Estresse Traumático Secundário em Psicólogos
Secondary Traumatic Stress in Psychologists
Estrés Traumático Secundario en Psicólogos
Elisa Kern de Castro1
Thaís Massom
Patrícia Dalagasperina
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Resumo
Este estudo avaliou a relação entre dimensões de Estresse Traumático Secundário (trauma, antecedentes, personalidade e consequências) e características do trabalho de psicólogos que atuam na área da saúde. Participaram 138 psicólogos que responderam de forma on-line três questionários sobre estresse pós-traumático e trauma secundário. Para análise dos dados, utilizou-se o SPSS. Os resultados demonstraram que a escala de personalidade do ETS teve correlação negativa e significativa, porém de intensidade fraca, com a idade e horas trabalhadas. Observou-se também que é possível que os profissionais mais jovens apresentem maior risco para ETS quando combinadas às características positivas de personalidade. Profissionais com características de empatia, satisfação, capacidade de compreensão e desafio podem se sentir envolvidos e motivados com seu trabalho. Desta forma, os aspectos positivos de personalidade podem ser um fator que os torna vulneráveis ao adoecimento.
Palavras-chave: transtorno de estresse pós-traumático, estresse traumático secundário, psicologia
Abstract
This study investigated the symptoms of Secondary Traumatic Stress (STS) and working characteristics of psychologists from the health area. A total of 138 psychologists participated of this research answering three online questionnaires about post-traumatic stress disorder and secondary trauma. Data analysis was carried out using SPSS (Statistical Package for the Social Sciences). The results showed that the STS personality scale had significant correlation with age and hours worked. We observed that it is possible that younger professionals pose a higher risk for STS when combined with the positive characteristics of personality. Professionals with characteristics such as empathy, satisfaction, ability to understand and challenge can feel involved and motivated with their work. Therefore, the positive personality aspects may be a factor that makes them vulnerable to STS.
Keywords: post-traumatic stress disorder, secondary traumatic stress, psychology
Resumen
Este estudio evaluó la relación entre las dimensiones del Estrés Traumático Secundario (trauma, antecedentes, personalidad y consecuencias) y los rasgos laborales de psicólogos que trabajan en el área de la salud. Participaron 138 psicólogos que respondieron, de manera on-line, tres cuestionarios sobre estrés postraumático y trauma secundario. Para el análisis de datos se utilizó el SPSS. Los resultados mostraron que la escala de personalidad del ETS tuvo una correlación negativa y significativa, aunque de baja intensidad, con la edad y las horas trabajadas. Se observó también que es posible que los profesionales más jóvenes presenten más riesgo de ETS cuando se combinan con los rasgos positivos de personalidad. Profesionales con rasgos de empatía, satisfacción, capacidad de comprensión y desafío pueden sentirse más implicados y motivados con su trabajo. Así, los aspectos positivos de la personalidad pueden ser un factor que les deje vulnerables a la enfermedad.
Palabras clave: trastorno de estrés postraumático, estrés traumático secundario, psicología
O Estresse Traumático Secundário (ETS) é considerado uma síndrome ocupacional originária do estresse, provocada pela exposição a incidentes que outra pessoa experiencia e que gera sintomatologia de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) similar à da vítima primária do trauma (Figley, 1995). Resulta do conhecimento de um evento traumatizante significativo experimentado por outro e da tentativa de querer ajudar uma pessoa em sofrimento por trauma, com consequências comportamentais e emocionais para o indivíduo. (Figley, 1995, 1998; Moreno-Jimenez et al., 2004a).
Os critérios diagnósticos do TEPT foram modificados ao longo das diferentes edições do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) numa tentativa de melhorar a compreensão das características dos transtornos, e de diferenciá-lo de outros, por exemplo, o Transtorno de Estresse Agudo (Sbardelloto, Schaefer, Lobo, Caminha, & Kristensen, 2012). Na última versão do DSM-V, a definição de trauma sofreu modificações: a exigência de que o evento traumático fosse vivenciado pelo próprio indivíduo, descrita no DSM-IV, foi expandida (Araujo & Lotufo Neto, 2014). Assim, se aceita que o TEPT possa se desenvolver em pessoas que souberam de algum evento traumático ocorrido com familiares, amigos próximos, ou por quem é frequentemente exposto a detalhes aversivos de eventos traumáticos. Com a ampliação do conceito do TEPT, pode se considerar que o DSM-V abrange, também, o ETS. A síndrome do ETS desenvolve-se com frequência entre trabalhadores que apresentam maior comprometimento e preocupação com a qualidade do trabalho que exercem (Figley, 1995).
O impacto do ETS na vida dos profissionais pode repercutir nas seguintes áreas: cognitiva (diminuição de concentração, baixa autoestima, desorientação), emocional (ansiedade, culpa, medo, desamparo, depressão), comportamental (impaciente, irritável, problemas de sono, mudança de hábitos alimentares), relações interpessoais (desconfiança e intolerância), físico/somático (ritmo cardíaco acelerado, dificuldades em respirar, tonturas), profissional (baixa moral, baixa motivação, obsessão com detalhes, evitação de tarefas, apatia) (Oliveira, 2008). Embora o ETS se manifeste em trabalhadores das mais variadas áreas, algumas especialidades profissionais poderiam ser mais afetadas, tais como médicos, enfermeiros, bombeiros e policiais (Kintzle, Yarvis, & Bride, 2013; Meda, Moreno-Jiménez, Palomera, Arias, & Vargas, 2012). Identificou-se que 8% dos profissionais da saúde que atuam em hospitais militares possuem sintomatologia de ETS de moderada a alta (Kintzle, Yarvis, & Bride, 2013).
Neste estudo, buscou-se compreender o ETS em psicólogos, já que pouco se estuda essa profissão e existem evidências de que pessoas que estão em contato direto e frequente com vítimas de trauma, expostas a reações emocionais e físicas do traumatizado, podem experienciar sintomas semelhantes aos dele (Figley, 1998). Os psicólogos são submetidos constantemente a histórias traumáticas durante sua prática profissional (Devilly, Wright, & Varker, 2009; Robinson-Keilig, 2014) e o impacto disso para sua saúde mental é pouco explorado. No seu cotidiano, o psicólogo ouve relatos de traumas, tragédias e perdas, podendo deixá-lo sobrecarregado emocionalmente e acarretar sentimentos de medo, dor e sofrimento, semelhante aos vivenciados pelos seus pacientes (Devilly, Wright, & Varker, 2009; Shoji et al., 2015). Alguns profissionais podem ser capazes de tolerar a exposição a fatores de estresse sem manifestações negativas, enquanto outros são menos tolerantes a essa exposição (Simpson & Starkey, 2006). Os sintomas podem se manifestar nestes profissionais por meio de pensamentos intrusivos, pesadelos, evasão e excitação, bem como mudanças em suas relações com seus familiares, amigos e pessoas próximas. Caso o profissional tenha dificuldade de lidar com seus próprios traumas, estes podem ser exacerbados pela exposição aos relatos de traumas parecidos (Moreno-Jiménez, Benadero, Carvajal, & Muñoz, 2008; Ghahramanlou & Brodbeck, 2000). Num estudo com 320 psicoterapeutas, Robinson-Keilig (2014) verificou que as pessoas que apresentavam altos níveis de ETS tinham baixa satisfação nas relações interpessoais, dificuldades em ter intimidade com o outro e padrões de comunicação que envolviam dificuldades de ter uma comunicação construtiva, evitando falar dos problemas. Shoji et al. (2015) referem que índices altos de síndrome de Burnout predizem o ETS numa amostra de psicólogos clínicos e assistentes sociais. Os psicólogos constituem uma categoria profissional vulnerável ao adoecimento por ETS, uma vez que suas atividades envolvem a habilidade empática e a escuta constante de histórias traumáticas vivenciadas pelos pacientes (Figley, 1995).
Considerando o exposto, o presente trabalho pretende investigar o ETS (sintomas de trauma, antecedentes, personalidade e consequências) e sua relação com variáveis relacionadas ao trabalho e às características sociodemográficas (carga horário, tempo de experiência, idade e número de horas trabalhadas por semana) em psicólogos que atuam na área da saúde.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 138 psicólogos que atuam na área da saúde em diferentes instituições do país (consultórios, centros de saúde e hospitais). A seleção da amostra ocorreu inicialmente por conveniência e seguiu no formato “bola de neve”. A pesquisa foi divulgada de forma on-line através de redes sociais (Facebook e Linkedin) e de listas de correio eletrônico das pesquisadoras. Para participar, os profissionais deveriam ter ao menos três meses de experiência como psicólogo na área da saúde.
Instrumentos
Para a realização deste trabalho, foram utilizados três instrumentos, a saber: Questionário de Dados Sociodemográficos e de Eventos Estressores: levantou informações acerca da caracterização da amostra, bem como as possíveis experiências traumáticas ao longo da vida. O instrumento é composto por dez itens sociodemográficos, tais como: idade, sexo, entre outros. Em relação aos eventos estressores, o instrumento contou com sete itens, como: Você se envolveu em algum acidente? Algum membro da sua família possui uma doença grave?
Cuestionario de Estrés Traumático Secundario (CETS): criado por Moreno-Jiménez, Morante, Rodríguez e Garrosa (2004b), é composto por sessenta e três itens que medem a síndrome de estresse traumático secundário a partir de quatro escalas independentes: 1) Síndrome de trauma secundário: fadiga emocional, sintomatologia traumática secundária e mudanças de crenças/valores; 2) Antecedentes: carga laboral e temporal, pressão social, tarefa traumática e satisfação por ajudar; 3) Variáveis de Personalidade: compreensibilidade, desafio, empatia e sentido de humor; e 4) Consequências do ETS: físicas, sociais e organizacionais. As questões estão em formato de respostas tipo Likert com quatro alternativas que variam de: discordo totalmente (1) a concordo totalmente (4). A tradução e retradução do espanhol para o português foram feitas por técnicos bilíngues para verificar a adequação do material, e a análise de confiabilidade com uma amostra de profissionais da saúde foi muito boa, variando de 0,90 a 0,70 (Dalagasperina, 2015). A análise fatorial exploratória e análise confirmatória do instrumento confirmou a independência das quatro escalas que compõem o CETS (Dalagasperina, no prelo).
Post-traumatic Stress Disorder Checklist - Civilian Version (PCL-C): instrumento de autorrelato que contém 17 itens paralelos aos critérios estabelecidos pelo DSM-IV para diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático. Os participantes deviam responder se apresentavam as queixas relatadas em uma escala likert de 1 (nada) a 5 (muito). O instrumento está divido em três dimensões: 1) Reexperiência do Trauma; 2) Evitação; 3) Excitabilidade aumentada. Havia duas maneiras para avaliar o PCL-C. A primeira, por agrupamento. O indivíduo apresentava TEPT se pontuasse ao menos um item do critério B (questões 1-5), três itens do critério C (questões 6-12) e dois itens do critério D (questões 13-17). Considerava-se presente o sintoma quando a resposta pontuava três ou mais. A segunda forma, através de um ponto de corte 40 (Schwartz, et al., 2012). Em um estudo feito nos Estados Unidos sobre as propriedades psicométricas deste instrumento, apresentava um índice de consistência interna de 0,87 (Ruggiero, Del Ben, Scotti, & Rabalais, 2003). No Brasil, o instrumento foi validado em indivíduos que vivenciaram acidentes de trânsito (Bringhenti, Luft, & Oliveira, 2010). Sua equivalência semântica para o português foi constatada por Berger, Mendlowicz, Souza e Figueira (2004) e utilizada na presente pesquisa.
Delineamento e procedimentos de coleta de dados e éticos
Este estudo tem delineamento transversal, correlacional, e faz parte de um projeto maior que investiga ETS em diferentes profissionais da saúde, como médicos, enfermeiras, técnicas de enfermagem, psicólogos, nutricionistas, entre outros. Neste trabalho, optou-se por aprofundar os dados referentes aos psicólogos que atuam na saúde, em diferentes locais, pois estudos que investigam ETS nesta população são escassos.
A divulgação da pesquisa para o recrutamento dos participantes foi realizada por meio das redes sociais (Facebook) e através da lista de correio eletrônico dos pesquisadores, em que se pedia para passar a outras pessoas conhecidas (técnica bola de neve). No link que remetia à página da pesquisa, constava, na primeira página, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em que os participantes deveriam marcar o item “sim” para consentir sua participação no estudo. Nas páginas seguintes, foram apresentadas as questões que visavam identificar os dados sociodemográficos e os instrumentos, e, em seguida, um agradecimento aos participantes do estudo. O tempo aproximado para responder à pesquisa era de 20-30 minutos. O projeto maior foi aprovado pelo Comitê de Ética da [instituição omitida] sob o número CEP 13/165 e atendeu às exigências éticas contempladas na Resolução 466/2012 (Brasil, 2012).
Análise de Dados
Foi realizada através do programa SPSS 22.0. Foram feitas análises descritivas dos resultados (médias e desvio padrão; frequências e porcentagens). Posteriormente, análises de correlação de Pearson foram efetuadas para investigar possíveis associações entre as variáveis sociodemográficas e possíveis experiências traumáticas ao longo da vida dos psicólogos que atuam no campo da saúde. Por fim, foram feitas análises de comparação de médias (teste t) para comparar os índices de ETS entre tempo de experiência no trabalho atual, tempo de experiência como profissional da saúde, número de horas de trabalho por semana e estado civil. Foi considerado o nível de significância de p<0,05.
Resultados
Características da Amostra
A maioria dos participantes do estudo 94,20% (n=130) eram mulheres, com idades que variaram entre 22 e 68 anos, e média de 33,77 anos (DP=9,65). Destes, 23,9% (n=33) exerciam algum tipo de função diretiva. Mais da metade (79,7%) possuía contrato de trabalho fixo, seguido de contratos temporários (19,6%), e apenas um participante (0,7%) atuava como voluntário. O tempo de experiência como psicólogo foi em média de 10,20 anos (DP=8,48), o tempo de atuação na área da saúde de 7,60 anos (DP=7,25), e a média de horas trabalhadas na semana foi de 34,34 (DP=13,29).
Análises Descritivas
Com relação aos eventos estressores vivenciados pelos psicólogos, não necessariamente relacionados ao seu trabalho, diferentes situações foram relatadas. O evento estressor mais relatado foi exposição à situação que envolvia risco de morte. Os demais detalhes estão na tabela 1.
No resultado total do PCL-C, a média de pontos obtidos foi de 32,08 (DP=4,83), o que mostra que não há indícios de sofrimento por sintomatologia de TEPT nesta amostra (<40).
Tabela 1
Eventos estressores vivenciados (n=138).
Presença de Eventos Estressores |
nº |
(%) |
Exposição à situação que envolva risco de morte |
53 |
38,4 |
Falecimento de membro da sua família ou alguém próximo |
42 |
30,4 |
Presença na ocasião da morte de uma pessoa |
27 |
19,6 |
Doença grave na família |
26 |
18,8 |
Outro evento traumático |
24 |
17,4 |
Envolvimento em algum acidente |
16 |
11,6 |
Envolvimento em assalto |
16 |
11,6 |
Doença grave no próprio profissional |
3 |
2,2 |
Análises Comparativas
Compararam-se os níveis de ETS entre aqueles psicólogos que tiveram algum outro evento estressor não relacionado ao trabalho com os que não tiveram. Os resultados, conforme tabela 3, mostraram que não houve diferenças significativas entre os grupos. A Tabela 2 apresenta as médias e os desvios padrões dos eventos estressores e as escalas do CETS.
Tabela 2
Médias e desvio padrão dos eventos estressores (n=138).
Antecedentes |
t |
Síndrome |
T |
Personalidade |
T |
Consequências |
T |
|||
Eventos Estressores |
nº |
M (DP) |
M (DP) |
M (DP) |
M (DP) |
|||||
Acidente |
Sim |
16 |
56,94 (6,24) |
-2,060* |
36,88 (4,90) |
-1,563 |
48,44 (5,44) |
-2,057 |
17,97 (4,57) |
-1,540 |
Não |
122 |
53,84 (5,59) |
34,40 (6,07) |
45,19 (6,00) |
19,94 (6,42) |
|||||
Falecimento de terceiros |
Sim |
96 |
55,26 (6,50) |
-1,452 |
35,59 (5,36) |
-1,180 |
45,93 (5,80) |
-0,468 |
18,95 (5,59) |
-1,218 |
Não |
42 |
53,73 (5,33) |
34,29 (6,22) |
45,41 (6,12) |
17,87 (4,46) |
|||||
Doença grave na família |
Sim |
26 |
54,35 (5,48) |
-0,132 |
36,77 (5,30) |
-1,932 |
47,27 (6,02) |
-1,544 |
19,65 (4,27) |
-1,670 |
Não |
111 |
54,18 (5,48) |
34,30 (6,00) |
45,29 (5,86) |
17,90 (4,90) |
|||||
Assalto |
Sim |
16 |
55,25 (5,86) |
-0,782 |
34,31 (8,31) |
0,266 |
45,75 (7,49) |
-0,130 |
17,68 (4,51) |
0,446 |
Não |
122 |
54,06 (5,72) |
34,74(5,65) |
45,54 (5,83) |
18,26 (4,90) |
|||||
Presenciar a morte de outro |
Sim |
27 |
53,85(5,09) |
0,347 |
34,81(4,45) |
-0,122 |
46,00 (5,88) |
-0,418 |
17,81 (5,11) |
00,455 |
Não |
111 |
54,28 (5,90) |
34,66 (6,26) |
45,46 (6,06) |
18,29 (4,79) |
|||||
Exposição a situação com risco de morte |
Sim |
53 |
55,34 (5,80) |
-1,869 |
35,53 (6,48) |
-1,306 |
47,24 (6,61) |
-2,649* |
18,89 (5.30) |
-1,329 |
Não |
85 |
53,48 (5,60) |
34,16(5,63) |
44,52 (5,38) |
17,76 (4,50) |
Nota: *p<0,05.
Obs: variável doença grave no próprio profissional não foi calculada em função de apenas três profissionais terem passado pela experiência.
Análise de Correlações
Foram feitas correlações de Pearson para examinar as possíveis associações entre algumas variáveis sociodemográficas e laborais (idade atual, tempo de experiência no trabalho atual, tempo de experiência como profissional da saúde, número de horas trabalhadas por semana), as escalas do CETS (antecedentes, síndrome, personalidade e consequências), e as dimensões do PCL-C. Foi encontrada correlação negativa e significativa de intensidade fraca entre a personalidade e a idade atual dos psicólogos participantes (r= -0,192; p<0,05), ou seja, verificou-se que características positivas de personalidade estão menos presentes nos profissionais mais novos. Neste estudo, consideram-se como características positivas de personalidade as baixas pontuações na escala Personalidade que mensura a compreensibilidade (propensão a considerar a realidade natural e interpessoal como estável e previsível), e altas em empatia (compartilhar os sentimentos ao se pôr no lugar do outro), desafio (perceber as mudanças como uma possibilidade para melhorar as próprias competências) e sentido do humor (atitude e estado de ânimo diante da vida). Encontraram-se também correlações de intensidade fraca entre a escala de personalidade e o número de horas de trabalho semanal (r= 0,184; p<0,05), indicando que quanto mais características positivas de personalidade, mais horas semanais a pessoa trabalhava. Com relação às correlações das escalas que medem ETS, verificaram-se: correlações positivas e moderadas entre escala de personalidade e escala de antecedentes (r=0,520; p<0,001); escala de personalidade e escala de sintomas traumáticos (r=0,673; p<0,001); e correlações positivas e fracas entre a escala de personalidade e escala de consequências (r=0,393; p<0,001). Esses resultados indicam que mais características positivas de personalidade estão relacionadas a mais antecedentes traumáticos, mais sintomas de trauma secundário e mais consequências relacionadas ao trauma. As demais correlações não foram significativas.
Discussão
Este estudo analisou os sintomas de ETS em psicólogos que atuam na área da saúde e a relação dos sintomas de ETS com a idade dos profissionais e o tempo de trabalho dos trabalhadores. Um dos principais resultados mostrou que a escala de personalidade do ETS teve correlação com a idade do profissional, o número de horas trabalhadas por semana e com as três escalas do CETS, antecedentes, síndrome e consequências.
A escala de personalidade inclui compreensibilidade, desafio, empatia e sentido de humor. O resultado indica que o trauma secundário pode se instalar em pessoas que apresentam características positivas de personalidade (Figley, 1995), ocorrendo principalmente entre os profissionais mais jovens (Moreno-Jiménez et al., 2008). A importância das características pessoais diante do trauma já é conhecida (Kadambi & Truscott, 2004). Após um evento estressor direto, as características pessoais são mais importantes na determinação de sintomas clínicos do que as características do próprio estressor traumático. Resultados semelhantes já haviam identificado a relação entre características positivas de personalidade e vulnerabilidade ou risco de apresentar sintomas de ETS em bombeiros (Moreno-Jiménez, Natera, Muñoz, & Benadero, 2006). Estudos empíricos têm apresentado evidências para compreender o ETS nos profissionais que ajudam pacientes traumatizados, incluindo psicoterapeutas (Robinson-Keilig, 2014), psicólogos clínicos e assistentes sociais (Shoji et al., 2015), porém utilizaram outros instrumentos que não contemplaram a avaliação das características de personalidade para o ETS.
Verificaram-se resultados importantes no que diz respeito à escala de personalidade, idade e horas de trabalho na semana. É possível que os profissionais mais jovens estejam em maior risco para o ETS quando combinadas às características positivas de personaliade. Além disso, profissionais com características de empatia, satisfação, capacidade de compreensão e desafio podem se sentir envolvidos e motivados com seu trabalho, o que pode ter relação com a maior carga horária semanal.
Embora neste estudo o tempo de experiência não tenha se correlacionado significativamente com o ETS, a idade apresentou uma correlação de intensidade fraca - quanto maior a idade dos psicólogos menor o risco de desenvolver ETS. Talvez não seja só a experiência profissional que esteja relacionada ao ETS, e sim uma questão de maturidade pessoal e profissional. Esse resultado pode estar relacionado à capacidade desses profissionais de perceberem suas necessidades, identificar o impacto da sua própria história e diferenciar estes fatos das necessidades dos pacientes (Fernandes & Maia, 2008; Figley, 1995). Como aponta a pesquisa de Kadambi e Truscott (2004), terapeutas com menos tempo de experiência com pacientes com traumas primários mostram níveis significativamente mais elevados de perturbações cognitivas e sintomas de ETS em comparação com terapeutas mais experientes. No estudo, a média de tempo de trabalho como terapeuta era de 8,26 anos, sendo que a minoria da sua amostra apresentou ETS. Em função da intensidade da correlação encontrada, esse resultado deve ser analisado com cautela.
Para este estudo, foi utilizado o PCL-C, que é o principal instrumento utilizado na literatura internacional para rastrear o TEPT. Os resultados indicaram que os índices de sintomatologia de TEPT nos psicólogos deste estudo estão dentro da normalidade. Esse fato pode estar associado a alguns fatores que são característicos da profissão do psicólogo, tais como a formação do profissional de psicologia, em que se discute que o sofrimento do próprio profissional diante de sua atuação, a prática de supervisão comum entre os psicólogos clínicos e a própria psicoterapia pessoal, bastante recomendada e difundida entre os psicólogos (Meira & Nunes, 2005).
Segundo essas autoras, a formação do psicólogo pode ser um fator de proteção diante do trauma, pois durante o curso de graduação em psicologia os alunos enfrentam situações que acarretam angústias e conflitos, que levam vários alunos durante sua formação a procurar a psicoterapia pessoal, além do incentivo a refletir sobre seu conhecimento teórico e prática supervisionada de várias situações vivenciadas nos diferentes campos da psicologia. Diferente da formação de outros profissionais da saúde, o psicólogo, durante a formação, consegue vivenciar diversas áreas da psicologia sob supervisão de um docente e interagir com diferentes profissionais, podendo descobrir e construir maneiras de lidar e tolerar emocionalmente variadas situações de exigências emocionais que se apresentam no cotidiano do trabalho.
Outra explicação para a falta de resultado significativo para o TEPT pode estar relacionada à prática desenvolvida pelo psicólogo dentro da saúde. Diferentemente do médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, que veem o sofrimento físico do paciente e intervêm nele, o psicólogo escuta as vivências traumáticas do paciente. Portanto, é possível que lidar com o trauma físico (ex: acidente, violência) e lidar com o relato do trauma possam ter diferentes consequências para o profissional que trata do indivíduo traumatizado.
Considerações Finais
A partir dos resultados encontrados, pode-se levantar a hipótese de que características positivas de personalidade do psicólogo, apesar de benéficas para o atendimento ao indivíduo traumatizado, também podem deixá-lo mais vulnerável para o ETS. A escala de personalidade teve relação principalmente com a idade do psicólogo e com a sobrecarga laboral, que pode interferir no processo de desenvolvimento do ETS. Em função dessas correlações encontradas terem intensidade fraca, é importante ter cautela com esses dados e buscar novos estudos que avaliem essa questão.
O estudo apresenta algumas limitações, em especial com respeito à coleta de dados que ocorreu de forma on-line e, portanto, por conveniência. Na amostra coletada, o número de homens foi inferior ao de mulheres, o que não permitiu investigar a prevalência de sintomas de ETS conforme o sexo.
Entende-se que essa pesquisa é o primeiro passo na tentativa de compreender sintomas de trauma secundário em psicólogos, uma profissão que exige saúde mental para melhor atender à população. Nesse sentido, ao identificar fatores relacionados ao trauma secundário, se poderá trabalhar de forma mais efetiva na prevenção de doenças e promoção da saúde dos psicólogos.
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Recebido: 02/12/2016
Última revisão: 09/03/2017
Aceite final: 15/03/2017
Sobre as autoras:
Elisa Kern de Castro: Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora e atual coordenadora executiva do PPG Psicologia da UNISINOS. Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade Autônoma de Madri, com estágio Pós-doutoral na Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisadora do CNPq. E-mail: elisa.kerndecastro@gmail.com
Thaís Massom: Graduada em Psicologia (UNISINOS). E-mail: thaismasson19@gmail.com
Patrícia Dalagasperina: Psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia (UNISINOS). E-mail:
pati-d@hotmail.com
1 Endereço de Contato: Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Avenida Unisinos 950, Bairro Cristo Rei, São Leopoldo, RS, Brasil, CEP 93022-000.
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i3.554