A Escuta do Adoecimento de Mulheres na Atenção Básica

The Listening to the Illness of Women in Primary Health Care

La Escucha de la Enfermedad de las Mujeres en la Atención Básica

Flávia Angelo Verceze1

Sílvia Nogueira Cordeiro

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma pesquisa qualitativa de caráter descritivo com mulheres atendidas pelo serviço de psicologia no contexto da Atenção Básica, a fim de discutir as relações existentes entre adoecimento e sofrimento psíquico. Foram realizadas 13 entrevistas semidirigidas, as quais foram analisadas por meio da técnica de análise de conteúdo, chegando a três categorias: “luto para sorrir”, “o adoecimento dos vínculos” e “você tem fome de quê?”. Para a interpretação dos dados, utilizou-se o aporte teórico da psicanálise, que acentua a importância das dimensões psíquica e subjetiva na experiência do adoecimento, chamando atenção para o papel dos mecanismos psíquicos que participam dos processos de saúde-doença.

Palavras-chave: adoecimento, sofrimento psíquico, saúde-doença, psicanálise.

Abstract

The article aims to present a descriptive qualitative research with women attended by the public psychology service, in order to discuss the relation between body illness and psychic suffering. Thirteen semi-structured interviews were conducted and analyzed using the content analysis technique, getting into three categories: “I mourn to smile”, “bonds sickness”, and “what are you hungry for?”. The data interpretation was based on the theory of psychoanalysis, which highlights the importance of the psychic and subjective dimensions in the experience of illness, calling attention to the role of psychic mechanisms that participate in the health-disease processes.

Keywords: illness, psychic suffering, health-disease, psychoanalysis

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo presentar una investigación cualitativa de carácter descriptivo con mujeres atendidas por el servicio de psicología en el contexto de Atención Básica, con el fin de discutir las relaciones existentes entre enfermedad y sufrimiento psíquico. Se han hecho 13 entrevistas semidirigidas, las cuales fueron analizadas por medio de la técnica de análisis de contenido, llegando a tres categorías: “Luto para sonreír”, “la enfermedad de los vínculos” y “tienes hambre de qué?”. Para la interpretación de los datos, se utilizó el aporte teórico del psicoanálisis, que acentúa la importancia de las dimensiones psíquica y subjetiva en la experiencia de la enfermedad, llamando la atención para el papel de los mecanismos psíquicos que participan del proceso salud-enfermedad.

Palabras clave: enfermedad, sufrimiento psíquico, salud-enfermedad, psicoanálisis

Introdução

O conceito de saúde tem sido discutido nas diversas disciplinas do saber, a fim de uma melhor atenção aos usuários dos sistemas de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esse conceito significa “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Todavia, tal conceito deve ser problematizado, pois diversos são os fatores relacionados ao processo saúde-doença que interferem na sensação de completo bem-estar. Dentro de uma perspectiva psicanalítica, é impossível pensar a saúde seguindo este conceito.

Radicalizando o conceito de corpo para além do orgânico, a psicanálise traz a ideia de um corpo simbólico, erótico − imerso nas questões do sujeito e sua história. Assim, ela acentua a importância das dimensões psíquica e subjetiva na experiência do adoecimento, chamando atenção para o papel dos mecanismos psíquicos que participam dos processos de saúde-doença.

Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud (1930[1929]/1974a) se refere ao mal-estar que viver em civilização causa ao homem, pois, em troca da segurança, o processo civilizatório impõe uma parcela de sofrimento ao sujeito ligado à culpa e à renúncia de uma parte de satisfação pulsional. Freud (1930[1929]/1974a) ainda diz que o sofrimento pode atingir o homem de três maneiras: pelo corpo e suas afecções, a partir do mundo externo que o ameaça com suas forças e por meio dos vínculos com outros seres humanos, sendo este o que causa mais sofrimento.

Assim, segundo Del Corso (2016), antes de Freud, o adoecimento era um problema apenas médico e ligado a questões orgânicas. O caminho aberto por ele possibilitou outro entendimento a respeito de alguns processos de adoecimentos, não mais apenas como fenômeno, mas como resposta sintomática. Assim, a psicanálise chama atenção para a dimensão relacional e psíquica do adoecer, ligando-o às questões do inconsciente.

Partindo da concepção de Lacan (1964/2008, p. 27) de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, entende-se que o indivíduo e o seu corpo são inseridos em um registro simbólico, isto é, o corpo físico é também um corpo simbólico a partir da aquisição da linguagem. Neste sentido, o inconsciente é uma estrutura de linguagem em que o indivíduo é inserido, e seus efeitos se fazem presentes em sua vida e suas sintomatologias.

Dessa maneira, a psicanálise rompe com a concepção de corpo da pura necessidade e desemboca na noção de corpo erógeno, inserido na linguagem, na significação e na representação, ou seja, um corpo próprio da psicanálise (Lazzarini & Viana, 2006). Segundo Mandet (1993), o corpo a que ela se refere é o corpo da representação inconsciente, o corpo investido numa relação de significação, isto é, construído a partir da relação que o sujeito estabelece com o mundo por meio da sua história.

À vista disso, o corpo em psicanálise não pode ser definido somente pelo conceito de organismo ou soma. Segundo Mandet (1993), o corpo impõe permanentemente ao psíquico o trabalho de ser representado, e esse mesmo processo vai devolver ao corpo biológico sua dimensão de pertencer a uma realidade exterior ao eu. O corpo-soma não só constitui um corpo erógeno, como a própria erogeneidade garante as funções somáticas do corpo.

Lacan (1949/1998), em O Estádio do Espelho, como formador da função do eu, propõe que o bebê antecipa, no plano imaginário, sua unidade corporal, identificando-se com a imagem do semelhante. Entretanto, para que o processo de constituição do eu aconteça, é fundamental o reconhecimento do Outro − conceito lacaniano, designado como aquilo que é anterior ao sujeito e o que determina sua constituição, o registro simbólico, a linguagem, a cultura (Lacan, 1954-1955/2010).

Nesse sentido, o corpo do sujeito se constitui por meio de marcas inscritas pelo Outro, adquirindo uma representação subjetiva. Assim, é somente quando o corpo recebe significações pelo discurso do Outro que ele passa a ser subjetivado, transformando-se em um corpo erógeno e simbólico. Isso permite dizer que apenas a condição orgânica não possibilita a constituição de um sujeito. Portanto, para a psicanálise, o conceito de corpo se diferencia do conceito de pura condição orgânica, o corpo é uma construção que se produz pelo Outro em relação ao outro (Decian, 2013; Levin, 2000).

Tal entendimento é necessário quando vamos analisar as patologias e os sintomas que estão presentes nas queixas dos pacientes que chegam para um atendimento psicológico em um serviço de saúde. Estas geralmente envolvem queixas relacionadas a algum sofrimento que vem acompanhado de uma dor corporal específica, isto é, o adoecimento traz a marca do sujeito, de sua constituição e inserção no simbólico. Trata-se de um corpo falante, porque se tornou o palco de uma simbolização enigmática; cadeias de significantes inconscientes, operando por meio de condensações e deslocamentos, fazem do sintoma o portador de uma mensagem enigmática e de uma satisfação pulsional substituta daquela que seria uma satisfação direta.

Deste modo, o discurso freudiano quebra com o dualismo corpo/mente e confere um novo entendimento ao corpo. Este não mais é referido em sua dimensão orgânica pura, mas é compreendido como ponto de partida e de chegada da constituição subjetiva. Este conceito de corpo erógeno surgiu das investigações de Freud sobre a histeria, em que o corpo da histérica é palco dos sintomas conversivos, um corpo libidizado, corpo da representação (Próchono, Silva, & Paravidini, 2010).

Todavia, no contexto da sociedade contemporânea, pós-moderna, o que se tem evidenciado são sintomas que não seguem a lógica do conflito, do recalque e da representação, mas patologias com a presença de quadros narcísicos, ou seja, da ordem da ação; a pulsão é descarregada no ato ou no corpo sem significação e, por isso, elas são chamadas por muitos autores de psicopatologias do ato. Para a psicanálise, essas patologias se apresentam centradas no real do corpo, à mercê de uma ineficácia simbólica. Isto é, são sintomas que se ancoram no corpo, mas parecem não mais remeter a um sentido simbólico (Kegler, 2006).

De acordo com Melman (2003), esse fenômeno está relacionado a uma característica da pós-modernidade, a fragilidade do simbólico, isto é, há um desinvestimento do lugar do Outro que marca um desligamento em relação à linguagem, sendo um dos efeitos a produção de sintomas no corpo e sua coisificação. Assim, neste cenário, destacam-se patologias cujos sintomas inscrevem-se no corpo, como os transtornos alimentares, as somatizações e os quadros que apresentam certo empobrecimento de conteúdos simbólicos, como as depressões e as compulsões. Estes quadros trazem a marca de um vazio da representação no processo de constituição do sujeito e de seus sintomas (Próchono et al., 2010, p. 404).

Desta maneira, torna-se imprescindível interrogar e investigar o que está dando suporte ao adoecimento, pois, ao mesmo tempo que o sintoma incomoda, fazendo o sujeito pagar com seu corpo, ele também apresenta uma satisfação, há um ganho secundário em se manter nessa posição – doente. Assim, pode-se dizer que, para a psicanálise, o sintoma não é a doença, mas a verdade do sujeito (Del Corso, 2016).

Na clínica, muitas vezes, ao se interrogar sobre os sintomas do paciente, ­percebe-se uma grande ligação com os vínculos afetivos. Como já citado anteriormente, Freud (1930[1929]/1974a) coloca a questão dos vínculos com outros seres humanos como uma das causas que mais trazem sofrimento ao sujeito. O ser humano enquanto ser social desenvolve, ao longo de sua vida, uma série de vínculos que são estabelecidos por meio das relações interpessoais, em que trocas afetivas são realizadas. Para a psicanálise, a questão da vinculação é de extrema importância, pois está no cerne da constituição do homem ­enquanto sujeito. O sujeito é uma construção que depende do Outro, isto é, o ser humano apresenta uma condição biológica incapaz de dar conta de suas necessidades fisiológicas e psíquicas; assim, desde muito cedo, depende da presença do Outro, que no início é representado pela mãe ou alguém que faça a função materna (Decian, 2013).

Segundo Decian (2013), o amparo psíquico “da figura materna para com seu bebê é de suma importância para a constituição do eu, sendo a base principal para todos demais relacionamentos do bebê no mundo externo” (p. 29). Portanto, é possível dizer que o modo como acontecerá essa relação inicial orientará o modo como esse sujeito vai se relacionar consigo mesmo e com os outros em sua vida adulta. Assim sendo, a mãe ou alguém que exerça a função materna não só atende como significa e nomeia as necessidades vitais, servindo de referência, ajudando-o a reconhecer os mundos interno e externo, habilitando-o ao domínio da linguagem (Fuks, 2003).

Deste modo, pode-se dizer que o Outro enquanto semelhante e o Outro enquanto linguagem têm um papel muito importante para a constituição do indivíduo como sujeito, refletindo na maneira como este vai se organizar e se relacionar com o mundo. Neste sentido, pode-se observar que muitas doenças apresentam importantes relações com questões da primeira infância. Nesta perspectiva, a psicanálise coloca os adoecimentos sob a égide da trajetória de vida de cada indivíduo e das marcas de suas primeiras relações com o Outro (Del Corso, 2016). O que ocorre quando esse outro falha em sua dimensão simbólica, não conferindo um lugar significante ao corpo infantil? Quais são os efeitos dessa falência simbólica do Outro?

Percebe-se, deste modo, a importância dos aspectos psíquicos, das vivências afetivas iniciais, isto é, da maneira como o laço com o outro se estabeleceu desde o início, para o entendimento do adoecimento e sofrimento dos sujeitos, pois cada vez mais se encontram nos serviços de saúde adoecimentos que se apresentam como um mal-estar manifestado na corporeidade, com pouca capacidade de uma elaboração psíquica, os quais impactam nos modos de tratamento e seus efeitos.

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter descritivo, isto é, refere-se a uma abordagem interpretativa que tenta dar sentido aos fenômenos em termos de significações. Além disso, os estudos qualitativos acontecem em ambientes naturais, e não em ambientes reprodutores de situações com controle de variáveis.

Participantes

Participaram do estudo 13 mulheres que foram atendidas pelo serviço de psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher (RMSM) em uma Unidade Básica de Saúde na região de Londrina, PR, tendo como faixa etária entre 18 e 60 anos. Para preservar o sigilo e a identificação delas, foi atribuída a letra M (mulher) e um número para cada participante.

Instrumentos

Foram realizadas entrevistas semidirigidas de questões abertas em duas ou três sessões, conforme a necessidade do caso. Nelas, o entrevistador tem ampla liberdade para as ­perguntas ou para suas intervenções, permitindo-se toda a flexibilidade necessária de cada caso. A entrevista é entendida como uma relação com características particulares que se estabelece entre o entrevistado e o entrevistador. É um instrumento fundamental da pesquisa qualitativa, pois permite somar dados do conteúdo dito com entonação de voz, gestos, emoções e brincadeiras, e que tudo possa ser observado e registrado no transcorrer dela (Bleger, 1995).

O conteúdo das perguntas envolvia aspectos sobre a saúde física das mulheres − por exemplo: “Como cuida da sua saúde física?”; “Tem algum problema de saúde que interfere em suas atividades diárias?”; aspectos da área profissional e social − por exemplo: “Como você considera sua dedicação ao trabalho (profissional ou doméstico)?”; “Como é sua participação em festas ou reuniões sociais?”; aspectos da vida efetiva − por exemplo: “Você precisa de companhia de outras pessoas? Por quê?”; “Como considera sua vida afetiva? Por quê?”.

Todavia, é importante destacar que, na entrevista semidirigida de questões abertas, as perguntas são consideradas disparadoras, não necessariamente precisam ser respondidas de maneira exaustiva ou em uma ordem preestabelecida. Uma entrevista semidirigida significa que a direção da entrevista pode ser alternada pelo entrevistador, o qual, em alguns momentos, permite também ao entrevistado assumir o comando.

Análise dos dados

Na análise dos dados, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, a qual consiste em um conjunto de técnicas de análise das comunicações que emprega procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, levando em consideração o contexto social e histórico sob o qual foram produzidos para, a partir das mensagens, criar inferências e embasá-las com pressupostos teóricos (Campos, 2004). A análise permitiu a identificação de categorias que emergiram da leitura flutuante das entrevistas e cujo conteúdo principal contemplou os objetivos do estudo. Para a interpretação dos dados, utilizou-se o aporte teórico da psicanálise.

Cuidados éticos

Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina (UEL), atendendo aos princípios éticos contidos na resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e Discussão

Das entrevistas semiestruturadas e das leituras do material colhido, resultaram três categorias: “Luto para sorrir”, “O adoecimento dos vínculos” e “Você tem fome de quê?”. A primeira apresenta uma discussão de como as histórias de luto das pacientes mantinham uma ligação com seus adoecimentos e sofrimentos. A segunda dispõe sobre pacientes que apresentavam histórias de rejeição na primeira infância que pareciam ter refletido na formação de seus vínculos afetivos posteriores e em suas sintomatologias. E a terceira e última apresenta casos de pacientes diagnosticadas com obesidade que já haviam passado por ­várias tentativas de tratamento médico, sem sucesso, e nos quais, nas entrevistas, foi possível notar uma ligação da compulsão apresentada por elas com suas questões psicoemocionais.

Luto para sorrir

“Depois que ele morreu, minha vida não tem mais sentido, só tenho vontade de chorar e raiva” (M1).

“Minha vida acabou depois que ele morreu, só penso no tanto de tiros no corpo dele . . . ele era muito bom filho, fazia de tudo para mim” (M2).

“Desde que meu marido faleceu, só tenho vontade de chorar, vivo irritada e não tenho mais vontade de sair de casa, nem na igreja vou mais . . . minha vida perdeu o sentido, tenho vontade de sumir” (M3).

“Tenho vontade de chorar toda hora, tento me segurar para não chorar na frente do meu filho para ele não perceber” (M4).

Freud (1917/1974b), em seu texto Luto e Melancolia, define o luto como uma reação à perda de um ente querido ou à perda de alguma abstração que ocupou este lugar, envolvendo graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida; todavia, não o considera uma condição patológica. Neste sentido, pode-se dizer que as falas acima exemplificam o que Freud (1917/1974b) descreve como processo de luto, isto é, um desânimo profundo que é originado pela perda do objeto de amor, causando uma falta de interesse pelo mundo e uma inibição de atividades, o que se assemelha a um quadro depressivo.

No texto Sobre a Transitoriedade (1915/1974c), o mesmo autor fala sobre a capacidade para amar – libido − e o retorno ao ego nos processos de luto, e do quanto este desligamento da libido dos objetos, quando destruídos ou perdidos, constitui-se como um processo extremamente penoso. “Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto” (Freud, 1915/1974c, p. 347). Isso pode ser observado nas entrevistas destas pacientes.

“Passei a ser muito irritada e nervosa, eu explodo e estou sempre deprimida” (M5).

“Não tenho vontade de fazer mais nada, sair e nem ir trabalhar” (M6).

Em Luto e Melancolia, Freud (1917/1974b) diz que as mesmas influências, como a perda de um ente querido ou objeto de amor, podem produzir a melancolia em vez de luto, sendo esta uma disposição patológica em que são encontradas as mesmas características do luto, acrescidas de uma diminuição dos sentimentos de autoestima, a ponto de encontrar uma expressão em autorrecriminação e culminar em uma expectativa de punição.

Esta diferenciação entre melancolia e luto pode ser observada nos recortes das falas destas pacientes, pois muitas apresentavam uma identificação com o objeto perdido e não tiveram uma elaboração do luto. Observamos nessas pacientes uma dificuldade de ressignificar sua vida a partir da experiência de perda, não conseguindo adaptar-se à nova vida. Muitas delas apresentavam sintomas de extrema ansiedade, crises nervosas e de pânico. Além disso, muitas desenvolveram doenças autoimunes, principalmente fibromialgia e lúpus. Outras ainda passaram a apresentar problemas digestivos e gastrointestinais, como presença de vômitos e diarreia sem causa aparente.

Desse modo, por meio das entrevistas realizadas com essas pacientes, foi possível perceber que muitos dos sintomas apresentados por estas mulheres estavam ligados à falta de elaboração do luto e ao quanto as manifestações somáticas eram tentativas de ter que se haver com essa perda. Neste caso, pode-se pensar que o corpo aparece como palco de um sofrimento psíquico que não encontrou lugar para a elaboração.

Segundo Goulart (2008), dentro dessa temática de luto e estados melancólicos, a integração mente-corpo tem se mostrado essencial, pois a capacidade de o indivíduo re-harmonizar seu sistema mente-corpo está ligada à possibilidade de elaboração dessa perda, isto é, o sujeito que passa por uma perda importante deve dispor de um tempo e espaço para uma elaboração psíquica, o que tornará possível o enfrentamento do processo de luto, e não o seu adoecimento. Segundo o autor:

. . . o psicanalista é aquele que se dispõe a oferecer escuta para que o paciente possa sentir e sofrer as suas dores, elaborar suas perdas e os seus lutos, e assim desenvolver a capacidade de pensar e se responsabilizar pelo que sente, pensa e faz em conexão com seu corpo biológico e integrado com a cultura em que vive (Goulart, 2008, p. 104).

Nesse sentido, percebe-se a importância de entender os processos de luto como um possível desencadeador de um processo de adoecimento. Se o sujeito não encontra maneiras de ressignificar sua perda, o processo de luto não é superado, podendo culminar em uma desorganização do sujeito.

É preciso que, no luto, o sujeito renuncie ao objeto perdido para que sua libido fique mais uma vez livre e se possa, assim, reconstruir. “Quando o luto tiver terminado... reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes” (Freud, 1915/1974c, p. 348).

Desta maneira, pode-se dizer que os processos de luto devem ter a possibilidade de representação, isto é, ter a possibilidade de significação da perda no psiquismo e, consequentemente, em outros setores da vida do sujeito. Isso demonstra a importância da presença de um psicólogo, nos contextos de saúde, que se atente para essas questões e que ofereça uma escuta diferenciada a esses pacientes, possibilitando outra saída para além da doença.

O adoecimento dos vínculos

“Fui criada pelos meus avós, nunca conheci meu pai e tive pouco contato com minha mãe” (M7).

“Fui rejeitada pela minha mãe, ela me deu para uma vizinha quando era pequena, depois meu pai foi me buscar, mas ela sempre me tratou muito mal” (M8).

“Não me sinto merecedora, nem minha mãe gostava de mim” (M9).

“Minha mãe foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos, até quando estava grávida de mim” (M10).

É possível observar nas falas acima que essas mulheres apresentavam uma percepção de rejeição e desamparo materno que, no decorrer das entrevistas, mostrou-se relacionada com grande parte de suas queixas relativas aos vínculos familiares e seus adoecimentos. Como já citado anteriormente, o ser humano apresenta uma condição biológica incapaz. Assim, desde muito cedo, depende da presença do Outro, que no início é representado pela mãe ou alguém que faça função materna. O modo como acontecerá essa relação inicial orientará o modo como esse sujeito vai se relacionar consigo mesmo e com os outros em sua vida adulta (Decian, 2013). No caso destas pacientes, foi observado que muitas delas vivenciavam situações de violência por parte do parceiro, sendo de caráter físico, psicológico e/ou sexual.

“Ele não me deixava trabalhar, estudar e nem ir na casa da minha mãe, assim eu só ficava em casa” (M8).

“Ele é muito ciumento, tira meu celular e fica muito agressivo, me xinga e me bate quando acha que alguém está dando em cima de mim” (M9).

Segundo Lima e Werlang (2011), a violência dita como doméstica está estritamente relacionada a questões dos vínculos afetivos, pois a vítima tem algum tipo de laço afetivo com o agressor. Ainda segundo os autores, esta violência pode ser entendida como resultante de uma história de vida marcada por rejeições e vivências traumáticas que levam a mulher, por meio da compulsão à repetição, à realização de escolhas conjugais que propiciam um cenário violento.

De acordo com Laplanche e Pontalis (2001), a compulsão à repetição tem origem inconsciente, que leva o sujeito a se colocar repetitivamente em situações de sofrimento, reexperimentando vivências antigas. No caso de mulheres que estão em uma situação de violência doméstica, a compulsão à repetição pode acontecer na escolha de parceiros agressivos, que as fazem vivenciar sentimentos de desamparo e passividade, muitas vezes vivenciados em suas famílias de origem (Lima & Werlang, 2011).

De acordo com Freud (1920/1976), a perda de amor nos primórdios da existência deixa marcas na forma de uma cicatriz narcísica, estabelecendo um sentimento de inferioridade que influenciará ao longo das gerações. Então, pode-se pensar que o que aconteceu nos primeiros anos de vida de uma pessoa, na sua construção enquanto sujeito, é refletido nos seus relacionamentos futuros e em suas sintomatologias.

Isso também pode ser observado nas entrevistas dessas mulheres, pois a maioria apresentava diagnóstico médico de transtorno de ansiedade, depressão, pânico e de doenças autoimunes, além de queixas de intensas dores no corpo, crises nervosas, problemas respiratórios, falta de ar e ansiedade.

Segundo Del Corso (2016), muitas doenças apresentam íntima relação com questões da primeira infância. Nesta perspectiva, a psicanálise coloca os adoecimentos sob a égide da trajetória de vida de cada indivíduo e das marcas de suas primeiras relações com o Outro materno. Desta maneira, fez-se relevante entender como as relações iniciais se deram nessas pacientes, visto que parece existir uma grande influência da história de vida destas mulheres, principalmente no que diz respeito à maternagem, na sua escolha conjugal e nas sintomatologias apresentadas por elas.

Você tem fome de quê?

Atualmente, tem se observado um crescente aumento de casos de transtornos alimentares, e, diante da complexidade dessas patologias, é necessário entender a articulação das subjetividades desses pacientes com as estruturas culturais e sociais predominantes. Em relação aos aspectos clínicos desses pacientes observados pela psicanálise, tem sido evidenciada a predominância de sintomas que não seguem a lógica do conflito, do recalque e da representação, mas patologias com a presença de quadros narcísicos, ou seja, da ordem da ação (Kegler, 2006). Essa descarga por meio de ações pode ser evidenciada nas falas abaixo:

“Comecei a engordar no final do meu casamento, pois ele me tratava muito mal e eu estava sozinha em uma cidade que não conhecia ninguém, com uma filha pequena. Eu comia desesperadamente para me sentir melhor” (M11).

“Como muito quando fico nervosa, mas minha fome não passa nunca” (M12).

“Me sinto muito triste e choro muito, aí acabo comendo demais sem perceber” (M13).

Essas mulheres chegaram ao serviço de psicologia com o diagnóstico de obesidade de variados graus. Muitas tomavam medicação por comorbidades e já haviam tentado muitos tratamentos para emagrecer. Em suas entrevistas, foi percebido o quanto suas vidas e queixas relacionam-se a suas formas corporais e patologias associadas ao excesso de peso. Todavia, apresentavam uma extrema resistência de falar sobre si mesmas, de aspectos emocionais ou qualquer coisa que não fossem seus sintomas somáticos e de seus problemas com a comida.

Tal resistência pode ser associada ao que Lazzarini e Viana (2006) dizem a respeito da obesidade, de que nela há uma negação da forma corporal em sua particularidade humana e uma tentativa de sobrevivência que é feita por meio de um investimento narcisista, sendo um dos aspectos que caracterizam a dependência do sujeito em relação à comida. O comer na obesidade é visto como uma incorporação de algo que é do exterior para o interior, isto é, os hábitos alimentares estão ligados ao narcisismo.

Segundo Green (2001), o que se pode caracterizar nos casos de obesidade é uma precariedade das funções de maternagem precoce ou uma recusa do sujeito em realizar a separação do objeto de amor, representado pela mãe inicialmente. Essa falha pode estar relacionada às falas abaixo de pacientes que apresentavam diagnóstico de obesidade:

“Meu pai morreu e minha mãe ficou doente, nossa família acabou” (M11).

“Minha mãe viajou para o Japão quando eu era um bebê, fiquei com minha avó. Mas ela nunca gostou de mim, só do meu irmão” (M13).

Desta maneira, vê-se a necessidade de um olhar para as questões emocionais de pacientes que apresentam um diagnóstico de obesidade, pois muitas vezes sua relação com o comer e com o alimento pode estar ligada a questões psíquicas. Isso traz uma reflexão acerca de como essa patologia tem sido tratada nos contextos de saúde até hoje, em que se tem observado um grande aumento das cirurgias bariátricas com resultados não satisfatórios, visto que muitos pacientes retornam ao peso anterior e desenvolvem transtornos psíquicos após a cirurgia. Isso nos faz também pensar sobre o papel do psicólogo nestes casos, o qual muitas vezes é solicitado apenas para avaliações pré-cirúrgicas, que acontecem de maneira rápida, em poucos encontros com o paciente, ou posteriormente, quando seu sintoma não desapareceu ou, ainda, piorou.

Considerações Finais

Como mencionado no início do trabalho, este estudo teve como objetivo apresentar uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo, com mulheres atendidas pelo serviço de psicologia no contexto da Atenção Básica, a fim de discutir as relações existentes entre adoecimento e sofrimento psíquico e sua articulação à importância da escuta realizada pelo psicólogo neste contexto.

Diante disso, pode-se constatar nas falas das entrevistadas o quanto seus funcionamentos psíquicos e seus vínculos afetivos mantinham relação importante com seus adoecimentos. Isto é, os sintomas físicos apresentados pelas mulheres, os quais faziam com que buscassem o serviço de saúde, apareciam como representantes de um sofrimento psíquico. Mesmo as mulheres que apresentavam queixas ligadas aos relacionamentos afetivos e familiares dispunham de sintomas que se manifestavam no corpo, como problemas gastrointestinais, doenças autoimunes, intensas dores no corpo, problemas respiratórios, falta de ar, entre outros. Essa relação muitas vezes não era percebida de imediato pelas entrevistadas, que só depois de acolhidas suas queixas e de terem disposto de um espaço de fala tiveram a possibilidade de ressignificar suas histórias e seus adoecimentos, isto é, desenvolver a capacidade de pensar e se responsabilizar pelo que sentem em conexão com o próprio corpo. Uma possibilidade de fazer da dor palavra em vez de doença.

Neste sentido, pode-se concluir o quanto um espaço de fala proporcionado pela escuta clínica do psicólogo nos serviços de Atenção Básica pode proporcionar às pacientes uma nova maneira de entender seus adoecimentos, para além do biológico, ligados a suas histórias de vida e seus relacionamentos com o mundo.

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Recebido em: 03/01/2019

Última revisão: 24/04/2019

Aceite final: 08/07/2019

Sobre as autoras:

Flávia Angelo Verceze: Mestra em Psicologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL) com especialização em Clínica Psicanalítica. Especialista em Saúde da Mulher pela Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher (UEL). Graduada em Psicologia pela UEL. Docente Assistente no Departamento de Psicologia e Psicanálise na Universidade Estadual de Londrina. Psicóloga clínica e participa do projeto Psicanálise Clínica e Itinerante Laço Social. E-mail: vercezeflavia@uel.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0751-383X

Sílvia Nogueira Cordeiro: Doutora em Ciências Biomédicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente permanente, adjunto B, do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher. Coordenadora do Laboratório de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Departamento de Psicologia e Psicanálise da UEL. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq: Avaliação Psicológica e Processos Clínicos. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da UEL. Membro do grupo de trabalho Psicanálise e Clínica Ampliada da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Experiência na área de Psicologia da Saúde, com ênfase em Psicanálise. E-mail: silvianc@uel.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0834-8610


1 Endereço de contato: Rua Uruguai, 1738, apt. 703, Londrina, PR, CEP: 86010-210. E-mail: vercezeflavia@gmail.com

doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.vi.894