Vida Acadêmica: Tomadas de Posição Diante do Sofrimento
Academic Life: Position Taking in the Front of Suffering
Vida Académica: Toma de Posición Ante el Sufrimiento
Achilles Gonçalves Coelho Júnior
Tiago Alves Teixeira
Universidade de São Paulo (USP)
Resumo
O aumento do acesso ao ensino superior criou contexto para problematização da experiência nesse espaço, destacando as dificuldades identificadas pelos estudantes a fim de que os modos de enfrentamento possam ser conhecidos e sistematizados. Este estudo teve como objetivo identificar e compreender os posicionamentos dos acadêmicos diante das dificuldades encontradas na vida acadêmica. Para tanto, foi usado o método fenomenológico de pesquisa empírica em Psicologia. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas on-line, de orientação fenomenológica, das quais participaram 13 colaboradores, universitários, dos sexos masculino e feminino, com idades entre 19 e 43 anos, voluntariamente. Após transcritos, os depoimentos foram analisados a partir do método fenomenológico e do cruzamento intencional. Identificou-se seis unidades de sentido que apontam para posicionamentos de autoconfiança e descobrimento de si mesmo, com maior força do que então se imaginava, para enfrentar as adversidades que circunda o cursar o ensino superior, envolvendo a religiosidade, o sentido vivido no curso e a busca por ajuda como posicionamentos importantes nesse processo. Indicando, assim, a presença das potencialidades humanas em ação, os estudantes conseguiram se posicionar diante dos desafios, o que parece apontar para a presença de uma tendência humana de crescimento.
Palavras-chave: ensino superior, estratégias de enfrentamento, saúde do estudante, fenomenologia
Abstract
Increased access to higher education created a context for problematizing the experience in this space, highlighting the difficulties identified by students so that ways of coping can be known and systematized. This study aimed to identify and understand the positions take of academics regarding the difficulties encountered in academic life. To this end, the phenomenological method of empirical research in Psychology was used. Semi-structured online interviews, with a phenomenological orientation, were carried out as a data collection procedure. 13 male and female university students, aged between 19 and 43, participated in the research voluntarily. After being transcribed, the statements were analyzed using the phenomenological method and intentional crossing. Six units of meaning were identified that point to positions of self-confidence and self-discovery, with greater strength than was then imagined, to face the adversities that surround attending higher education, involving religiosity, the meaning experienced in the course and seeking for help as important positions in this process. Thus indicating the presence of human potential in action, the students were able to position themselves in the face of challenges, which seems to point to the presence of a human tendency for growth.
Keywords: higher education, coping strategies, student health, phenomenology.
Resumen
El mayor acceso a la educación superior creó un contexto para problematizar la experiencia en este espacio, resaltando las dificultades identificadas por los estudiantes para que se puedan conocer y sistematizar formas de afrontamiento. Este estudio tuvo como objetivo identificar y comprender las tomas de posiciones de los académicos frente a las dificultades encontradas en la vida académica. Para ello, se utilizó el método fenomenológico de investigación empírica en Psicología. Se realizaron entrevistas semiestructuradas en línea, en orientación fenomenológica. En la investigación participaron voluntariamente 13 universitarios, hombres y mujeres, con edades comprendidas entre 19 y 43 años. Después de la transcripción, las deposiciones fueron analizados mediante el método fenomenológico y cruce intencional. Se identificaron seis unidades de significado que apuntan a posiciones de autoconfianza y autodescubrimiento, con mayor fortaleza de la que entonces se imaginaba, para enfrentar las adversidades que rodean la asistencia a la educación superior, involucrando como importantes la religiosidad, el significado vivido en el curso y la búsqueda de ayuda como posicionamientos personales importantes en este proceso. Indicando así la presencia del potencial humano en acción, los estudiantes lograron posicionarse frente a los desafíos, lo que parece apuntar a la presencia de una tendencia humana al crecimiento.
Palabras clave: educación superior, estrategias de afrontamiento, salud estudiantil, fenomenología.
Introdução
O ensino superior no Brasil contou com um aumento significativo do contingente de alunos nas últimas décadas. O censo da educação superior realizado em 2021, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apresentou a progressão de matrículas no ensino superior em um período de dez anos, sendo que em 2011 havia 6.765.540 matriculados, e em 2021 havia 8.986.554 pessoas matriculadas, o que significa um aumento de 32,8% no período em questão (Inep, 2021).
O aumento do acesso ao ensino superior criou o contexto para que se problematize como está sendo a experiência nesse espaço, destacando quais dificuldades podem ser identificadas pelos estudantes, a fim de que os modos de enfrentamento possam ser conhecidos e sistematizados. Embora as dificuldades e o sofrimento psíquico de acadêmicos tenham sido objetos de discussão há muitas décadas, o aumento da população universitária tem evidenciado essa temática (Graner & Cerqueira, 2019). A criação de políticas institucionais de permanência estudantil e políticas afirmativas, sobretudo de maneira mais sistemática em universidades públicas, tem construído algumas respostas às demandas contemporâneas de sofrimento, buscando disponibilizar recursos materiais e apoio psicossocial que enfrentem o risco da evasão e o surgimento ou agravamento de situações de sofrimento psíquico dos estudantes (Silva & Sampaio, 2022).
Embora as universidades estejam buscando novas maneiras de responder a essas demandas de sofrimento com intervenções institucionais, ainda se verifica que a própria dinâmica da vida acadêmica gera ou reproduz condições de sofrimento, que vão desde um excesso de atividades e de exigências acadêmicas até aspectos relacionais que reproduzem vários tipos de violência (Leão et al., 2019).
Almeida e Soares (2003) destacam que a experiência de cursar a universidade não se reduz às aulas e atividades estritamente acadêmicas. Há também desafios envolvendo o desenvolvimento psicossocial dos estudantes, que influenciará uma formação sociocultural mais ampla, abrangendo, por exemplo, a formação de sistema de valores, habilidades interpessoais e capacidade de liderar e empreender. O âmbito político, social e cidadão do cuidado também comparece como desafio formativo presente na vida universitária, devendo ser assumido como responsabilidade da instituição de ensino e não apenas como um percurso individual do universitário (Silva & Sei, 2021).
O ingresso no ensino superior representa, para grande parte dos jovens, um momento de realização de um sonho, de euforia, entusiasmo e expectativas acerca do que os aguarda no desejado curso. Almeida e Soares (2003) apontam que a euforia vivenciada pelos jovens é vivida de modo significativo também pelas pessoas que os rodeiam, como amigos e familiares. Contudo, surgem dificuldades relacionadas ao novo contexto. Novas regras se impõem, formas de avaliação diferentes das experimentadas nos anos de ensino anteriores, a necessidade de se estabelecer novas relações interpessoais, que podem ou não consistir em um aspecto estressor. Diante do impacto da realidade encontrada no ensino superior, muitas idealizações acabam cedendo lugar a decepções e situações de sofrimento decorrente de dificuldades na vida acadêmica ou na vida extra-acadêmica.
Defronte do novo cenário, os calouros podem experienciar situações de desconforto, estresse e dificuldades diversas. De acordo com Bardagi e Hutz (2011), o estresse está associado a imprevisibilidade de um evento, ou a impossibilidade de controlá-lo. Quanto mais um evento se apresenta de modo inesperado, maior a chance de o indivíduo o perceber como estressante. Os autores também apontam que mesmo em casos em que pode haver a previsibilidade do evento, ainda assim, o evento pode se apresentar como estressor.
Em pesquisa realizada com 342 estudantes dos cursos de Terapia Ocupacional, Fisioterapia e Medicina, constatou-se que 9,6% dos alunos apresentaram algum risco de suicídio e, desse número, 21,2% apresentaram risco elevado de passagem ao ato (Cavestro & Rocha, 2006). A mesma pesquisa identificou que 10,5% dos estudantes apresentaram episódios depressivos maiores. Também Andrade et al. (2016) chamam atenção para a incidência de sofrimento psíquico na população acadêmica e sugerem a necessidade de um olhar mais cuidadoso em relação à temática por parte das instituições de ensino superior e órgãos afins. Os autores apontam a urgência de se pensar em estratégias de manejo de sofrimento, com o objetivo de oferecer um ambiente que propicie bem-estar para os estudantes.
Tendo em vista o cenário, há a necessidade de estudos que investiguem os processos pessoais vivenciados pelos alunos no cotidiano da vida acadêmica, bem como a relação deles com as estratégias de enfrentamento, de forma a contribuir para o bem-estar de novos ingressantes (Oliveira et al., 2014). Nesse sentido, é necessário que as instituições de ensino se atentem às questões vivenciadas pelos seus discentes para além da formação acadêmica, pois são nesses espaços que os estudantes desenvolvem outros aspectos do seu desenvolvimento psicossocial (Almeida & Soares, 2003). Matta et al. (2017) ressaltam que o cuidado com este público favorece menor evasão dos cursos, uma vez que a evasão se apresenta como não retorno dos investimentos ao setor público e diminuição da receita em instituições privadas.
Este estudo teve como objetivo identificar e compreender os posicionamentos dos acadêmicos diante das dificuldades encontradas na vida acadêmica, a partir da sua própria elaboração da experiência.
Método
Esta pesquisa se orientou pelo método fenomenológico (Giorgi & Souza, 2010). Participaram desta pesquisa 13 colaboradores, com idades entre 19 e 43 anos, do sexo masculino e feminino, de uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada, localizada no norte de Minas Gerais. De acordo com Giorgi e Souza (2010), o número reduzido de participantes se justifica pelo fato de que o método fenomenológico investiga o fenômeno a partir de uma análise intencional das vivências. Nesse tipo de pesquisa qualitativa, não se prioriza uma generalização estatística, pois o método fenomenológico trabalha com os aspectos invariantes da experiência, buscando compreendê-los em sua profundidade e essencialidade.
A participação ocorreu de forma voluntária, mediante o aceite do próprio colaborador, em seu interesse em participar. Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), parecer CEP nº 4.679.557, CAAE: 45033021.9.0000.5109, houve divulgação nas redes sociais e por meio de e-mails de uma instituição de Ensino Superior elegida na amostra, visando convidar os voluntários para as entrevistas. Os participantes atenderam aos critérios de inclusão: ser estudante universitário; estar matriculado há pelo menos um semestre na Instituição de Ensino Superior à qual esta pesquisa foi vinculada; e ter experiências relacionadas ao fenômeno de estudo (dificuldades e sofrimento na vida acadêmica). Atendidos os critérios de inclusão, os participantes foram orientados quanto ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A entrevista aconteceu de modo on-line, por meio da Plataforma Google Meet, devido ao cenário pandêmico vigente na época, cumprindo as normas de distanciamento estabelecidas pelos órgãos competentes e zelando pela saúde dos envolvidos (Portaria nº 1.565, 2020). Para tanto, foi seguido o Ofício Circular Nº /2021/CONEP/SECNS/MS (2021), que estabelece orientações para procedimentos em pesquisas com qualquer etapa em ambiente virtual.
Foi utilizada a entrevista fenomenológica para produção intersubjetiva dos dados da pesquisa, uma vez que ela visa propiciar um espaço relacional, dialógico, empático, no qual, através da conversação entre sujeitos, possa se promover descrições do mundo experiencial e clarificar significado sobre os fenômenos descritos, a fim de obter uma descrição tão completa quanto possível da experiência dos participantes acerca da vivência estudada. Comumente, as entrevistas costumam iniciar com uma pergunta aberta, de carácter exploratório. As questões que seguem surgem a partir do fluxo de descrições dos participantes, da própria dinâmica que a entrevista vai assumindo em seu decorrer. Barreira e Ranieri (2013) salientam que as perguntas surgem a partir da curiosidade pela experiência descrita, não sendo possível prevê-las todas. Durante a entrevista, o entrevistador procura suspender o conhecimento que possa ter sobre o tema, a fim de captar a experiência do sujeito entrevistado (Giorgi & Souza, 2010).
De acordo com Giorgi e Souza (2010), após a transcrição da entrevista na íntegra, seguem-se os quatro passos do método fenomenológico de investigação em psicologia, quais sejam: a) estabelecer o sentido geral; b) dividir as unidades de significado; c) transformar as unidades de significado em expressões de carácter psicológico; e d) determinar a estrutura geral de significados psicológicos.
Ademais, a pesquisa adotou o procedimento da escuta suspensiva e cruzamento intencional (Barreira & Ranieri, 2013; Barreira, 2018; Barreira & Coelho Júnior, 2023). A escuta suspensiva guarda sua pertença à tradição de pesquisas empírico-fenomenológicas em psicologia, mas se constitui como uma maneira específica de conduzir o participante a proceder também uma mudança da orientação em relação à experiência. Nesse procedimento, o pesquisador adota uma orientação empático-psicológica e convoca o entrevistado à adoção de uma orientação personalista, o que favorece a investigação e o acesso às experiências originárias (Barreira, 2017). A mudança de orientação do pesquisador e do entrevistado em relação à experiência que emerge favorece o acesso à intencionalidade primeira das vivências originárias e a identificação dos aspectos essenciais que foram vividos (Barreira & Coelho Júnior, 2023).
Realizado esse primeiro momento de uma redução psicológico-fenomenológica, os aspectos essenciais das experiências dos entrevistados evidenciados foram comparados com os demais (redução intersubjetiva), constituindo-se como procedimento analítico designado por cruzamento intencional (Barreira, 2017). Tanto a escuta suspensiva quanto o cruzamento intencional foram procedimentos assumidos na presente pesquisa, simultaneamente, aos passos do método empírico-fenomenológico propostos por Giorgi e Souza (2010).
Resultados
Os resultados da pesquisa foram divididos em seis unidades de sentido apresentadas abaixo. Cada unidade de sentido explicita um aspecto da tomada de posição diante dos desafios do viver universitário.
a) “Eu sou mais forte do que imagino” (confiança na própria capacidade)
Uma experiência marcante, relatada pelos universitários, ao enfrentar dificuldades vividas durante o curso de graduação foi o desenvolvimento da confiança na própria capacidade. Essa tomada de posição foi identificada por eles diante da surpresa de uma ação, assumindo como resposta o reconhecimento do valor desta, bem como uma confiança na própria capacidade de enfrentar desafios e dificuldades. Esse posicionamento contribuiu para um novo modo de enxergar as situações e a força que identificaram em si mesmos.
O acolhimento de um novo modo de enxergar as situações em sua volta veio acompanhado de uma maior atenção ao rendimento acadêmico por meio das notas nas disciplinas, além da consideração quanto às dificuldades de aprendizagem ou desempenho como uma possibilidade de aprender mais. Nesse sentido, a Entrevistada 2 apontou: “Eu sou mais forte do que eu imagino (E2)”. Descobriu isso ao dar-se conta de que o medo que havia no início do curso diminuiu quando comparado ao seu momento atual de final de curso. Isso possibilitou que ela, por meio de suas experiências, acreditasse mais em si e na própria capacidade. A exemplo do que foi relatado no depoimento acima, essa experiência também foi descrita pelos entrevistados E9, E10 e E13.
Esse reconhecimento da própria capacidade, e, consequentemente, a autoconfiança, foi estimulado pelo olhar dos pares e contribuiu para uma apropriação de suas próprias competências. O acolhimento dos incentivos de colegas possibilitou uma atitude de posicionamento de confiança na própria capacidade, como relata a Entrevistada 3: “Eu passei a expressar minha opinião” e “se eu não expressar, eu nunca vou saber se estar certo ou errado”.
Em relação à capacidade de responder as tarefas acadêmicas, a Entrevistada 7 contou sobre o modo como passou a acreditar mais em si mesma, em sua própria capacidade, diante dos desafios:
Olha, às vezes a gente duvida, assim, da nossa capacidade, né? As pessoas questionam muito. Eu tinha coisas que eu achava que eu não era capaz, porque eu ficava mais calada. Eu não era tão participativa. Então, nesse processo, eu fui reconhecendo, assim, que eu poderia apresentar um trabalho, falar em público para mais pessoas. E que eu poderia fazer um trabalho difícil sozinha, que eu teria essa capacidade, porque antes eu achava que eu não tinha. Então, assim, aos pouquinhos, eu fui ali reconhecendo essas. . . É. . . Habilidades, esses pontos (E7).
Percebe-se que a entrevistada conseguiu dar uma resposta à situação que lhe gerava ansiedade, ao realizar trabalhos que antes não conseguia. Essa resposta à sua dificuldade se deu a partir do momento que decidiu enfrentar a situação e, então, descobriu-se em ação, assumindo um posicionamento pessoal.
b) “Eu me tornei uma pessoa que eu nunca imaginaria ser” (mudanças pessoais vivenciadas no cotidiano universitário)
A transformação pessoal ocorrida no viver universitário aparece como uma surpresa relacionada à própria dinâmica da pessoa em seu viver. Assim, a tomada de posição aconteceu no acolhimento do conhecimento de si mesmo, decorrente do enfrentamento dos desafios. Esse acolhimento envolveu o reconhecimento da própria força; a mudança no modo de se enxergar; a mudança no modo de pensar sobre si; e o acolher mudanças. Esse conhecimento de si está relacionado a seu posicionamento de se reconhecer e enfrentar as dificuldades, sendo possibilidade de mudanças: “Eu me tornei uma pessoa que eu nunca imaginaria ser” (E6). Os entrevistados E4, E8 e E9 se alinham à compreensão descrita acima. O posicionamento aparece também no acolhimento das mudanças provocadas pelo enfrentamento. Explicita-se esses aspectos no seguinte trecho:
Uá, foi bom! Assim, foi surpreendente, né?! É como se eu tivesse uma personalidade meio que adormecida, que ela precisou surgir onde que ela cabia, né? Até então não tinha, eu não tinha visto tanta necessidade de ser forte nesse ponto (E12).
No processo de descobrimento de si na vivência universitária, pode haver um reconhecimento a partir de um novo olhar, como se segue: “Mais a gente amadurece, a gente começa a olhar as coisas de outra forma e de outra maneira, sabe?” (E2). Sobre essa descoberta de si mesma, viabilizada pelo curso, a Entrevistada 8 contou: “Eu descobri outra pessoa. Impressionante mesmo assim, eu entrei nesse curso. . . É. . . Eu não sabia das minhas possibilidades quando eu entrei nesse curso, não sabia mesmo. Eu descobri uma pessoa praticamente oposta [. . .]” (E8). O posicionamento aparece no reconhecimento de possibilidades e na abertura a descobrir-se diferente do que era. Não só há descobrir-se de outro modo, como há o acolhimento desse novo modo. A fala da entrevistada indica uma ampliação da visão que ela tinha sobre si mesma.
c) “O que me ajudou mesmo foi um pouco desse senso de justiça” (senso de justiça)
O posicionamento diante do que apareceu como injusto para os entrevistados demonstrou uma atitude em que assumiram um critério pessoal de “senso de justiça” (E1). A atitude de justiça foi anunciada como um norteador de algumas vivências, ao estar presente no enfrentamento das dificuldades no contexto universitário, envolvendo também um perguntar-se pela justiça nas ações, assim buscando se orientar por ela. Há, nesse sentido, uma busca de não se deter como vítima de uma injustiça vivenciada, mas de buscar pela justiça, usando dos meios que dispõe para a transformação da realidade e/ou manifestação de uma indignação.
A Entrevistada 7 (E7) relatou ter vivenciado, por várias vezes, ofensas racistas durante a graduação, sendo também discriminada por morar em um bairro de vulnerabilidade social da cidade. As ofensas eram por seu cabelo, seu jeito de vestir e se expressar. Na experiência de injustiça perpetrada contra a E7, há um movimento de responder à injustiça, ao buscar dar visibilidade a essas situações, diante de colegas e professores, explicitando a situação de violência que sofria. A visibilidade da prática, muitas vezes naturalizada, pode ser um passo importante a fim de criar meios de enfretamento. Outro ponto é a apropriação que a entrevistada fez do fazer acadêmico, do trabalho acadêmico, como forma de expor, elaborar e enfrentar a violência a qual estava exposta, assumindo também a escrita como um modo de posicionamento.
d) “Parece que tem um lugar no mundo para mim” (sentido do curso de graduação escolhido)
Em grande parte das entrevistas, foi relatado que o ingresso na Instituição de Ensino Superior é a “realização de um sonho” (E12), algo que “sempre quis” (E5), demonstrando como os universitários encararam a vida acadêmica. Viver o curso de um novo modo, a partir de uma provocação, favoreceu um olhar para si e para o curso, aceitando a provocação e fazendo algo com a reflexão decorrente. Na busca por expressar o melhor de si, houve uma tomada de posição diante das dificuldades vividas, a qual favoreceu a vivência de apreensão do sentido de estar na graduação, promovendo, ainda, uma abertura diante das outras pessoas, acolhendo um vínculo que emergiu daí e permitindo pedidos de ajuda concretos.
Nesse sentido, a Entrevistada 12 contou sua vivência com projetos sociais, o que favoreceu encarar o curso de outro modo: “O que mais me segurou na faculdade foi a questão dos projetos sociais” (E12). Ela acrescenta: “Aquilo me conectava de uma forma com as outras pessoas que me trazia de novo minha essência, e aí me segurava mesmo com aquele terror que tava lá dentro, de adaptar, sabe? [. . .]” (E12). Diante do sofrimento de ter de se adaptar ao sistema de funcionamento do Ensino Superior, vivenciado como um terror, a escolha de se engajar em projetos sociais mostrou-se como uma tomada de posição para alguns alunos. Essa escolha de se envolver com atividades extracurriculares possibilitou a adoção de uma atitude de nova abertura para as pessoas, o que as aproximaram de um contato consigo mesmas e uma redescoberta do sentido do curso de graduação escolhido, por meio do exercício de atividades profissionalizantes vividas em caráter de voluntariado.
Segundo a Entrevistada 8, emerge desse modo de estar no curso, do sentido vivenciado, muita alegria e um desejo forte que a sustentou, mesmo que acompanhado de dificuldades. No trecho seguinte, a entrevistada descreve a sua tomada de posição, acolhendo o sentimento que emerge no seu viver. Redescobrir o sentido que o curso tem favoreceu a entrevistada a encontrar um lugar no mundo, por meio de ações e intervenções na comunidade, destacando-se uma complexidade e profundidade de significados vividos em uma intensidade afetiva que superava a capacidade de racionalização:
É, reverbera, assim, um sentimento de muita verdade, de que é isso mesmo, e que eu me acho no mundo. Parece que tem um lugar no mundo para mim, através disso que eu tô fazendo, né? É difícil, assim, quantificar, explicar, detalhar, é só uma coisa que eu sinto. Então, assim, é difícil porque está bem numa ordem muito subjetiva. Então, é só sentir mesmo. Nossa! É uma coisa que me faz. . . Assim. . . Ter muito investimento de me deslocar, de colocar energia, eu só consigo sentir (E8).
e) “Eu acho que é mais nesse sentido de fé” (religiosidade)
Nesta unidade de sentido, está presente a experiência religiosa no processo de enfrentamento das dificuldades vivenciadas. Nesse sentido, a Entrevistada 2, diante de dificuldades financeiras, disse: “Deus proverá! Saber não olhar no sentido de me preocupar tanto, e saber que vai dar certo de alguma forma, entendeu? Eu acho que é mais nesse sentido de fé. Eu não sei explicar de outra forma, sabe?” (E2).
A Entrevistada 3 se referiu à experiência religiosa como algo essencial no seu ingresso no Ensino Superior, na oportunidade que lhe foi dada, bem como o sentido que esse ingresso teve para ela:
[. . .]eu penso assim: nada é por acaso. Deus me deu essa oportunidade de estar aqui, nesse curso [. . .]. Deus me proporcionou essa oportunidade de eu entrar nesse curso, então não foi à toa [. . .] Então, eu pensei, assim, no meu esforço, na oportunidade que eu tive, pensei, assim, quantas pessoas que queriam estar aqui no meu lugar, pessoas que estudaram comigo (E3).
Denota-se da fala das entrevistadas que a experiência religiosa possibilitou que elas encarrassem a vida universitária com um sentido próprio de acolher as situações mais difíceis como oportunidade de desenvolvimento. Nas experiências relatadas, a atitude de fé religiosa proporcionou viver o curso com mais abertura.
f) “Isso foi o ganho que a psicoterapia me deu” (busca por ajuda)
A busca por ajuda, profissional ou não, constitui um posicionamento do estudante que. diante de um sofrimento, procurou um auxílio. A tomada de posição está presente na procura pela ajuda e na apropriação do processo de desenvolvimento pessoal promovido por essa busca. Alguns alunos relataram a busca por ajuda profissional como forma de enfrentamento das dificuldades vivenciadas na universidade. A psicoterapia, ou os atendimentos psicológicos realizados com profissionais da área de saúde mental, foi citada como algo que ajudou a enfrentar melhor as dificuldades que estavam vivendo, uma via de acesso a um maior contato consigo mesmo e uma maneira de se apropriar da própria capacidade do posicionamento.
A busca por psicoterapia foi citada como uma necessidade diante das vivências de sofrimento, às vezes acompanhada de quadros psicopatológicos. Entretanto, o que marcou o posicionamento nesses casos foi a apropriação que o estudante fez da psicoterapia. Ao acolher as provocações advindas do processo psicoterapêutico, uma das universitárias entrevistadas explicitou a importância desse processo no reconhecimento de suas potencialidades diante dos desafios:
É saber que não é qualquer coisa que vai me derrubar, sabe? Então, dá pra colocar a cara à tapa. Antes eu parecia um castelinho de cartas, e agora eu me sinto muito mais forte, que pode vir que eu estou preparada, e isso foi o ganho que a psicoterapia me deu: de me conhecer, de me reconhecer e reconhecer as minhas potencialidades também, e que não vai ser qualquer coisa que vai me derrubar, sabe? E é isso (E6).
A Entrevistada 11 também apontou que a busca pela psicoterapia foi um posicionamento importante no seu processo de enfrentamento de dificuldades. Entretanto, ela também apontou outros posicionamentos que também a ajudaram enfrentar as dificuldades vivenciadas no Ensino Superior, como falar sobre as dificuldades com alguém (não necessariamente um psicoterapeuta), escrever sobre o que sente e conversar com amigos, o que aparece em quase todas as entrevistas e é apresentado como um recurso diante da preocupação com as dificuldades. A Entrevistada 12 explicita esse ponto: “E aí, é assim, as pessoas em torno foram, assim, importantíssimas, importantíssimas!” (E12). Percebe-se que a psicoterapia acompanhada de uma vivência compartilhada com pessoas próximas constitui posicionamento e recurso importante para lidar com as dificuldades.
Discussão
Considerando o objetivo deste trabalho, de evidenciar os posicionamentos dos universitários, as dificuldades que ocasionaram tais posicionamentos pessoais não foram expostas nos resultados, sendo citadas aqui com o intuito de aprofundar a discussão. Observou-se que muitas das dificuldades identificadas nas entrevistas são coerentes com aquelas encontradas na literatura.
Nesse sentido, em revisão integrativa sobre sofrimento psíquico entre universitários realizada por Graner e Cerqueira (2019), foram percebidas, entre outras situações vivenciadas como sofrimento, a própria dinâmica do curso como fonte de estresse, o desconforto durante avaliações, o baixo desempenho e a baixa autoestima. Essas dificuldades coincidem com as relatadas durante as entrevistas, as quais foram respondidas diante dos posicionamentos de descoberta da própria capacidade em enfrentar desafios e do acolher da autoconfiança que emerge no enfretamento, culminando em um processo de aprendizagem e enriquecimento de si próprio. Esse aspecto da tomada de posição está em convergência com o apontado por Rogers (1977, 1983), que apresenta a tendência atualizante. Segundo o autor, o conceito de tendência atualizante refere-se ao movimento inato de todo organismo no sentido do desenvolvimento de suas potencialidades. Denota-se que os estudantes, ao tomarem posição diante dos desafios, enfrentando tais questões, possibilitaram o desenvolvimento de suas potencialidades e autoconfiança, o que, para Rogers, é uma tendência inata, desde que haja condições favoráveis disponibilizadas em relacionamentos que sejam compreensivos, autênticos e acolhedores, de forma a facilitar o processo de desenvolvimento dos acadêmicos, como foi o caso dos momentos em que estes buscaram relações de ajuda.
Os estudantes entraram em contato com suas potencialidades, o que gerou autoconhecimento, culminando em um novo modo de enxergar as situações e a si mesmo. Isso se deu no acolhimento de habilidades que a pessoa não havia percebido em si mesma, que foram mobilizadas diante das frustrações e limites. Assim, mesmo vivendo em um ambiente acadêmico permeado por uma cultura de competição, autocobranças e de solidão, que aumentam as possibilidades de fracasso, como encontrado no trabalho de Macêdo (2018), os universitários conseguiram reconhecer suas possibilidades e se posicionaram. Esse reconhecimento converge com o conceito de self real discutido por Rogers (1977). Segundo o autor, a experiência de si é uma dinâmica formadora da estrutura experiencial do self, uma vez que possibilita uma compreensão e uma aceitação mais completa de quem se é e de quem se escolhe ser. Desse modo, no processo pessoal vivido pelos universitários, há maior aproximação do self real, o qual incluiu o reconhecimento e a incorporação de possiblidades próprias, favorecendo um acordo entre o self e as experiências, que passaram a ser simbolizadas gradativamente e integradas no reconhecimento de si. Tal movimento gerou o reconhecimento da própria força e a transformação no modo de pensar sobre si e no acolher mudanças. Assim, o estudante tem uma imagem de si mais realista, o que implica uma atitude de abertura para o descobrimento de si mesmo e a apropriação de possiblidades que lhe são próprias.
Graner e Cerqueira (2019) apontam, entre outros, que ter sofrido discriminação racial ou de classe é um contexto que pode gerar significativo sofrimento psíquico, consonante com o encontrado nas entrevistas. Diante disso que foi vivenciado como injustiça por uma entrevistada, houve a tomada posição de expressividade e publicização das situações, movida por um senso de justiça, que foi assumido como um critério para compreender as experiências vividas de sofrimento. Este tipo de posicionamento pode ser melhor compreendido à luz da noção de experiência elementar, conforme discutida por Giussani (2009), citado por Mahfoud (2012), como um ímpeto original que constitui o fundamento de todo posicionamento ou gesto humano. É a partir desse ímpeto que a pessoa pode reconhecer as evidências fundamentais: a própria existência, uma realidade que a transcende, e reconhecer também exigências fundamentais da estrutura dinâmica da pessoa que, muitas vezes, são desrespeitadas em um dado contexto social.
Além disso, a experiência elementar pode ser reconhecida por meio da exigência de verdade, da exigência de justiça, da exigência de beleza, da exigência de ser e da exigência de felicidade. Desse modo, é possível reconhecer os critérios de avaliação que possibilitam chegar a juízos pessoais: correspondência entre tudo que o sujeito encontra e os anseios que constituem sua própria pessoa (Mahfoud, 2012). A exigência de justiça se expressou nos posicionamentos dos estudantes, o que possibilitou a eles enfrentarem o curso de um novo modo, buscando a transformação do que se apresentava como injusto e violento, emergindo daí um significado de luta que iluminou o estar na universidade e ampliar o horizonte comunitário da busca pela justiça, contra vários tipos de preconceitos. Nesse sentido, a experiência elementar é o fundamento do posicionamento pessoal que pede por justiça e ressoa nas vozes dos coletivos e das comunidades que a amplificam ou despertam.
Foi na ação que os estudantes reconheceram seus critérios, seus valores e suas exigências pessoais, como sujeito que se conhece em ação (Mahfoud, 2012), no presente, estando atento à dinâmica pessoal própria. Nessa ação, reconhece-se o que mobiliza: a realidade provoca algo que coloca a pessoa em movimento, provoca a emersão das exigências pessoais que a pessoa carrega em seu ser. Nos estudantes, ao vivenciarem situações de injustiça como racismo estrutural (Almeida, 2020), emergiu uma exigência de justiça, que foi acolhida e resultou em posicionamento pessoal e busca da mobilização da comunidade.
A experiência elementar constituiu um modo de estar no mundo que considera o que se tem de mais original, colocando um ideal diante de todos os aspectos da realidade. Nesse sentido, tem-se a vivência de uma “certeza”, experienciada por uma entrevistada. Viver essa certeza ajudou a enfrentar as dificuldades encontradas na graduação: medo de um futuro incerto diante de uma pandemia (Maia & Dias, 2020), sobrecarga de estudos, nova rotina e ruptura com o modo de ensino anterior, falta de tempo, concorrência e individualismo (Carneiro et al., 2021). Experienciar essa certeza de fazer uma coisa que queria muito, a alegria de fazer e o desejo forte de fazer foram essenciais para o posicionamento pessoal.
Essa mobilização da pessoa também foi apreendida no posicionamento de busca por excelência no desempenho universitário e por sentido no curso. Diferentemente de outros processos, como uma busca por melhor desempenho a partir de valor externo, trata-se aqui de uma busca que atenda a critérios pessoais próprios, resultante de uma exigência originária.
Na vivência universitária, verificou-se posicionamentos que apontaram para a vivência de um sentido no curso. Diante desses posicionamentos, há a atitude de viver o curso de um novo modo. A tomada de posição ocorre na atitude de assumir escolhas, na busca por expressar o melhor de si por meio das tarefas e atividades (avaliativas ou não), na abertura para com outras pessoas, acolhendo a conexão que emerge daí, bem como na atitude de dedicação ao curso. De acordo com Frankl (2016), a pessoa tem como sua motivação primária a busca por um sentido da vida e na vida mesma. Trata-se de um sentido que só pode ser cumprido por aquele indivíduo em particular, e por isso é exclusivo e específico (Frankl, 2015). O sentido de uma situação decorre da apreensão de valores, identificados na realização de uma ação ou de um enfrentamento de um sofrimento imutável, possibilitando à pessoa reconhecer a sua singularidade e o lugar que ela ocupa no mundo, constituindo uma experiência de um sentido da própria vida.
A mudança de cidade para estudar, por exemplo, constituiu uma situação geradora de sofrimento para alguns entrevistados. Alguns estudantes relataram vivências de solidão, saudade de casa, dos familiares e amigos, desânimo, medo e o desenvolvimento e agravamento de quadros psicopatológicos. Essas situações são convergentes com a literatura que aponta sinais e sintomas de ansiedade, estresse e depressão fortemente associados à saída da casa da família para estudar (Vizzotto et al., 2017). A resposta a essa situação, por meio de uma busca de ajuda e apoio psicossocial, gerou mudanças no self, na imagem que cada um assumia de si mesmo.
Vale ressaltar que o sofrimento psíquico vivenciado pelos estudantes universitários não deve ser reduzido a uma dificuldade ou um problema individual. Os processos de subjetivação vividos no ambiente acadêmico envolvem aspectos coletivos, socioestruturais e institucionais (Leão et al., 2019). Embora não seja o objeto de discussão do presente artigo, não se deve passar despercebido que situações de opressão e violência voltadas a grupos específicos (gênero, raça, religião, deficiências, por exemplo), dentro nas universidades públicas e privadas, bem como o excesso de produtivismo acadêmico que culpabiliza aqueles estudantes que não conseguem corresponder a um ideal social e institucional, frequentemente geram impactos na saúde mental dos universitários.
Muitas universidades públicas têm desenvolvido estratégias formais de enfrentamento de situações geradoras ou potencializadoras de sofrimento estudantil. As diversas políticas de permanência estudantil, bem como as políticas afirmativas, têm ofertado recursos materiais como moradia, transporte, alimentação, apoio financeiro, bem como apoio à saúde física e mental (Graner & Cerqueira, 2019; Mendes, 2020; Silva & Sampaio, 2022). Essas estratégias têm gerado relevantes impactos positivos na permanência e no potencial amenizador de situações geradoras de sofrimento, mas constituem-se como respostas limitadas diante da complexidade das situações vividas pelos estudantes.
No âmbito das faculdades e universidades privadas, comparativamente às universidades públicas, tem sido frequente o uso de algumas estratégias que acabam por agravar ou delongar situações de sofrimento, uma vez que as ações que visam à prevenção do sofrimento estudantil acabam sendo reduzidas à concessão de bolsas de estudos e pesquisas baseadas em mérito acadêmico, à criação de setores de atendimento ou apoio psicopedagógico que correm o risco de tratar o sofrimento de maneira individualizada, ou a campanhas de marketing digital que lançam novas formas idealizadas, priorizando mensagens otimistas, diante das quais muitos alunos se sentem culpabilizados por não se reconhecerem. Embora sejam respostas institucionais, essas medidas nem sempre levam em conta as reais necessidades dos estudantes, sendo necessário um melhor alinhamento entre o planejamento das ações institucionais e as dificuldades subjetivas e comunitárias de cada contexto.
Conclusões
Os resultados explicitaram alguns posicionamentos dos estudantes diante dos desafios da vida acadêmica. Foi possível identificar o posicionamento de autoconfiança na capacidade de enfrentar dificuldades; de acolher mudanças pessoais; de senso de justiça; de viver uma experiência de sentido no curso; de religiosidade; e de busca por ajuda. Percebeu-se aí as potencialidades humanas em ação, visto que os estudantes conseguiram se posicionar diante dos desafios. Isso parece indicar a presença de uma tendência humana de crescimento (Rogers, 1977, 1983). Mobilizando a liberdade diante de um desafio, o qual pode provocar grande sofrimento, a pessoa estudante escolhe não parar na dor e no sofrimento, mas buscar por algo pessoal, um sentido próprio que se realiza no enfrentamento e nos modos de posicionamento. Assim, os estudantes conseguiram se posicionar diante de uma injustiça e lutar por uma mudança, ou realizar o sonho da graduação diante de uma série de situações dificultosas. O posicionamento emerge e marca o modo de estar do estudante.
Os discentes encontraram diversas dificuldades no viver universitário, algumas delas são: injustiças, autocobranças, solidão, reprovação, racismo, pandemia, dificuldades de aprendizado, mudança de cidade para estudar, cultura de competitividade, pouco tempo para se dedicar aos estudos e dificuldade financeira. Esses obstáculos geraram sofrimento para os acadêmicos; para algumas delas, houve atitudes que amenizaram ou extirparam o sofrimento; já para outras, o sofrimento permaneceu. Diante das dificuldades, surgiram diversos modos de enfrentamento: descoberta da própria capacidade; troca com professores e colegas; apoio de amigos e familiares; participação em projetos sociais; descoberta de si e da própria capacidade; experiência de compartilhamento; prática de atividade física, esportiva e amizades; experiência de fé; ajuda de amigos e profissionais; conversa sobre as dificuldades com alguém; prática da escrita sobre o que sente; e preparação prévia diante dos desafios.
A tomada de posição acontece por parte da pessoa que se coloca em ação, não parando nas dificuldades, mas buscando superá-las a partir do movimento próprio e singular de realização de si mesmo. Frequentemente, isso ocorreu a partir da busca pela ajuda de terceiros, amigos ou outras pessoas que constituem uma verdadeira comunidade acadêmica, aprendendo com a experiência e acolhendo as potencialidades descobertas em si mesmo, enquanto no enfrentamento dos desafios e das dificuldades.
As entrevistas desta pesquisa ocorreram de modo remoto devido ao cenário pandêmico, o que impediu um contato mais próximo entre entrevistador e entrevistado, gerando uma relação mais distante. Isso pode se apresentar como uma limitação desta pesquisa, assim como pôde resultar na inibição, por parte do entrevistado, de relatar algum aspecto relevante para este trabalho. Outro ponto a ser destacado é que dos trezes entrevistados, apenas um corresponde ao sexo masculino, o que constitui um dos limites encontrados na pesquisa.
Embora a produção intersubjetiva dos dados da presente pesquisa, por meio de entrevistas on-line realizadas no ano de 2021, tenha ocorrido durante o período da pandemia do coronavírus (SARS-CoV-2), as vivências de sofrimento psíquico e tomadas de posição relatadas pelos participantes remetiam, em sua maioria, a um período anterior ao surgimento da pandemia e do isolamento social decorrente das normas sanitárias. Como discutido por Torres et al. (2020) e Maia e Dias (2020), as mudanças decorrentes da pandemia apresentaram ou agravaram situações de sofrimento psíquico, as quais têm sido investigadas por vários estudos desde então, mas não compuseram o objeto de análise do presente estudo.
Na ocasião da realização das entrevistas, o tema pandemia foi mencionado, mas não de uma maneira expressiva pelos entrevistados. Isso não significa que o contexto pandêmico e suas mudanças no cotidiano não tenham impactado a dimensão existencial dos entrevistados, mas que essas vivências não foram exploradas na condução da entrevista e não foram enfatizadas espontaneamente pelos entrevistados. Estudos mais recentes, como os que podem ser verificados em Gundin et al. (2020), Carvalho e Araújo Silveira (2021), Teodoro et al. (2021), Cardoso et al. (2022) e Marinho et al. (2023), discutiram como esse cenário impactou a saúde mental dos estudantes.
Sugere-se como indicação para estudos futuros a necessidade de especificar o sofrimento acadêmico na fase de ingresso no Ensino Superior e na fase de finalização, com objetivo de identificar se existem condições específicas que podem estar provocando essa situação e solicitando posicionamentos dos estudantes. Outro ponto que merece atenção de estudos futuros é explicitar os recursos que cada indivíduo utiliza na constituição do seu posicionamento, em especial as iniciativas institucionais de proteção, sua efetividade e sua acessibilidade. Isso pode incluir os relacionamentos com os docentes e os colegas, bem como com outros setores ou serviços da faculdade.
As tomadas de posição diante das situações de sofrimento foram vividas de maneira pessoal, mas isso não significa desconsiderar a dimensão comunitária e institucional envolvidas. Os entrevistados relataram como certos tipos de relacionamento e de companhia foram essenciais para mobilizar a força e motivação necessária para seus posicionamentos. Sobre esse aspecto, não apenas os relacionamentos interpares ocupam um papel relevante, mas também o tipo de relação estabelecida entre professor e aluno, além das iniciativas institucionais, que tanto podem promover um espaço de mobilização da reflexão e posicionamentos pessoais quanto tentar inibi-las.
Nesse sentido, as instituições devem assumir uma maior atenção a políticas de permanência, políticas afirmativas de diversidade cultural e programas de promoção à saúde mental que considerem as urgências subjetivas cotidianas dos estudantes universitários, considerando as dimensões financeira, assistencial e as necessidades e vulnerabilidades.
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Recebido em: 27/06/2023
Última revisão: 16/03/2024
Aceite final: 15/04/2024
Sobre os autores:
Achilles Gonçalves Coelho Júnior: Estágio pós-doutoral na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da USP. Mestre e Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: achillescoelho@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6502-3161
Tiago Alves Teixeira: [Autor para contato]. Pós-graduado em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário UNIFIPMoc. Psicólogo do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). E-mail: tiagoa.teixeira@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0009-0002-4043-7226
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v16i1.2454
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