Saúde Mental na Psicologia Comunitária da PUC-Rio na Década de 19701

Mental Health in Community Psychology of the PUC-Rio in the 1970s

Salud Mental en la Psicología Comunitaria de PUC-Rio en la Década de 1970

Julio Cesar Cruz Collares-da-Rocha2

Universidade Católica de Petrópolis

Resumo

A saúde mental é um tema histórico na psicologia comunitária desenvolvida nas Américas a partir da década de 1960. Nosso objetivo foi produzir uma história da psicologia comunitária na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970. O material consultado foi composto por documentos (anais, artigos, capítulos de livros) e entrevista com a Professora Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos. Introduzimos, brevemente, as práticas de psicologia comunitária realizadas nos Estados Unidos e no Brasil, focalizando as atividades produzidas na PUC-Rio: o Setor de Psicologia Comunitária no Hospital Fernandes Figueira e a criação da disciplina de ‘psicologia comunitária’. A história demonstra que os espaços tradicionais de atuação dos psicólogos comunitários foram os centros de saúde e os hospitais. Na PUC-Rio, as atividades foram realizadas com os conhecimentos da psicologia social, especificamente dos grupos operativos e da psicologia institucional, da psiquiatria preventiva e da psicologia comunitária desenvolvida nos EUA.

Palavras-chave: saúde mental, Psicologia comunitária, história da Psicologia, hospital, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Abstract

Mental health is a historical theme in community psychology, which started to be developed in the Americas from the decade of 1960s. Our goal in this work was to produce a history of community psychology at the Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), in the state of Rio de Janeiro, Brazil, in the 1970s. The reasearch was based on several sources, such as annals, articles, book chapters, and an interview with Professor Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos. We are going to introduce, briefly, the practices of the community psychology carried out in the United States and Brazil, focusing on the activities produced at PUC-Rio: The Community Psychology Department at the Hospital Fernandes Figueira and the creation of the discipline ‘Community Psychology`. History demonstrates that the traditional areas of action of the community psychologists were health centers and hospitals. In the PUC-Rio, the activities were carried out with the knowledge of social psychology, specifically regarding the operative groups, the institutional psychology, preventive psyquiatry and community psychology developed in the USA.

Keywords: mental health, community Psychology, history of Psychology, hospital, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumen

La salud mental ha sido históricamente un tópico en la psicología comunitaria, que comenzó a desarrollarse en América a partir de la década de 1960. Nuestro objetivo en el presente trabajo fue producir una historia de la psicología comunitaria de la Universidad Católica de Río de Janeiro (PUC-Rio) en la década de 1970. El estudio se basó en varias fuentes, tales como anales, artículos, capítulos de libros y una entrevista con la profesora María Isabel Ribeiro dos Santos. Se introducirán, en pocas palabras, las prácticas de la psicología comunitaria llevadas a cabo en los Estados Unidos y Brasil, centrándonos en las actividades producidas en la PUC-Rio: el Departamento de Psicología Comunitaria en el Hospital Fernandes Figueira y la creación de la especialidad Psicología Comunitaria. El recorrido histórico permite mostrar que las áreas tradicionales de la acción de los psicólogos comunitarios eran los centros de salud y hospitales. En la PUC-Rio, las actividades se llevaron a cabo con conocimientos de psicología social, específicamente sobre grupos operativos y psicología institucional, así como de psiquiatría preventiva y psicología comunitaria desarrollados en los EE.UU.

Palabras clave: salud mental, Psicología comunitaria, historia de la Psicología, hospital, Pontificia Universidad Católica de Río de Janeiro

Introdução

A psicologia comunitária nos Estados Unidos da América foi formalizada a partir da demanda governamental para que houvesse maior atenção na área de saúde mental. Indicamos, como um marco estatal, a formação de uma ‘Comissão Mista sobre Doença e Saúde Mental’ em 1955, que objetivou investigar nacionalmente a temática da saúde mental, a partir de dez pesquisas autorizadas pelo Congresso Norte-Americano (Robinson, 1963).

As investigações foram propostas objetivando “levantar os recursos e fazer recomendações para combater a doença mental nos Estados Unidos” (Joint Commission on Mental Illness and Health, 1961, p. v) e ainda, “avaliar a efetividade dessas práticas [de saúde mental], e por um exame dos papéis de vários profissionais e não profissionais engajados em atividades de saúde mental” (Ewalt, 1957, p. 19), e essas pesquisas culminaram na proposta de criação de Centros de Saúde Mental Comunitária (Angelique & Culley, 2007).

A psiquiatria norte-americana parecia já estar preparada para trabalhar com os novos Centros de Saúde Mental Comunitária: o psiquiatra Gerald Caplan lançou algumas obras em consonância às necessidades de treinamento e atuação nos centros, que foram: An Approach to Community Mental Health (Caplan, 1961) e Princípios da psiquiatria preventiva (Caplan, 1980). Na primeira obra, Caplan (1961) reconheceu a comunidade como local para trabalhar com os que sofrem de doenças mentais, enfatizando o papel da prevenção; e na segunda obra, Caplan (1980) formalizou a psiquiatria preventiva e os modelos conceituais para prevenção primária, secundária e terciária.

Nesse ínterim, era preciso discutir o papel da psicologia para atuar nos Centros de Saúde Mental Comunitária, sendo realizada, em 1965, a Conferência de Boston sobre a Educação de Psicólogos para Saúde Mental Comunitária (ou Conferência de Swampscott), onde os participantes estiveram “claramente determinados a rejeitar a imagem do psicólogo como ‘o psiquiatra júnior’, o qual, no julgamento de algumas pessoas, tem sido projetada no treinamento convencional de psicólogos clínicos” (Bennett et al., 1966, p. 15).

O relatório da Conferência de Swampscott deixou claro que, a psicologia comunitária que estava sendo formalizada se relacionava ao trabalho na área de saúde mental, especialmente, pela necessidade de revisão do papel do psicólogo nos Centros de Saúde Mental Comunitária – visto que, na época, segundo Bennett et al. (1966, p. 2), os “serviços comunitários têm sido desenvolvidos por psicólogos clínicos e, até certo ponto, por psicólogos sociais que aprenderam as habilidades necessárias no trabalho”.

Já no Brasil, Lane (2002 [1996]) indicou que o surgimento da psicologia comunitária foi impulsionado pelo golpe militar de 1964, visto que este “fez com que, individualmente, os profissionais de psicologia se questionassem sobre a atuação junto à maioria da população, e sobre qual seria o seu papel na sua conscientização e organização” (Lane, 2002, p. 17), e indicou que os movimentos de 1968 fizeram com que essa questão fosse mais sentida na universidade. Lane (2000, p. 18) apontou também que “aqueles que permaneceram na América Latina durante os períodos de ditadura e/ou repressão política procuraram “brechas” de resistência e atuação, sob inspiração de Paulo Freire e muitos outros”.

A falta de referências para lidar com os problemas da realidade nacional foi um dos estopins da crise de relevância da psicologia e da psicologia social. Lane (1985) apontou a dificuldade de adaptar ou transportar a produção de psicologia social dos EUA à realidade da América Latina, e esta dificuldade cooperou para a crítica da psicologia social e para o surgimento de alternativas como as pesquisas/intervenções realizadas em comunidades pobres nas periferias.

Este breve exame dos primórdios da psicologia comunitária nos Estados Unidos da América nas décadas de 1960 e 1970, além da sucinta contextualização do surgimento da psicologia comunitária no Brasil, nos fornecerá um background para compreender a atividade realizada por Professoras e alunas de graduação de psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com gestantes no Setor de psicologia comunitária no Hospital Fernandes Figueira, em 1972.

Método

Do ponto de vista metodológico, nossa pesquisa utilizou o referencial da história oral híbrida, que conjuga a consulta a documentos com a produção de testemunho oral (Meihy & Ribeiro, 2011): os documentos utilizados foram tanto os textos produzidos pelas envolvidas nas práticas relatadas, quanto os textos que exploraram a história da psicologia na PUC-Rio, em especial, aqueles que investigaram a experiência de psicologia comunitária na instituição; e o testemunho oral foi a entrevista que realizamos com Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos, tendo em vista ter sido a criadora, tanto do Setor de psicologia comunitária no Hospital Fernandes Figueira, quanto da disciplina de ‘psicologia comunitária’ na PUC-Rio no início da década de 1970.

Acreditamos que a investigação da história da psicologia comunitária na PUC-Rio é importante, tanto para indicar as influências que essa psicologia recebeu, quanto para apresentar como essa prática se transformou e se aprimorou para dar conta de nossa realidade social. Além disso, a PUC-Rio foi uma das pioneiras da psicologia comunitária no Brasil, junto com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A Psicologia Comunitária na PUC-Rio na Década de 1970

Maria Elizabeth R. dos Santos3 concedeu entrevista para outra pesquisa sobre a história da psicologia comunitária no Rio de Janeiro (Soares, 2001), e ela recebeu o nome fictício de ‘Marta’, sendo considerada pelo pesquisador como uma das fundadoras do campo na cidade, indicando que a história da psicologia comunitária no Rio de Janeiro pode ter começado na PUC-Rio, com a disciplina de ‘psicologia comunitária’, oferecida a partir de 1972. Além disso, o autor pontuou que ‘Marta’ não trabalhou em favelas, e a apresentou da seguinte maneira:

Marta é psicóloga e professora de uma instituição do ensino superior (IES) particular. Foi muito influenciada pelos acontecimentos da década de setenta e por sua proximidade com estudantes de sociologia e história em sua graduação. Começou a dar aulas em 1971 e atualmente ainda leciona na mesma instituição em que se formou (Soares, 2001, p. 65).

Soares (2001) comentou que Maria Elizabeth R. dos Santos (Marta), recém-formada em 1970, buscou possibilidades de atuação distintas daquelas já consagradas, empreendendo uma viagem para a Argentina, onde passou dois meses estagiando, e conheceu José Bleger4 e seus colaboradores. Maria Elizabeth R. dos Santos comentou que essa experiência surgiu a partir da indicação do Professor Carlos Paes de Barros, para que ela procurasse a orientação da psicóloga argentina Carmen Lent, contratada pela PUC-Rio naquele período (Santos, 2012, depoimento).

Carmen Lent foi aluna de Bleger e Enrique Pichón-Rivière5. Em 1967, Lent viajou para os Estados Unidos da América, onde fez um curso de dois anos num Centro de estudos instalado por Gerald Caplan, para treinamento em administração de saúde mental e psiquiatria comunitária e, em 1971, ela ofereceu na PUC-Rio um curso sobre intervenção em crise para os graduandos (Cerezzo, 2005).

O estilo da Carmen era de propor-me desafios, e ela me disse que as questões que eu queria responder implicavam em uma ida para Buenos Aires, para fazer um estágio num local que se chamava ‘Centro de Saúde Número 1’ – este foi o piloto dos Centros de Saúde argentinos. Essa instituição tinha uma visão de psicologia muito engajada e havia uma prática muito diferente da que os psicólogos brasileiros faziam. Eu era muito persistente e consegui esse estágio com o apoio do Eduardo Kalina – ele trabalhava com a questão das drogas, já naquela época, e era o chefe da equipe de adolescentes do Centro... Quando voltei ao Brasil, reuni um grupo de colegas que tinham um pouco das mesmas inquietações (Santos, 2012).

As orientações de Carmen Lent, o estágio no “Centro de Saúde Número 1” e o contato com as leituras e práticas dos psicólogos e psicanalistas argentinos cooperaram para as reflexões que levaram à criação do Setor de Psicologia Comunitária no Hospital Fernandes Figueira e da disciplina de ‘psicologia comunitária’ na graduação de psicologia na PUC-Rio.

O Setor de Psicologia Comunitária da PUC-Rio no Hospital Fernandes Figueira

Segundo Osuna (1998), o Setor de Psicologia Comunitária na PUC-Rio foi criado com o suporte do Departamento de psicologia e do Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), em 1971, e este se destacou entre os demais setores. Em 1972, foi implementado, no Instituto Fernandes Figueira, o setor para a execução do plano de saúde mental materno-infantil. Maria Elizabeth R. dos Santos indicou algumas pessoas que fizeram parte da equipe:

Uma era a Anna Carolina Lo Bianco6 que está na UFRJ, outra era a Vera Lemgruber7 que veio de Campinas, a Cristina Possas8, que também foi do Departamento de psicologia e a Flávia Sollero9, a única que ainda faz parte do Departamento (Santos, 2012).

Equipe do Setor de Psicologia Comunitária do IPA-PUC-RJ em 1972: Coordenadora: Maria Elizabeth L. Ribeiro; Psicólogas: Ana Maria Rebouças, Miriam Langenbach, Vera Lucia S. Mattos, Vera Lemgruber Garcia; Estagiárias: Anna Carolina Lo Bianco, Cristina A. Possas, Flávia S. Campos, Maria Adelaide Leonardo, Maria Ruth J. Souza (Garcia, 1975, p. 48).

A equipe pretendia levar o Setor de psicologia comunitária para o Hospital e, como lembrou Maria Elizabeth R. dos Santos, “preparamos um projeto que foi apresentado ao Instituto Fernandes Figueira, com o apoio da esposa do Professor Miguel Chalub10: ela era médica do Instituto Fernandes Figueira” (Santos, 2012). Garcia (1975) contextualizou como se deu a entrada da equipe no Instituto:

Em janeiro de 1972 foi realizado um acordo entre a direção do Departamento de Psicologia da PUC/RJ e a diretoria do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde, através do qual resultou um projeto para aplicação de um plano-piloto de higiene mental materno-infantil a ser instaurado naquele instituto; elaborado pelo Setor de Psicologia Comunitária do Instituto de Psicologia da PUC/RJ, a partir da verificação da necessidade de encontrar-se novas opções para o atendimento psicológico da população, opções estas que fossem mais adequada à realidade socioeconômica (Garcia, 1975, p. 48).

Esse trabalho não era somente com grupos de gestantes: chamava-se ‘Projeto de Higiene Mental Materno-Infantil’ e tinha uma proposta de grupo com gestantes, e uma segunda parte desse projeto era um trabalho com mães de bebês de até um ano de idade – que seria um trabalho de puericultura. [...] O trabalho com gestantes consistia em grupos nos quais o enfoque teórico era de grupo operativo: e esta atividade chegou a ser realizada. Já o trabalho com as mães na puericultura nunca aconteceu, porque as mães não procuravam (Santos, 2012).

Garcia (1975, p. 51) registrou que o projeto objetivava “assegurar melhores condições para o desenvolvimento e processamento da gestação e do parto”, favorecendo a relação mãe-feto e, consequentemente, cooperando na relação mãe-bebê e que, além do grupo com gestantes (nível direto), trabalhavam também com a equipe institucional (nível indireto). Segundo Garcia (1975, p. 51-52), a visão do trabalho era de um “atendimento na linha de prevenção primária”, e o mesmo encontrou algumas dificuldades, que foram o “alto índice de absenteísmo das gestantes aos grupos e a falta de aceitação do trabalho por parte da equipe médica do hospital” (p. 52). Apresentaremos os trabalhos com gestantes e com a equipe institucional.

O Trabalho com Gestantes e com a Equipe Institucional

Lo Bianco (1981) analisou o trabalho realizado no Projeto de Higiene Mental ­Materno-Infantil, destacando quão distinta foi a atividade em relação ao que estava sendo feito na época, tendo em vista: a execução de um trabalho fora dos espaços tradicionais da clínica; o atendimento de uma população diferente daquela que costumava receber suporte psicológico; e a diferença cultural entre os atendidos e aqueles que atendiam. Ela indicou, ainda, a inspiração que Caplan e Hochmann, autores da psiquiatria preventiva e comunitária, proporcionava naqueles que intentavam uma prática para além dos ambientes tradicionais de atendimento psicológico. Lo Bianco (1981, p. 152) registrou que considerava que “nesse período, constituía-se uma ‘primeira fase’ no desenvolvimento da Psicologia e da Psiquiatria Comunitárias”. Ela relatou como a atividade de grupo com as gestantes funcionava:

Nos grupos, a grávida, após uma longa entrevista, quando lhe eram explicados os motivos principais das sessões, reunia-se com mais algumas gestantes, que, sentadas em círculo, eram alvo da atenção de duas profissionais (a coordenadora e a observadora do grupo), durante uma hora consecutiva. Todas as semanas eram as mesmas psicólogas que as atendiam, no mesmo horário, esperando que a gestante falasse sobre suas ansiedades, perguntasse e esclarecesse suas dúvidas e se queixasse dos problemas que a afligiam em casa e no hospital. Através destas discussões, as psicólogas procuravam transmitir-lhes “informações importantes sobre gravidez, parto e puerpério” que [...] era um dos objetivos consignados pelo Plano (Lo Bianco, 1981, p. 169).

Quanto aos referenciais teóricos da atividade com gestantes, Lo Bianco (1981, p. 154) destacou que, no projeto “autores como Bowlby, Spits, Jarlow, Prugh, Woolf, Gessel e Amatruda são citados para afirmar a indissociabilidade entre uma boa relação mãe-filho e a saúde mental da criança e do futuro adulto”. Além desses autores, Maria Elizabeth R. dos Santos (2012) indicou outros referenciais que nortearam o trabalho:

Para fazer o grupo, o referencial era de grupo operativo. Os conceitos que usávamos eram da psicanálise, trabalhávamos muito com o Bowlby, usávamos a clínica um pouco menos, enfim, a parte psicanalítica, alguns conceitos e seus principais autores. Acredito que, de modo geral, utilizávamos grupo operativo e teoria psicanalítica (Santos, 2012).

Lo Bianco (1981) descreveu parte de uma sessão, dando pista de como era o funcionamento dos grupos operativos com as gestantes. Percebemos que, nesse trecho, a intenção da coordenadora não era elucidar as dúvidas das gestantes participantes, mas fazê-las refletir sobre as ideias que traziam para o grupo.

Gest. 1. Ouvi dizer que torcer a fralda dá cólica no neném; quem me falou isso foi a cunhada da minha amiga. Não pode torcer, não é?

(Outras duas gestantes também ouviram falar e dizem que é.)

Coord. Por que vocês acham que daria?

Gests. 1 e 2. Porque todo mundo diz.

Coord. Será que torcer o soutien dá dor no peito?

Pausa.

Gest. 3 É verdade que tem que ferver a água que dá para a criança? Ouvi dizer que tem micróbio e que por isso é bom ferver.

Coord. Estamos vendo que dizem várias coisas para a gente. É preciso a gente se perguntar sobre essas coisas. Será que elas realmente são verdadeiras? Quando a gente se pergunta se deve ferver a água, a gente vê logo que sim porque ela tem micróbios. Mas qual a ligação que haveria entre torcer a fralda e a cólica do bebê? (Lo Bianco, 1981, p.178).

Em se tratando da descrição de um grupo operativo, esse trecho revelou tanto a tarefa externa do grupo (encontrar respostas para suas dúvidas), quanto a tarefa interna dele (lidar com a angústia de não ter suas dúvidas respondidas) (Pichón-Riviére, 2009). Nesse sentido, a diferença cultural entre as gestantes e a coordenação do grupo, destacada anteriormente por Lo Bianco, pareceu dificultar a passagem do grupo, de uma situação dilemática para uma situação dialética. Maria Elizabeth R. dos Santos analisou as dificuldades relativas ao trabalho com gestantes:

Quando os grupos começaram, reparamos algo curioso: tínhamos uma expectativa como todos os psicólogos têm: de que as mulheres falassem sobre as questões etc. Entrávamos no grupo e perguntávamos ‘Como é que está?’, ‘O que está acontecendo?’, ‘E você, o que acha?’, e a resposta era o silêncio. Isso não obrigatoriamente. Todas as sessões eram diferentes, mas havia um silêncio, uma dificuldade de levar adiante esse trabalho. A crítica que eu tinha era que não possuíamos o domínio de técnicas de grupo. Não se tratava apenas do fato de que não compreendíamos o linguajar dessas mulheres, era também porque, para trabalhar com o grupo, teríamos que saber trabalhar com grupos (Santos, 2012).

Essa autocrítica foi importante para promover a reflexão sobre o funcionamento dos grupos. Além disso, Maria Elizabeth R. dos Santos relembrou uma situação em que percebeu a dificuldade de lidar com alguns aspectos da teoria psicanalítica, nas situações que as gestantes traziam para o grupo.

Usávamos muito Bowlby, Melanie Klein e... Winnicott, autor que veio suavizar essas teorias depois. No meu início, estavam as teorizações pesadas de Melanie Klein,... e já o Bowlby falava das exigências, por exemplo, de que, se você viajasse, poderia estar fazendo um mal irreparável ao seu filho: esse era o Bowlby que era divulgado. Havia uma mulher que dizia que deveria deixar o filho com a mãe, porque teria que voltar a trabalhar quando tivesse o bebê; e nós da equipe ficávamos indagando isso com ela, não diretamente, mas utilizando uma técnica operativa mal feita. Então acontecia que, logo depois que as mulheres tinham os bebês, elas voltavam ao grupo para falar um pouco. Essa mulher voltou e começou a falar sobre como conseguiria não trabalhar fora, só trabalhar em casa e, de repente, ‘me caiu a ficha’ de que eu tinha colocado uma culpa naquela mulher, e não era por aí. Nessa ocasião, eu estava grávida (Santos, 2012).

Sobre o trabalho com a equipe institucional, o relato deste foi muito breve, mas revelou como ele era valorizado, visto que, na ausência das mães, o atendimento de puericultura era oferecido para a equipe médica, como a entrevistada comentou: “quando chegava no dia da puericultura, eu realmente me sentia dona, pois sempre tinha um pediatra ou outro profissional que ia conversar e perguntar alguma coisa” (Santos, 2012).

O desfecho do trabalho promoveu desdobramentos derivados das atividades realizadas até então: o trabalho psicológico com crianças e o atendimento psicológico na área hospitalar, que foram por algumas participantes do grupo de psicólogas.

O motivo do término desse trabalho foi porque o Hospital Fernandes Figueiras, que é um local de estágio para pós-graduandos, mudou de direção e, quando o novo diretor descobriu que tínhamos alunos de graduação fazendo estágio lá, ele disse que não podia. A equipe se dividiu e uma parte foi para uma instituição chamada ‘Obra do Berço’, que é uma creche, e outra parte foi para o ‘Hospital da Lagoa’ fazer um trabalho na cirurgia cardíaca. Enfim, o desdobramento desse primeiro trabalho foi a criação de novos trabalhos (Santos, 2012).

A Disciplina de “Psicologia Comunitária” na PUC-Rio

No início da década de 1970, contavam menos de dez anos de reconhecimento da profissão de psicólogo – a mesma foi reconhecida por decreto em 1962 –, e esta vivia um período ainda incipiente de desenvolvimento, visto que as principais áreas da psicologia eram a clínica, a escolar e a do trabalho, fazendo-se necessária uma ampliação do campo de ação do psicólogo.

Em maio de 1972, o Carlos Paes de Barros me disse que estava saindo da direção [da psicologia da PUC-Rio] em março de 1973 e que, se eu quisesse ministrar uma disciplina que sustentasse as minhas ideias, que eu começasse a oferecer em agosto de 1972, porque, caso contrário, possivelmente o novo diretor não iria me aceitar (Santos, 2012).

Foi na busca por uma psicologia mais abrangente, que alguns referenciais teóricos utilizados no Setor de psicologia comunitária do Hospital Fernandes Figueira, como a psicologia institucional de Bleger e a psiquiatria preventiva de Caplan, cooperaram para nortear o desenvolvimento da disciplina de ‘psicologia comunitária’, ministrada por Maria Elizabeth R dos Santos na PUC-Rio em 1972.

Havia um livro, que foi publicado na época, que foi muito importante chamado Psico-higiene e psicologia institucional do Bleger. Esse livro falava de novos campos e uma abertura quase que infinita de campos de psicologia. Por isso, a visão da psicologia comunitária da disciplina que ministrei na PUC-Rio estava mais perto da visão que o livro apresentava, e de questões que o livro colocava, do que da visão da psicologia comunitária atualmente... Um referencial teórico-metodológico importante para mim na época foi o livro do Caplan sobre o modelo de psiquiatria preventiva. Esse foi um modelo que veio com muita força na primeira etapa da reforma psiquiátrica brasileira (Santos, 2012).

Vale destacar que o terceiro capítulo do livro de Bleger supracitado, inspirador da disciplina de psicologia comunitária, versava sobre o psicólogo na comunidade utilizando a psico-higiene (Bleger, 2007).

Quanto ao motivo [da criação da disciplina de psicologia comunitária], eu diria que foi o interesse em uma psicologia mais abrangente, uma psicologia que chegasse até a comunidade, às pessoas de um modo geral, fora daquele modelo tradicional de consultório. Eu acreditava que a psicologia teria alguma coisa a oferecer, mas precisava abrir-se um pouco mais (Santos, 2012).

O Funcionamento da Disciplina de “Psicologia Comunitária”

A disciplina de psicologia comunitária da PUC-Rio foi ministrada por um período de doze anos, sempre teve turmas cheias e parecia ter certo prestígio, tendo em vista o horário nobre que ocupava todos os semestres na grade do Departamento.

Essa cadeira foi ministrada de 1972 até 1984, todos os semestres. Ela tinha em média trinta alunos por turma. Algumas cadeiras são colocadas em horários estratégicos, então todos os alunos fazem. O horário estratégico do Departamento naquela época era de dez ao meio-dia, na segunda e na quarta. Então, eu acredito que havia, por parte do Departamento, um apoio às ideias que estavam sendo colocadas, visto que essa cadeira era sempre encaixada num horário nobre do Departamento... Ela funcionava como as demais disciplinas, com quatro horas de aulas semanais, e era necessário que a cada semestre eu a mudasse um pouco, acrescentasse mais coisas, e tirasse algumas outras que eu achava que não eram o caso. Ela era ministrada para o quarto ou quinto período (Santos, 2012).

Sendo uma disciplina que objetivava apresentar novas formas de atuação do psicólogo, a sua inserção no meio do curso de graduação em psicologia propiciava formação para turmas mais ‘maduras’. Quanto ao conteúdo da disciplina, a entrevistada relatou que:

Todo semestre escolhíamos um tema: a turma escolhia um tema e trabalhávamos numa pesquisa de campo. Então, uma parte da avaliação era uma prova e outra parte da avaliação era esse trabalho feito pela turma inteira. Uma vez o tema foi a ‘novela como um recurso de saúde a doença mental’, então foram entrevistadas algumas pessoas: o Boni, a Janete Clair e o Dias Gomes, sendo utilizado um roteiro, uma entrevista semiaberta, com questões que versavam sobre: ‘O que é a novela, afinal? É pão e circo para o povo ou é alguma coisa que pode conscientizar?’... Teve uma vez um trabalho que eu achei muito interessante: quando começaram a ter psicólogos nos ambulatórios de saúde mental, dois ou três anos depois, foram feitas entrevistas com os psicólogos que tinham começado a atuar em saúde mental... Teve um tema que foi interessante: escolhemos fazer um trabalho sobre a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM): eu tinha saído da FUNABEM e não conseguíamos autorização de jeito nenhum. A Universidade Santa Úrsula conseguiu, e acabei descobrindo algo que não sabia: se você tivesse sido funcionário da FUNABEM e tivesse saído, você não entrava mais, por isso, que a turma não conseguia permissão. A FUNABEM era uma instituição com muitos problemas, que depois fechou (Santos, 2012).

As temáticas pesquisadas na disciplina de psicologia comunitária da PUC-Rio se revestiam de um caráter de análise de problemas sociais, como a função das novelas, o papel dos psicólogos em ambulatórios de saúde mental e o trabalho realizado pela FUNABEM. Ainda que não propiciasse intervenção, tais pesquisas se constituíam como uma aproximação da realidade sociocultural de nosso povo, possibilitando a reflexão sobre novos modos de agir da psicologia.

Em 1985, a partir do comentário de um aluno de que cada vez mais eu estava falando de saúde, essa cadeira parou de existir, e passou a ter o nome de ‘psicologia e saúde’: eu apresentava vários campos na cadeira, e chamava pessoas que estavam fazendo trabalhos em psicologia e comunicação. Enfim, várias áreas de acordo, um pouco, com a gama de possibilidades que o livro do Bleger abria” (Santos, 2012).

Maria Elizabeth R. dos Santos ministrou uma disciplina de ‘psicologia comunitária’ que, inicialmente, trouxe discussões sobre a sociedade e os novos modos de ação do psicólogo e, com o passar do tempo, a disciplina se caracterizava, cada vez mais, como uma ‘psicologia da saúde’.

Considerações Finais

A criação do Setor de psicologia comunitária no Hospital Fernandes Figueira teve forte influência da psicologia comunitária e da psiquiatria preventiva produzidas nos Estados Unidos da América, como da psicologia social argentina: a psicanalista Carmen Lent, que se formou no Centro de Treinamento de Saúde Mental de Caplan, o pai da psiquiatria preventiva, cooperou no aperfeiçoamento profissional de Maria Elizabeth R. dos Santos, e esta última destacou a importância da contribuição teórica de Caplan para a atividade com gestantes, assumindo o caráter preventivo deste.

Apesar de o trabalho não atender as gestantes na comunidade em que viviam, o perfil socioeconômico delas era semelhante a um dos públicos-alvo mais comuns nos trabalhos de psicologia comunitária – mulheres de baixa renda. Levando em consideração as similaridades do trabalho do psicólogo comunitário nos Estados Unidos da América nos Centros de Saúde Mental Comunitária, na década de 1960, e a atividade com gestantes realizada no Setor de psicologia comunitária no Hospital Fernandes Figueira, em 1972, podemos indicar que houve uma prática de psicologia comunitária na PUC-Rio na década de 1970, ainda que, nas décadas seguintes, esse tipo de atividade estivesse sendo creditado ora como psicologia da saúde, ora como psicologia hospitalar.

Vale indicar, ainda, que uma das primeiras publicações em que o termo ‘psicologia comunitária’ apareceu foi no artigo de 1975, de autoria de Vera Lemgruber Garcia, intitulado ‘Psicologia preventiva: uma experiência na cidade do Rio de Janeiro’: no artigo, a autora apresentou o Projeto de Higiene Mental Materno-Infantil realizado pelo Setor de psicologia comunitária da PUC-Rio no Hospital Fernandes Figueira em 1972, capitaneado por Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos (GARCIA, 1975).

A atividade com gestantes realizada no Setor de psicologia comunitária no Hospital Fernandes Figueira em 1972, parece ter inspirado outras práticas na PUC-Rio, como o trabalho de atendimento psicológico realizado em favela, no final da década de 1970, proposto a partir do interesse das psicólogas Regina Landin e Vera Lemgruber (Landin & Lemgruber, 1980). O atendimento em saúde mental e as ações de psicologia social fazem parte de algumas práticas tradicionais de psicologia comunitária, e acreditamos que seria importante identificar essas atividades em outras instituições que foram pioneiras na psicologia comunitária no Brasil e no mundo.

Referências

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Recebido: 15/07/2016

Última revisão: 02/05/2017

Aceite final: 25/05/2017

Sobre o autor:

Julio Cesar Cruz Collares-da-Rocha: Psicólogo. Mestre e Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Pós-Doutorado em Psicologia pela UFRRJ. É professor adjunto do Mestrado e da Graduação em Psicologia da UCP. Realiza pesquisas nas áreas de psicologia social, com ênfase na teoria das representações sociais, de psicologia comunitária e de história da Psicologia com os temas comunidade, religião, educação, políticas públicas e saúde. E-mail: juliorocha@gmail.com


1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico (CNPq) - Brasil.

2 Endereço de contato: Universidade Católica de Petrópolis - Mestrado em Psicologia. Rua Benjamin Constant, 213 / 3º andar - Centro - Petrópolis, RJ, Brasil. CEP 25610-130. E-mail: juliorocha@gmail.com

3 Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos possui graduação em Psicologia pela PUC-Rio, é doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professora assistente da PUC-Rio.

4 José Bleger foi um um psiquiatra e psicanalista argentino, conhecido pelos trabalhos de psicohigiene e psicologia institucional

5 Enrique Pichón-Rivière foi um psiquiatra e psicanalista suiço naturalizado argentino, conhecido pelos trabalhos de psicologia social e de grupos operativos.

6 Anna Carolina Lo Bianco Clementino é graduada em Psicologia pela PUC-Rio, Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela mesma instituição e doutora em Sociologia da Saúde Mental na University of London. Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

7 Vera Lemgruber possui graduação em Psicologia PUC-Rio e em Medicina pela FTESM, além de mestrado pela PUC-Rio. Foi professora do Departamento desta Faculdade e atualmente atua como Médica psiquiatra.

8 Cristina de Albuquerque Possas é pesquisadora Titular e Coordenadora da Pós-Graduação Stricto Sensu em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas, IPEC/FIOCRUZ.

9 Flavia Sollero-de-Campos possui graduação, mestrado e doutorado em Psicologia pela PUC-Rio. Atualmente é Professora assistente desta Universidade.

10 Miguel Chalub possui especialização em Psiquiatria, em Neurologia, Eletrofisiologia e Comportamento pela PUC-Rio, Mestrado e Doutorado em Psiquiatria e Saúde Mental pela UFRJ. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Médico.

DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i2.504