (Bruna)

Além da melhora na capacidade física, os adolescentes notaram mudanças na forma como se relacionam com os outros e na valorização da vida. Esse achado é congruente com os resultados de outro estudo realizado com adolescentes com diferentes diagnósticos no pós-TCTH (Moniz et al., 2022).

Bem, me sinto muito bem. Mudou muito e foi para melhor a minha saúde, né. Porque, primeiro, eu fazia a transfusão e fazia sangria e tudo mais, e isso acabou. Mudou a convivência com meus pais e minha família, e eu acho que eu aprendi a valorizar mais a vida, sabe? Porque eu não tinha esse pensamento de viver intensamente e ser mais sensata e tudo mais, eu acho que isso mudou também. (Ana)

A possibilidade de retorno à escola foi vivenciada com ambivalência: de um lado, como constatação de que poderia realizar as atividades como um adolescente saudável e, de outro, como desafio, em especial para os participantes que permaneceram afastados por muito tempo das atividades escolares.

Voltar? Foi muito complicado, porque no começo a gente fica assim: “Dois anos sem estudar...”, mas depois vai voltando tudo aos poucos. Eu voltei com a máscara, né, que precisa usar por conta da quimioterapia. E meus amigos já estavam em outras escolas, então era gente totalmente diferente, fiquei preocupada e no começo eu não queria ir por conta da máscara e de não conhecer ninguém. (Ricardo)

Os adolescentes afirmam que se adaptaram gradualmente, graças ao apoio que receberam dos novos amigos e da família.

Mas depois eu fui me adaptando com o pessoal, os amigos que eu tenho até hoje me ajudaram bastante, minha mãe e minha irmã também sempre estiveram muito do meu lado nessa questão e aí, aos pouquinhos, eu fui me adaptando novamente, mas no começo foi meio difícil [...] Os sintomas melhoraram bastante depois do transplante, agora posso fazer bastante coisas que antes eu não podia por conta dos sintomas. (Ricardo)

Outro aspecto positivo foi a constatação de que, nesse momento sensível de retorno às atividades rotineiras, poderiam usufruir de mais liberdade e independência, características valorizadas nessa etapa do desenvolvimento (Moniz et al., 2022). “Sim, mudou um pouco. Eu acho que mudou a questão da independência, acho que depois do transplante eu parei de depender muito deles em algumas coisas que a anemia falciforme me proporcionava” (Ricardo).

Somente Jonas estava se preparando para a realização de outro transplante, pois a doença havia recidivado e ele estava novamente se submetendo aos procedimentos de rotina que realizava antes do primeiro transplante, como as transfusões sanguíneas. Apesar disso, ele considera que obteve ganhos importantes com a realização do transplante, uma vez que ficou um longo tempo livre de sintomas e sem necessidade de transfusões. Lotério et al. (2022) observou, em seu estudo, que os pacientes apresentavam melhor qualidade de vida em relação ao tempo de TCTH transcorrido, isto é, quanto maior o tempo pós-TCTH, melhores eram os indicadores de qualidade de vida.

Mas eu estou novamente tomando [sangue] agora porque a doença voltou, né. Tem oito meses que a doença voltou, mas fiquei um longo tempo sem. [...] Eu acho que só o fato de não tomar a transfusão de 21 em 21 dias e ter ficado esse tempo sem a doença já foi um ganho importante. (Jonas)

No que se refere aos planos futuros, todos os entrevistados afirmaram ter interesse em se qualificar profissionalmente e desenvolver uma carreira, com predileções pelas profissões na área da saúde (medicina, nutrição, biomedicina): “Tenho. Eu vou ser doutora. Doutora de criança mesmo, igual a Dra. M. É, mas depois eu vou fazer outro futuro, quando eu tiver adulta, né, eu vou adotar um filho para mim. Uma menina.” (Cristiane)

Observa-se que a etapa do pós-TCTH configura um momento delicado de transição, pois se trata do retorno do paciente ao seu ambiente social, ao convívio com os amigos e à escola. Além da reinserção social, como pôde ser constatado nas entrevistas, os adolescentes identificaram melhora na condição de saúde e um expressivo incremento na qualidade de vida, o que possibilita retomar expectativas e planos para o futuro.

Considerações Finais

De forma geral, o diagnóstico de AF é acompanhado por um desconhecimento da doença, alterações da rotina e cotidiano marcado por demandas do adoecimento, sintomas dolorosos e hospitalizações recorrentes. Apesar de ser um procedimento de elevado risco e que envolve diversas dificuldades no seu percurso, a realização do TCTH foi significada de forma positiva pelos participantes, visto que fortaleceu a confiança e a esperança de dias melhores, com a possibilidade de desfrutar de atividades prazerosas que haviam sido interrompidas e a esperança de alcançar melhor qualidade de vida.

A etapa do pós-TCTH se caracteriza como um momento de transição, uma vez que envolve novos desafios, com o retorno do paciente ao ambiente familiar e à vida escolar e social. Além da reinserção social, os adolescentes identificaram melhora geral na saúde física e na qualidade de vida, o que lhes possibilita reafirmar seu direito a ter um futuro.

No que se refere às limitações do presente estudo, vale ressaltar as peculiaridades da amostra, obtida em um único serviço especializado. Outra limitação que pode ser apontada decorre da necessidade de interromper as entrevistas presenciais em razão da pandemia de Covid-19 e as possíveis limitações das entrevistas on-line, como a perda do ambiente controlado e possível redução da privacidade em razão do ambiente familiar. Sugere-se que pesquisas futuras sejam realizadas com pacientes oriundos de outros centros especializados e com delineamentos longitudinais.

A principal implicação prática dos resultados deste estudo consiste na constatação das dificuldades específicas do adolescente com AF, tanto em relação ao tratamento convencional quanto à proposta curativa. Faz-se necessário pensar em intervenções que abarquem dimensões que vão além das questões físicas, incluindo os aspectos emocionais, familiares, sociais e ocupacionais desses pacientes. Em relação especificamente ao TCTH, reforça-se a importância de considerar as dimensões psicossociais envolvidas, sobretudo no momento do diagnóstico e na tomada de decisão para a realização do transplante. Tais processos envolvem tanto riscos como possibilidades de obtenção de ganhos significativos para a saúde, o que mostra que se trata de uma medida terapêutica complexa e que tem potencial de despertar sentimentos ambivalentes nos pacientes e em seus familiares. Além disso, ressalta-se a relevância da oferta de apoio consistente ao familiar acompanhante durante a internação do adolescente, contribuindo para o endosso dos ganhos pós-transplante, tanto físicos como emocionais.

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Recebido em: 11/01/2024

Última revisão: 06/12/2023

Aceite final: 13/04/2023

Sobre os autores:

Aline Guerrieri Accoroni: Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicóloga da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. E-mail: aline.accoroni@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9832-7663

Lucas dos Santos Lotério: Mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicólogo do Núcleo de Atenção ao Deficiente (NADEF), Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto. E-mail: loteriolucas@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8823-1249

Manoel Antônio dos Santos: Mestre e Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular no Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). E-mail: masantos@ffclrp.usp.br, ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8214-7767

Érika Arantes de Oliveira-Cardoso: [Autora para contato]. Mestre e Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicóloga da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). E-mail: erikaao@ffclrp.usp.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7986-0158

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v16i1.2322

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