Primeiro Período de Medicina: Choque de Realidade e o Início da Construção da Identidade Médica
First Semester in Medical School: Reality Shock and The Beginning of Acquisition of Physician’s Professional Identity
Primer Periodo de la Facultad de Medicina: Choque Con la Realidad y el Inicio de la Construcción de una Identidad Médica
Mariana Santiago De Matos1
Camila Mamede Ferraço
Julia Carolina Antunes Rosa
Julye Azeredo Bastos
Paula Condé Brandão
Universidade Estácio de Sá (UNESA)
Resumo
Ao entrar na faculdade de Medicina, o estudante frequentemente possui expectativas que destoam daquilo que ele encontra. Esta pesquisa pretendeu identificar diferenças entre essas expectativas e a realidade, visando compreender mais sobre o início da construção da identidade médica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa guiada pelo Método de Explicitação do Discurso Subjacente, da qual participaram 77 alunos do primeiro período do curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá, tendo 67 deles respondido a um questionário e 10 sido entrevistados individualmente. A análise dos dados revelou que os participantes possuíam expectativas idealizadas sobre os colegas e sobre o curso, e a entrada na universidade gerou uma desidealização que parece representar um primeiro passo na aquisição da identidade médica. O contraste entre as expectativas sobre o curso e uma realidade mais árdua do que a esperada, porém, pode ser fonte de sofrimento psíquico, apontando para a necessidade de apoio ao aluno.
Palavras-chave: educação médica, Medicina, universidades, estudantes, subjetividade
Abstract
When initiating medical school, students often have expectations that do not match the reality they face. This research aimed to identify differences between these expectations and reality, seeking to understand more about the beginning of the construction of physician’s professional identity. It is a qualitative research, guided by the Underlying Discourse Unveiling Method, in which 77 students from the first semester of the medical school of Estácio de Sá University participated, 67 of whom answered a questionnaire and 10 were interviewed individually. Data analysis revealed that the participants had idealized expectations about their classmates and the program, and entering the university provoked a de-idealization which seems to be the first step towards the acquisition of the physician’s professional identity. The contrast between the expectations about the program and a more arduous reality than the expected, however, can precipitate psychological distress, which suggests the need for supporting the student.
Keywords: medical education, Medicine, universities, medical students, subjectivity
Resumen
Con la entrada en la escuela de medicina, a menudo los estudiantes cultivan expectativas lejanas de lo que se pasa en la realidad. Esta investigación tiene como objetivo identificar las diferencias entre estas expectativas y la realidad visando entender más sobre el inicio de la construcción de la identidad médica. Se trata de una investigación cualitativa guiada por el Método de Explicitación del Discurso Subyacente, en la cual partiparon 77 estudiantes del primer período del curso de Medicina de la Universidad Estácio de Sá, donde 67 de los participantes respondieron a un cuestionario y 10 de los participantes fueron entrevistados individualmente. El análisis de los datos reveló que los participantes tenían expectativas idealizadas de los futuros compañeros de clase y del curso, y que el acceso a la universidad crea la desidealización que parece representar el primer paso en la adquisición de identidad médica. Ese contraste entre las expectativas del curso y una realidad más dura de lo esperado, sin embargo, puede ser una fuente de angustia psicológica, que apunta a la necesidad de apoyo psicológico a los estudiantes.
Palabras clave: educación médica, Medicina, universidades, estudiantes, subjetividad
Introdução
Lidar com doenças e curá-las estão entre os maiores desafios da espécie humana desde seus primórdios. À grandeza desse desafio corresponde a valorização daqueles que, em diferentes épocas e culturas, têm sido responsáveis por tratar doentes e buscar curas.
Essa valorização já estava presente em períodos remotos, quando doenças eram concebidas como resultantes da ação de entidades sobrenaturais. Em muitas culturas, havia sacerdotes ou xamãs a quem se atribuía a capacidade de expulsar os maus espíritos que teriam se apoderado da pessoa doente (Scliar, 2007). Percebidos como veículos da vontade dos deuses, essas figuras costumavam ser mais poderosas que o chefe da sociedade a que pertenciam (Hoirisch, 2006).
Na Grécia antiga, a onipotência associada à figura do médico pode ser identificada no mito de Asclépio, o “deus da Medicina”, capaz de compreender todo tipo de sofrimento dos doentes e encontrar remédios para quaisquer males (Cassorla, 1995). Nesse mito, os poderes de Asclépio o entusiasmaram tanto que ele começou a ressuscitar mortos e a impedir que enfermos morressem (Hoirisch, 2006).
Na mesma Grécia antiga, a escola hipocrática inaugurou uma medicina racional, que percebia as doenças como resultado de causas naturais, e considerava as curas como objeto da ciência médica (Scliar, 2007; Hoirisch, 2006). A partir de então, os médicos passaram a ser tão valorizados quanto os antigos sacerdotes, sendo vistos, assim como estes últimos, como seres dotados de grandes poderes (Ramos-Cerqueira & Lima, 2002). Hipócrates, no entanto, se preocupava com o risco que o médico corria de sentir-se onipotente, justamente pela grande valorização dessa profissão (Milan & Arruda, 2008).
A ascensão do cristianismo fez com que a doença passasse a ser percebida como consequência de pecados cometidos pelo enfermo, sendo a cura associada à fé deste último (Hoirisch, 2006). Tais concepções se mantiveram na Idade Média, quando muitos hospitais eram dirigidos por ordens religiosas, e uma grande parcela dos enfermos era cuidada por seus membros (Scliar, 2007). Nesse período, o lugar idealizado outrora ocupado por xamãs, sacerdotes e médicos hipocráticos passava a ser ocupado por padres e freiras, percebidos como onipotentes por sua estreita relação com Deus. Ainda na mesma época, surgiu, na universidade medieval, o título de “doutor”, também idealizado e repleto de status social.
No período renascentista, a influência religiosa na Medicina foi substituída pela experimentação e pela observação, sob o domínio da lógica e do raciocínio. No século XV, surgiram as primeiras leis que regulamentavam o exercício da Medicina. A partir desse momento, a Medicina diferenciou-se definitivamente da religião, do curandeirismo popular e da feitiçaria (Hoirisch, 2010). A valorização da figura que cura doenças e salva enfermos da morte, no entanto, não desapareceu, e a Medicina tornou-se uma das profissões que mais despertam idealizações (Ramos-Cerqueira & Lima, 2002), o que persiste até a atualidade.
A idealização do médico nos dias de hoje
A idealização existente ainda hoje em dia faz com que o médico seja frequentemente visto como um herói conquistando a morte (Oliveira & Ismael, 1995), como um “mago das dificuldades humanas” (Ramos-Cerqueira & Lima, 2002), que teria o “poder mágico” de dar e tirar a vida (Villela, 2006). Toda a onipotência atribuída aos médicos faz com que esses profissionais tenham grande prestígio e um status diferenciado em relação às demais profissões.
Não apenas os médicos, mas os próprios estudantes de Medicina são valorizados pela sociedade, por estarem em um curso cujo ingresso é um dos mais concorridos que existem. Assim sendo, o simples fato de serem capazes de ultrapassar a barreira do concurso e entrar na faculdade já é motivo para a idealização (Quintana et al., 2008).
Ao mesmo tempo em que são idealizados, os acadêmicos de Medicina também idealizam sua futura profissão. Isto fica evidente quando esses discentes caracterizam um bom médico como alguém que praticamente beira a perfeição, com atributos como ser inteligente, estudioso, sensível, seguro, estar sempre disponível, saber compreender o paciente, ser altruísta, humano, esforçado, responsável, humilde, paciente (Milan & Arruda, 2008; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002).
Assim como o que caracteriza um bom médico reflete a idealização sobre a profissão, as motivações dos estudantes para escolherem a Medicina – muitos ainda na infância – traduzem o mesmo. A motivação altruísta, manifestada através do desejo de cuidar, curar, ajudar, de melhorar a qualidade de vida e de ser útil às pessoas é citada por vários autores como uma das mais relevantes na escolha da profissão (Oliveira, Gonçalves, & Bellili, 2011; Trindade & Vieira, 2009; Milan & Arruda, 2008; Villela, 2006; Moreira et al., 2006; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002).
Nota-se que tanto os atributos que os estudantes consideram que um bom médico deve ter, como suas razões para a escolha da profissão se assemelham bastante com as características idealizadas frequentemente associadas aos sacerdotes e xamãs do passado.
A associação comumente feita entre Medicina e sucesso financeiro é outro elemento que demonstra a valorização da profissão e as expectativas idealizadas dos acadêmicos. Diferentes estudos revelam que os discentes esperam que a profissão lhes traga prestígio, posição social, estabilidade financeira e muitas opções de trabalho, e enxergam a Medicina como uma profissão capaz de lhes garantir tudo isso (Costa & Azevedo, 2010; Trindade & Vieira, 2009; Moreira et al., 2006; Mello Filho, 2006a; Villela, 2006; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002).
Há, ainda, motivações inconscientes significativas que colaboram para a escolha da Medicina. As mais apontadas por diferentes estudiosos são o desejo de negar, controlar ou evitar a morte, a sublimação ou expiação de impulsos agressivos e sádicos, a busca do poder, a possibilidade de reparação (Milan & Arruda, 2008; Hoirisch, 2006; Villela, 2006; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002; Meleiro, 1998). Trata-se, portanto, de motivações ainda mais idealizadas do que as conscientes.
Toda essa idealização faz com que o estudante chegue à faculdade repleto de expectativas sobre o curso. Essas expectativas, no entanto, contrastam fortemente com o que o aluno encontra. Vejamos.
Da idealização da profissão à realidade da faculdade de Medicina
Vencidos os desafios do concurso para a faculdade de Medicina, os discentes comumente acreditam ter se livrado das angústias vivenciadas até aquele momento e esperam ter, na universidade, um cotidiano menos desgastante do que o do período pré-vestibular (Oliveira et al., 2011; Moreira et al., 2006). A realidade que encontram, porém, destoa bastante dessas expectativas idealizadas, que dão lugar ao desencanto em relação ao curso. Isso porque os alunos logo se deparam com o volume excessivo de estudos, a dificuldade para acompanhar o conteúdo e as pressões acadêmicas. Tudo isso provoca cansaço e escassez de tempo, gerando dificuldades para conciliar estudos, lazer e relações com amigos e familiares (Milan & Arruda, 2008; Furtado, Falcone, & Clark, 2003).
Os estudantes imaginam que seus novos colegas serão dotados de capacidades especiais, serão extremamente dedicados, sonhadores, inteligentíssimos. Com o ingresso na faculdade, alguns se queixam da competição por notas, vagas em ligas assistenciais e estágios, o que lembra a disputa que havia nos tempos do pré-vestibular (Milan & Arruda, 2008; Mello Filho, 2006a).
Os alunos esperam ter professores com uma didática impecável, que gostem de ensinar e sejam éticos, autênticos, estimulantes (Oliveira et al., 2011). A realidade, porém, é repleta de queixas sobre uma didática monótona e ultrapassada, ou sobre uma relação professor-aluno fria, agressiva e autoritária (Oliveira et al., 2011; Trindade & Vieira, 2009; Quintana et al., 2008; Moreira et al., 2006; Mello Filho, 2006a; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002).
O desencanto experimentado pelo aluno é agravado pela necessidade de se adaptar à universidade, que requer um novo papel adulto, com uma rotina acadêmica mais autônoma do que a da escola (Villela, 2006; Furtado et al., 2003; Meleiro, 1998). A expectativa de que a vida universitária seria semelhante à que havia no ensino médio é frustrada pela percepção de que a realidade não será esta (Oliveira et al., 2011).
Antes percebida como um continente ideal, a faculdade apresenta àquele que nela ingressa “uma realidade que estilhaça suas ilusões onipotentes” (Quintana et al., 2008, p. 8). Esse estilhaçamento representa o início da desconstrução da idealização que havia.
O contraste entre a idealização (do médico, do estudante de Medicina e do curso) e a realidade encontrada pelo aluno recém-chegado pode gerar obstáculos na construção da identidade médica (Mello Filho, 2006b) ou pode deixar marcas na identidade do profissional (Ramos-Cerqueira & Lima, 2002). Este é um dos pontos que a pesquisa descrita a seguir pretende investigar.
Pesquisa
Identidade é a capacidade de uma pessoa se manter basicamente a mesma, independentemente das circunstâncias e pressões experimentadas. É composta por um conjunto de características que identificam o indivíduo como sendo alguém que possui determinados valores, ocupa determinados lugares e é reconhecido por suas ideias. A identidade médica, de maneira análoga, corresponde a uma consistência e coerência profissional assegurada pelo conjunto de conhecimentos, afetos e experiências com os quais o médico pensa, age e se comunica (Zimerman, 2006). Uma identidade médica saudável é constituída por atributos como sensibilidade, empatia, retidão, generosidade, tolerância, bom senso, inteligência, dedicação, capacidade de elaboração e reparação (Mello Filho, 2006b).
A presente pesquisa tem o objetivo de conhecer o aluno do primeiro período de Medicina da Universidade Estácio de Sá (UNESA), campus João Uchôa, no que concerne às suas expectativas, percepções, motivações e dificuldades relacionadas ao curso e à profissão, assim como identificar eventuais diferenças entre as expectativas que havia antes do ingresso e a realidade encontrada na faculdade. A partir desse conhecimento, a pesquisa pretende compreender mais sobre os primeiros passos da construção da identidade médica, bem como identificar os eventuais impactos do processo de idealização-desidealização nessa construção.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa guiada pelo Método de Explicitação do Discurso Subjacente, o MEDS (Nicolaci-da-Costa, 2007), que pretende analisar em profundidade os depoimentos dos sujeitos, visando a tornar visíveis os conteúdos inconscientes por trás de seu discurso racional.
O estudo foi desenvolvido em duas etapas. Na primeira delas, os dados foram coletados por meio de um questionário aberto, no qual os participantes foram solicitados a escrever livremente sobre itens como: motivações para a escolha do curso; reações de familiares a essa escolha; expectativas sobre a faculdade; realidade encontrada; medos quanto ao futuro.
Na segunda etapa – um aprofundamento da anterior – a coleta de dados foi feita por meio de entrevistas individuais. Conforme preconizado pelo MEDS, as entrevistas se assemelharam a conversas naturais, que tendem a levar os participantes a serem mais espontâneos em suas respostas. Para favorecer a naturalidade, o roteiro utilizado contou com itens que geravam perguntas abertas formuladas durante a entrevista. Alguns dos itens eram os seguintes: Ser médico (percepções gerais sobre a profissão e o médico; vantagens/desvantagens de ser médico); a escolha da profissão (razões; sentimentos; reações de conhecidos); expectativas quanto à faculdade (o que espera do curso; medos e preocupações; expectativas sobre o futuro); a realidade da faculdade (diferenças entre expectativas e realidade; dificuldades enfrentadas; sentimentos associados ao curso; relação com colegas; administração do tempo; aspectos positivos/negativos do curso); expectativas quanto à profissão (como se vê depois de formado(a); desafios que enfrentará; aspectos positivos/negativos da profissão).
O MEDS prevê a análise dos dados em duas etapas: a “inter-participantes”, quando as respostas dos entrevistados são comparadas em busca de elementos comuns, fornecendo uma visão geral dos discursos; e a “intra-participante”, em que cada discurso é analisado individualmente, em busca de contradições ou inconsistências que, quando identificadas, levam de volta à análise inter-participantes, para verificar se elas estão presentes nos outros discursos. Considerando que dados coletados em questionários não permitem maiores aprofundamentos, a análise destes contou apenas com a etapa “inter-participantes”, enquanto a análise das entrevistas contou com as duas etapas. Em um momento subsequente, os resultados da análise dos questionários foram comparados com os obtidos a partir das entrevistas, em busca de semelhanças e diferenças.
O recrutamento foi realizado através da divulgação da pesquisa em disciplinas do primeiro período de Medicina do Campus João Uchôa, e a participação de todos foi voluntária e desvinculada de qualquer benefício acadêmico. A pesquisa foi conduzida dentro dos padrões exigidos pela Resolução nº 466/13 do Conselho Nacional de Saúde e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNESA, sob o parecer nº 1.815.233.
Resultados
A pesquisa contou com a participação de um total de 77 alunos do primeiro período de Medicina. Destes, 66 ingressaram no primeiro semestre de 2016 e responderam ao questionário, sendo 21 homens e 46 mulheres com idades entre 17 e 36 anos (a maioria tendo entre 18 e 23 anos). Além destes, foram entrevistados 10 alunos de primeiro período, sendo seis mulheres e quatro homens, tendo cinco deles ingressado no primeiro semestre de 2017 e os demais no segundo semestre do mesmo ano. Nove deles tinham idades entre 19 a 22 anos e uma entrevistada tinha 32 anos. Quando participaram da pesquisa, todos haviam entrado na faculdade há no máximo dois meses, exceto uma aluna, que foi entrevistada no final do semestre. Na apresentação dos resultados, os participantes que responderam ao questionário serão identificados apenas por seu gênero (abreviado por M ou F) e idade, enquanto os entrevistados serão identificados por nomes fictícios e suas idades.
A análise dos dados coletados em ambas as etapas da pesquisa gerou categorias nas quais as respostas dos pesquisados foram agrupadas. As categorias mais relevantes para este artigo serão apresentadas a seguir.
A escolha da Medicina
Tanto nos questionários como nas entrevistas, as principais razões para a escolha da Medicina estavam associadas à realização pessoal, ao altruísmo e ao mercado de trabalho, nessa ordem de frequência, sendo que as respostas comumente abrangiam mais de um tipo de razão.
a) Realização pessoal
No que concerne à realização pessoal, os participantes evidenciaram que estudar Medicina era um sonho antigo, que muitos tinham desde a infância. Nos questionários, um aluno escreveu que este “foi sempre um sonho” (M, 19 anos), enquanto uma aluna revela quando escolheu a Medicina, ao afirmar: “sonho desde os 10 anos de idade” (F, 18 anos). Em sua entrevista, Pedro (21 anos) falou detalhadamente sobre o desejo de ser médico desde a infância. Em suas palavras:
Desde pequeno, eu escrevia receita. Eu tenho até um carimbo escrito ‘Doutor Pedro Carvalho, médico de gente’. Aí eu perguntava ‘o que você toma de remédio?’. Eu tinha 5 anos.
Outros escolheram a Medicina tão precocemente, que sequer se recordam de quando isso aconteceu, como Julia (19 anos) explicou:
Eu não sei quando eu escolhi, eu sempre quis e sempre me interessei pela área da biologia, pela área humana, e sempre, sempre quis, mas não me lembro do ponto que eu decidi, porque sempre foi um sonho, uma vontade.
A escolha de muitos foi influenciada por médicos com quem conviviam em casa ou conviveram em momentos específicos. Diversos estudantes têm familiares médicos, como uma aluna, que escreveu em seu questionário: “Realização pessoal. Identificação com a profissão. Exemplo de vida do meu pai, que se formou já com mais de 40 anos, em Medicina” (F, 30 anos). Outros alunos se referiram à “influência familiar” (M, 21 anos) ou a “referências na minha família” (F, 21 anos). Em sua entrevista, Leonardo (22 anos) deixou clara a influência familiar em sua escolha:
Meus pais não são médicos, mas meus tios e primos são. Aí fui despertando esse interesse, foi aí que eu quis estudar Medicina. Eu tenho um irmão que faz Medicina também, [eu] via o que ele me falava, então fui despertando esse interesse, mas foi na infância mesmo.
Ainda nas entrevistas, a motivação a partir de experiências pessoais de contato com médicos fora da família foi bastante mencionada. Ana (19 anos), por exemplo, contou que sua escolha se deu a partir de uma ocasião em foi tratada por um profissional que admirou muito:
Eu escolhi Medicina por um momento que eu passei na minha vida que eu tinha 12 anos e fiquei internada (. . .). Fui tratada por médicos excelentes, médicos tops. (. . .) O Dr. Vicente (. . .) é como uma inspiração profissional pra mim. Eu olhava ele e falava ‘eu quero ser assim quando eu crescer ‘, eu quero ser médica por causa dele também.
b) Altruísmo
Outro motivador frequente da escolha profissional – o altruísmo – também se mostrou bastante relevante. Nos questionários e nas entrevistas, os participantes mencionaram sua escolha pelo desejo de ajudar o próximo, salvar vidas, tratar e curar. Nos questionários, surgiram respostas como “ajudar quem precisa” (M, 24 anos), “amor ao próximo. Vontade de ajudar” (F, 21 anos) e “ajuda, cuidar, se importar com o próximo” (F, 19 anos). Para outros, as motivações altruístas se traduzem no desejo de afastar a dor e a tristeza e gerar alívio e felicidade. Esse desejo foi expresso por um aluno que gostaria de “poder salvar vidas. Afastar a dor e a tristeza das pessoas” (M, 23 anos).
Nas entrevistas, a escolha altruísta foi descrita como o desejo de ajudar os outros de um modo mais efetivo do que os participantes já fazem hoje. Pedro, por exemplo, relatou que há anos vinha ajudando pessoas espiritualmente, e quis oferecer uma ajuda mais “material”:
Eu só ajudava ele como médium, espiritualmente (. . .), mas não conseguia ajudar tão incisivamente. (. . .) Aí a área da Medicina virou o principal enfoque. (. . .) Poder ajudar a pessoa materialmente, não só espiritualmente. Eu poderia dar uma ajuda completa.
Já Daniela (32 anos) se formou em outro curso da área de saúde, porém sua atuação era mais voltada para a pesquisa. A escolha da Medicina partiu do desejo de ajudar pessoas diretamente, como ela explicou:
Na pesquisa eu ajudo mais dando uma esperança do que na realidade. Eu quero ajudar de fato, nem que seja sentar e conversar e deixar aquela pessoa melhor, se eu não pude fazer nada. Eu preciso disso, eu preciso desse contato.
Marina (21 anos), por sua vez, escolheu a Medicina por um desejo de ajudar a sociedade como um todo:
Quando eu era criança, eu queria ser professora de matemática, porque eu era muito boa, mas eu não ajudava ninguém com aquilo. Medicina eu vi que era uma forma de dar um retorno pra sociedade.
Bianca (21 anos), que cursou poucos períodos de outra faculdade da área de saúde, considera que a Medicina permite uma ajuda mais direta, o que é mais gratificante para o profissional:
[Medicina] era a minha primeira opção antes de ir para outra faculdade. Mas foi natural mesmo, (. . .) eu percebi que eu queria algo que fosse mais gratificante, por estar ajudando alguém diretamente.
c) Mercado de trabalho
Embora menos citada que as anteriores, a escolha motivada por expectativas sobre o mercado de trabalho também surgiu entre as respostas. Essas expectativas dizem respeito principalmente a ter uma boa remuneração e estabilidade econômica. Em uma grande parcela de respostas ao questionário, as motivações financeiras surgiram em meio às altruístas. Um estudante, por exemplo, respondeu que escolheu a Medicina em busca de “estabilidade. Ajudar o próximo. Dinheiro” (M, 29 anos). Já outra aluna escreveu: “ajudar. Amor. Compaixão. Estabilidade. Dinheiro” (F, 19 anos).
Nas entrevistas, os aspectos financeiros surgiram com frequência, porém raramente de maneira direta ou espontânea. Em certos casos, o desejo de prosperar foi inclusive criticado. Pedro, por exemplo, criticou seus colegas que se mostram muito interessados nos ganhos financeiros que pretendem ter:
Eu não quero dinheiro, como a gente escuta coisas absurdas lá na sala, como ‘eu quero pra comprar isso etc.’... Eu não espero isso. Eu espero tipo assim me tornar um ser humano melhor, que eu consiga resgatar o outro.
Em outro momento, porém, o mesmo aluno revela sua expectativa de ter estabilidade financeira, ainda que sua pretensão seja apenas “se manter” sem luxos:
Eu quero ter formas de eu me manter, mas não que isso seja o único motivo. (. . .) Eu quero viver sem dificuldades, sem contar moedas no fim do mês. Essa é minha vontade. Eu não tenho muitas aspirações, fazer altas viagens. (. . .) Eu quero poder ser estável, eu odeio instabilidade.
Marina também se mostrou crítica à ideia de ganhar dinheiro com a Medicina, afirmando que o altruísmo é o mais importante:
Ser uma médica de sucesso não é ter retorno financeiro, mas cumprir o papel de ajudar as pessoas.
Assim como Pedro, em outro momento mencionou a importância de ter uma vida estável e confortável:
Dinheiro é bom, mas eu não sou ambiciosa. Dá pra ter uma vida boa, confortável sem trabalhar tanto, ter meu consultório. Ser estável, não ganhar dois mil reais por mês e nem ser tão ambiciosa de querer ter meu próprio hospital.
Leonardo, por sua vez, não fez referências espontâneas à questão financeira, atribuindo a escolha da Medicina a razões altruístas e pessoais. Quando perguntado diretamente sobre isso, porém, declarou:
Lógico que escolhi Medicina (. . .), não só porque eu gosto, (. . .) eu também quero ganhar bem. Não posso falar que não. Eu quero (. . .) realizar meus sonhos, poder viajar, poder ter uma casa legal, tem várias coisas que tenho vontade... Assim, meu sonho não é ser rico, não quero ser milionário, nada disso.
Assim como Leonardo, Adriana (20 anos), espontaneamente também não citou a realização financeira, mas, ao ser perguntada sobre isso, afirmou:
Não almejo essa riqueza absurda (. . .). Quero ter a minha casa e quero ter condição pra dar pros meus filhos no mínimo a mesma condição que meus pais me deram pra estudar. Se possível mais, pra eles terem a mesma oportunidade que eu tive.
Expectativas x realidade
Os participantes da pesquisa foram perguntados sobre as expectativas que tinham sobre a faculdade de Medicina antes de seu ingresso, assim como a realidade com que se depararam. Suas respostas foram agrupadas em “aspectos acadêmicos” e “aspectos relacionais”.
a) Aspectos acadêmicos
Os estudantes que responderam questionários esperavam que a faculdade lhes fornecesse aprendizado e conhecimento suficientes para se tornarem profissionais de excelência. Um estudante, por exemplo, disse que esperava que a faculdade fosse “a melhor do Rio, a base para me tornar um bom profissional, capaz de ter convicção dos atos” (M, 23 anos). Outra aluna disse esperar que, em sua vida acadêmica, conseguisse “aprender não apenas para passar de período, mas sim acumular conhecimento para ser um bom profissional” (F, 18 anos). De maneira análoga, em sua entrevista, Daniela manifestou a expectativa de que o curso a tornasse uma médica competente, como revela o trecho a seguir:
“Me tornar uma boa médica, me tornar competente, mostrar pra mim mesma que sou capaz”.
Ao ingressarem na faculdade, praticamente todos se foram surpreendidos por uma realidade mais árdua do que a que eles haviam previsto. O depoimento de uma aluna em seu questionário traduz bem essa surpresa: “Muito mais matéria que eu imaginava e total falta de tempo para família e amigos” (F, 26 anos). De modo similar, um aluno comentou que a faculdade “Exige mais responsabilidade do que eu esperava” (M, 20 anos). Ainda nos questionários, foram recorrentes as respostas que enfatizavam o excesso de conteúdo e a escassez de tempo, como o depoimento a seguir: “Dificuldade. Muito conteúdo em um curto espaço de tempo” (F, 21 anos). Alguns se referiram ainda às diferenças entre universidade e ensino médio, como mostra este discurso: “Muito estudo. Pouco tempo livre. Muita responsabilidade. Falta de ‘paternalismo’ que havia na escola” (F, 21 anos).
Essa realidade árdua também surgiu em entrevistas como a de Leonardo, que falou sobre a discrepância entre o que esperava e a realidade:
Até é engraçado isso, mas esperava que, nesse começo, seria um pouco mais fácil, e estou achando bem corrido, (. . .) muita matéria, tenho aula todo dia, de segunda a quinta, manhã e tarde. Chego em casa extremamente cansado, tento estudar, mas não consigo, às vezes.
Gustavo (21 anos) pareceu um tanto surpreso com a realidade da faculdade de Medicina, ao afirmar:
Tem que estudar muito, tem que estudar muito, não dá pra fazer festa todo final de semana, tem que estudar muito. Não esperava ter que estudar tanto! Sabia que ia ter muito estudo, óbvio, mas não tanto, tão puxado, tão desesperador. (. . .) As noites mal dormidas, muito conteúdo pra estudar, muito nome pra decorar, acaba sendo uma medicina chata.
Para algumas pessoas, como Bianca, o volume de matéria é tanto, que o estudante precisa ter cuidado para não ser prejudicado pelo próprio estresse e ansiedade:
Eu acho que o estresse pode afetar muito né, mas assim, a pessoa saber controlar o psicológico é importante, imagina se estressar, por exemplo, por matéria acumulada, se ela ficar pensando muito nisso ela acaba ficando ansiosa, estressada, e acaba não conseguindo estudar mais nada, então saber controlar o emocional e a mente eu acho importante.
Apesar das queixas sobre o volume excessivo de conteúdo, o cansaço e a dificuldade para administrar o tempo, a maioria se diz realizada com o curso de Medicina. Nos questionários, essa realização surgiu em diferentes depoimentos, como os seguintes: “Por enquanto estou muito feliz e aprendendo muito” (F, 18 anos), “realizando o que sonhei durante os três anos de cursinho” (F, 21 anos). A mesma sensação de realização aparece nos discursos dos entrevistados, como Guilherme (21 anos), que se mostra feliz com os estudos na faculdade:
Quando você entra (. . .) já cai a ficha, tem um bilhão de coisas pra estudar, o tempo é muito corrido. Em compensação é um estudo gostoso, pelo menos eu estudo feliz.
Gustavo, por sua vez, se diz maravilhado com algumas disciplinas, por perceber que está aprendendo o que sempre quis:
O que me surpreendeu muito é que eu tô realmente apreendendo aos poucos aquilo que eu queria ter aprendido antes enquanto eu tava no Direito (. . .). Eu tô aprendendo bastante e tem algumas aulas que eu fico embasbacado com o que eu aprendo e acho bem legal.
De maneira similar, Leonardo mostrou seu entusiasmo com o que está estudando no curso:
Estou gostando pra caramba, é uma coisa que estou apaixonado, cada dia fico mais feliz. Mesmo estando cansado, eu gosto daquilo. Mesmo que seja alguma coisa que eu não ache tão legal, mas sei que isso mais pra frente vai ter um porquê, um motivo de eu estar estudando isso.
b) Aspectos relacionais
Os pesquisados revelaram ter grandes expectativas sobre as relações que a vida universitária lhes proporcionará. Nos questionários, os alunos mostraram-se otimistas e esperançosos quanto às novas amizades, festas e paqueras. Uma aluna declarou esperar “fazer amizades pra vida toda. Melhores anos da vida. Várias festas. Vários boys” (F, 19 anos). De modo semelhante, outra estudante revelou suas expectativas: “Que sejam os melhores anos da minha vida: aprendizados, amizades e crescimento” (F, 21 anos). Houve ainda participantes que disseram, genericamente, ter boas expectativas, demonstrando animação com o início dessa nova fase. Entre os entrevistados, apenas Gustavo respondeu a essa questão de maneira similar. Ele esperava que a faculdade fosse marcada por muitas festas, como afirmou:
Nossa Senhora... A minha expectativa era muita festa, muita curtição, muita alegria, ‘uuuuuhu’, sabe? Aquelas fotos bonitas, sabe? O povo tudo alegre!.
Outros entrevistados revelaram que, antes do início das aulas, estavam apreensivos quanto aos colegas que encontrariam na faculdade. Foi o caso de Pedro, que tinha o receio de encontrar pessoas muito mais inteligentes que ele:
Eu olhava os alunos de Medicina e imaginava ‘nossa, eu acho que não consigo chegar nesse nível, e eu vivia me perguntando: “o que ele tinha de diferente de mim, o que está faltando em mim, qual o conhecimento a mais que eles têm e eu não?”.
Ana esperava que os alunos de Medicina em geral fossem “nerds” sem vida social, e tinha medo de se sentir diminuída, como ela descreveu:
Imaginava a faculdade cheia de pessoas nerds, que estudam e que não têm vida social, e que se trancam, se isolam e estudam (. . .) [Pessoas que] estudam mais que eu, achava que iam ser todos muito inteligentes que estudam muito mais que eu. (. . .) Eu pensava que ia me sentir diminuída, ‘caraca eles sabem mais que eu’, e eu vou ser uma pessoa que não vou conseguir lidar com eles (. . .).
Assim como Ana, Daniela se sentia pouco capaz, por perceber médicos como “gênios superdotados”, como fica claro em seu depoimento:
Nem sempre um bom médico é o gênio da sala, é o superdotado. (. . .) Eu me achava incapaz pelo intelecto mesmo, nunca fui a primeira da sala, e só os primeiros fizeram Medicina. E pra mim tinha que ser o primeiro da turma, um quase gênio.
Ao entrar na faculdade, os entrevistados parecem ter encontrado uma realidade melhor do que a que imaginavam. Ana se surpreendeu ao se deparar com pessoas como ela:
Eu pensava ‘ah, o cara passou pra Medicina é muito inteligente’. Agora eu vejo que não, porque eu consegui passar, vejo que as pessoas aqui são normais. Não são nerds, loucas, que só estudam. (. . .) [Eu pensava que iam] conversar sobre coisas que eu não ia entender, mas eu vi que não, que eu consigo conversar com eles de igual pra igual (. . .). Eu não esperava a proximidade tão grande com meus colegas, tivemos três semanas de aula e já somos super família.
Daniela também mostrou surpresa por seus colegas não serem diferentes dela, e relatou que se sente à vontade na faculdade, diferentemente do que havia imaginado:
(. . .) A turma tá bem compatível comigo, não tô me sentindo diferente não, e, por já ter uma graduação, me sinto até bem na turma.
Gustavo, que veio de outra cidade, comentou sobre as boas relações com os colegas, especialmente os que também não são do Rio de Janeiro:
Uma das que mais me surpreendeu foi conhecer gente de muitos lugares e fazer amizades, em duas semanas, que eu achava que nunca ia fazer na vida. Acho que conheci um pessoal que também veio de longe, que também (. . .) não tinha ninguém, então a gente acabou se apegando muito e viraram minha família hoje.
Já Marina, que temia encontrar pessoas de nível socioeconômico muito diferente do dela, também se surpreendeu ao se deparar com pessoas com quem se identificou:
Como é [faculdade] particular, eu esperava encontrar todo mundo rico, não ia conseguir falar com ninguém. Mas tem bastante gente com o universo parecido com o meu.
Discussão
Os resultados da pesquisa, aqui apresentados, revelaram que houve grande coincidência entre as respostas dadas pelos participantes nos questionários e nas entrevistas. Em ambos, ficou evidente que idealização permeia muitas das impressões dos pesquisados sobre os médicos e a Medicina em geral. A escolha da profissão – um “sonho” de criança – se deve, em grande parte, a concepções idealizadas sobre o médico, uma figura que “faz o bem”, “salva vidas”, “evita a morte”, “leva felicidade para os outros” e “tem status social”. Essas concepções refletem uma imagem de onipotência análoga à que havia em relação aos xamãs ou sacerdotes do passado. Os médicos são vistos, portanto, como “heróis” ou “magos” dotados de um “poder mágico”, percepção que está de acordo com a descrita pelos autores citados anteriormente (Quintana et al., 2008; Villela, 2006).
A idealização dos médicos e da Medicina é de tal ordem, que os aspectos financeiros relacionados à escolha profissional frequentemente surgem de maneira indireta, quase disfarçada. Alguns alunos criticam os colegas que “só pensam em dinheiro” ou “só querem ganhar o seu”, e seus discursos sugerem que o altruísmo deveria ser a única – ou ao menos a mais relevante – razão para a escolha da Medicina. A impressão que esses depoimentos transmitem é a de que os médicos são tão poderosos que não precisam sequer se preocupar com dinheiro. Em outros momentos, porém, os pesquisados confessam almejar ter uma vida estável e mencionam a expectativa de que a profissão lhes garanta esta estabilidade. Dessa forma, embora pareça haver algum constrangimento em se falar sobre dinheiro, as expectativas quanto ao mercado de trabalho são análogas às expressas por participantes de pesquisas realizadas por outros autores (Costa & Azevedo, 2010; Trindade & Vieira, 2009; Quintana et al., 2008; Mello Filho, 2006a; Moreira et al., 2006; Villela, 2006; Ramos-Cerqueira & Lima, 2002).
A idealização (de médicos e da Medicina) que influenciou a escolha da profissão aparentemente não havia sido alterada pela entrada na faculdade. Isto possivelmente se deve ao fato de a maioria ter ingressado no máximo dois meses antes de participar da pesquisa, não tendo havido tempo suficiente para mudanças nesse sentido.
Os discursos a respeito das expectativas que os alunos tinham sobre o curso de Medicina também refletem ideias bastante idealizadas. Eles esperavam ter uma formação excelente, com estrutura exemplar, que os preparasse para serem profissionais competentes, capazes e reconhecidos. Ao mencionarem predominantemente aquilo que esperavam que a faculdade lhes proporcionasse, os estudantes parecem ter “esquecido” que o sucesso que desejam também dependeria do seu desempenho e esforço. Esse “esquecimento” parece ser um dos motivos da enorme surpresa que tiveram ao se deparar com a quantidade de conteúdo das disciplinas, a necessidade de estudar muito e a dificuldade para conciliar atividades acadêmicas, lazer e vida pessoal. Alguns alunos chegaram a manifestar preocupações quanto aos impactos psicológicos que a nova rotina acadêmica, muito mais árdua do que haviam imaginado, poderá vir a provocar, e mencionaram os cuidados que precisarão ter para evita-los. O “choque” causado por uma realidade bastante distinta da idealizada parece representar uma primeira desidealização do curso de Medicina.
Outra desidealização ocorreu em relação às expectativas que os discentes tinham sobre seus novos colegas. Embora alguns esperassem fazer novas amizades, ter muitas festas e paqueras, tantos outros revelaram que seu receio era enorme. Isso porque eles enxergavam os alunos de Medicina como seres idealizados – muito inteligentes, “nerds”, “gênios superdotados”, “ricos” – e, quando os comparavam consigo mesmos, se sentiam diminuídos, menos inteligentes, menos capazes, mais pobres. Por essa razão, acreditavam que se sentiriam deslocados em uma turma de Medicina. Nesse caso, a realidade foi melhor do que a que esperavam, pois os pesquisados encontraram pessoas como eles, o que possibilitou uma rápida integração. A desidealização dos colegas, portanto, surpreendeu positivamente a todos.
Essas duas desidealizações parecem apontar para o início da construção de uma identidade médica. A identidade médica é constituída de maneira análoga à identidade individual, ou seja, por meio de um processo gradual, que implica a identificação com diversas figuras valorizadas (Zimerman, 2006). Sobre esse processo, Mello Filho (2006b) chama a atenção para a distinção entre idealização – que está baseada em fantasias – e admiração – que se baseia nos aspectos reais do outro. A constituição da identidade individual calcada em idealizações pode gerar frustrações, enquanto a baseada na admiração tende a ser melhor e mais estável (Mello Filho, 2006b; Zimerman, 2006). No caso da identidade médica, essa identificação pode se dar de forma idealizada, através de uma imagem deificada do médico (e da Medicina em geral) – que gera expectativas exageradas sobre si e sobre o próprio desempenho profissional no futuro (Ramos-Cerqueira & Lima, 2002) – ou a partir da admiração de figuras reais, o que gera expectativas mais próximas da realidade.
Ao entrarem na faculdade, a imagem idealizada de uma faculdade perfeita, que os tornaria médicos com poucos esforços, foi substituída pela realidade de um curso que exige muito de seus alunos. Ao se depararem não com os estudantes “perfeitos” que os participantes imaginavam, mas com pessoas reais e tão “normais” como eles se sentem, a idealização do aluno de Medicina deu lugar a uma forte identificação entre pares, que gerou uma amizade quase instantânea. Nesse momento bastante inicial da formação, quando a idealização do curso dá lugar à realidade, e quando a identificação substitui a idealização, os pesquisados parecem dar um primeiro passo na direção de uma identidade médica saudável.
Considerações finais
Ao ser aprovado em um dos mais difíceis concursos, o estudante chega à faculdade de Medicina repleto de otimismo, sonhos e desejos. Carrega consigo uma enorme idealização sobre o curso, a profissão e os alunos de Medicina. Rapidamente se depara com uma realidade quase sempre muito diferente da que havia imaginado, tanto no que concerne aos estudos como aos colegas.
O primeiro momento da faculdade é, portanto, um momento de desidealização. Por um lado, essa desidealização – especialmente no que diz respeito aos colegas – é importante, pois será o alicerce da construção de uma identidade médica saudável. Por outro lado, a desidealização decorrente da necessidade de adaptação à nova rotina de estudos pode gerar frustrações, estresse, sofrimento e medos que, quando não são elaborados, podem provocar sintomas psicológicos (Moreira et al., 2006), o que inclusive foi uma preocupação manifestada por alguns participantes. Entre esses sintomas, podem estar a angústia, sintomas psicossomáticos, disfunções comportamentais, quadros depressivos e transtornos de ansiedade (Trindade & Vieira, 2009; Milan & Arruda, 2008; Mello Filho, 2006). Vale ressaltar que a incidência de suicídios entre estudantes de Medicina é superior à verificada em alunos de outros cursos (Milan & Arruda, 2008; Furtado et al., 2003; Meleiro, 1998). Por essa razão, é fundamental que as faculdades de Medicina contem com serviços de apoio que acolham e orientem os discentes ao longo de sua trajetória acadêmica. Esses serviços poderão oferecer um auxílio cada vez mais adequado às necessidades de seus alunos a partir de novos estudos que levem à maior compreensão dos processos psicológicos experimentados por aqueles que caminham na direção da realização de seu grande sonho.
Referências
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Recebido: 17/11/2017
Última revisão: 01/05/2018
Aceite final: 12/06/2018
Sobre os autores:
Mariana Santiago de Matos – Pós-Doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-Rio. Professora do curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá (UNESA) e pesquisadora vinculada ao programa Pesquisa Produtividade, da UNESA. E-mail: marianasantiagodematos@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4515-1924
Camila Mamede Ferraço – Graduanda em medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bolsista PIBIC/UNESA. E-mail: camila.mf08@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5329-0759
Julia Carolina Antunes Rosa – Graduanda em medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bolsista PIBIC/UNESA. E-mail: juliacarolina_rosa@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5103-6896
Julye Azeredo Bastos – Graduanda em medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bolsista PIBIC/UNESA. E-mail: julye_bastos@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4493-7773
Paula Condé Brandão – Graduanda em medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bolsista PIBIC/UNESA. E-mail: paula_conde2@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8079-9128
1 Endereço de contato: Universidade Estácio de Sá (UNESA) – Campus João Uchôa, Rua do Bispo, 146 – Rio Comprido, Rio de Janeiro-RJ, CEP 20261-065.
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v0i0.660