Sobre o (Im)Possível de Dizer: Uma Discussão Psicanalítica sobre as Escarificações entre Adolescentes na Atualidade
What’s (Im)Possible to Say: A Psychoanalytic Discussion about the Scarifications Among Adolescents Today
Sobre lo (Im)Posible de Decir: Una Discusión Psicoanalítica sobre la Escarificación entre los Adolescentes de Hoy
Marina Diniz Luna do Nascimento
Universidade Federal da Bahia
Edilene Freire de Queiroz
Paula Cristina Monteiro Barros
Universidade Católica de Pernambuco
Resumo
As escarificações na adolescência têm ganhado estatuto de problemática social, interrogando saberes e práticas da saúde, nelas incluindo a psicologia e a psicanálise. Este artigo é fruto de uma dissertação de mestrado, que partiu de interrogações levantadas na prática com adolescentes em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O objetivo do artigo foi discutir, a partir da psicanálise, o lugar das práticas autolesivas no discurso e na vida de adolescentes do sexo feminino. A pesquisa, baseada no método qualitativo, teve como corpus postagens de adolescentes em grupos na rede social Facebook que se identificam pelas práticas autolesivas. Os resultados possibilitaram alcançar o objetivo deste trabalho e levaram a concluir que as adolescentes, por meio das postagens, tentam dar borda para o que não conseguem nomear, para o imponderável, para o que se coloca como dor de existir. Assim, foi notória a identificação entre adolescentes que recorrem ao ato autolesivo, ganhando relevo a função de suplência na formação de grupos, bem como o teor inventivo na escrita do impossível, apontando para a aposta, na escuta psicanalítica, em outras saídas que permitam um novo posicionamento subjetivo dessas adolescentes perante o mal-estar e o sofrimento em que se encontram.
Palavras-chave: práticas autolesivas, adolescência, atualidade, escrita, Psicanálise
Abstract
Scarifications in adolescence have gained the status of a social problem, challenging health knowledge and practices, including psychology and psychoanalysis. This article is the result of a master's dissertation, which stemmed from questions raised during practice with adolescents at a Psychosocial Care Center (CAPS). The aim of the article was to discuss, from a psychoanalytic perspective, the role of self-harming practices in the discourse and lives of female adolescents. The research, based on a qualitative method, used as its corpus the posts of adolescents on Facebook groups who identify with self-harming practices. The results allowed the aim of this work to be achieved and led to the conclusion that the adolescents, through their posts, attempt to give form to what they cannot name, to the imponderable, to what manifests as the pain of existence. Thus, it was evident the identification among adolescents who resort to self-harming acts, highlighting the supplementary function in the formation of groups, as well as the inventive nature in writing the impossible, pointing to the importance of psychoanalytic listening in offering other ways that allow these adolescents to adopt a new subjective position in the face of the malaise and suffering they experience.
Keywords: self-harming practices, adolescence, contemporary issues, writing, Psychoanalysis
Resumen
Las escarificaciones en la adolescencia han adquirido el estatus de problemática social, cuestionando los conocimientos y prácticas de la salud, incluyendo la psicología y el psicoanálisis. Este artículo es el resultado de una disertación de maestría, que surgió de interrogantes planteados en la práctica con adolescentes en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS). El objetivo del artículo fue discutir, desde el psicoanálisis, el lugar de las prácticas autolesivas en el discurso y en la vida de adolescentes de sexo femenino. La investigación, basada en el método cualitativo, tuvo como corpus publicaciones de adolescentes en grupos de la red social Facebook que se identifican con las prácticas autolesivas. Los resultados permitieron alcanzar el objetivo de este trabajo y llevaron a concluir que las adolescentes, a través de sus publicaciones, intentan dar forma a lo que no pueden nombrar, a lo imponderable, a lo que se manifiesta como el dolor de existir. Así, fue notoria la identificación entre adolescentes que recurren al acto autolesivo, destacándose la función de suplencia en la formación de grupos, así como el carácter inventivo en la escritura de lo imposible, apuntando a la importancia de la escucha psicoanalítica en la oferta de otras salidas que permitan una nueva posición subjetiva de estas adolescentes frente al malestar y al sufrimiento en que se encuentran.
Palabras clave: prácticas autolesivas, adolescencia, actualidad, escrita, Psicoanálisis
Introdução
A prática da psicanálise num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) I conduziu à apreensão de uma particularidade da adolescência, a saber: o uso do corpo em sobreposição ao discurso. Durante a prática com adolescentes, foi notório o uso recorrente do corpo, que, como palco de atuações, configura uma situação de risco para o sujeito. Nessa prática, um sintoma ganhou destaque, corroborando sua discussão e visibilidade na atualidade: o ato de cortar-se, de escarificar-se, sobretudo no público adolescente do sexo feminino. Esse sintoma foi percebido em um número considerável de casos acolhidos no serviço, o que levou à construção de um grupo terapêutico, por meio do qual os(as) adolescentes abordaram diversas problemáticas enfrentadas naquele período de suas vidas, tendo as escarificações um lugar de destaque.
O termo “autolesão” se refere ao ato de se machucar intencionalmente, de forma superficial ou moderada, alterando o tecido corporal e resultando em ferimento suficientemente grave para provocar danos, apesar de se considerar não haver, nesse ato, uma intenção suicida consciente. Entre os atos considerados como autolesão, está o de escarificar-se (Silva & Botti, 2018), também popularmente conhecido como cutting ou automutilação (Ferreira & Costa, 2018).
Segundo a pesquisa de Silva e Botti (2018), no Brasil, o tema da automutilação ainda é relativamente pouco abordado, apesar da elevada busca pelo termo na internet. Nesse sentido, a pesquisa pela palavra “automutilação” em vídeos do YouTube aumentou de 141 resultados em 2012 para 7.140 em 2015, e, nos mesmos anos, os grupos do Facebook sobre o tema cresceram de 7 para 94. A pesquisa revelou, ainda, que a maior parte do público que integra esses grupos é de meninas (70,60%).
A referida pesquisa traçou também um perfil para os membros dos grupos das redes sociais vinculados ao tema das autolesões, identificando uma prevalência do sexo feminino (70,60%). Quanto à idade, a maioria não declara essa informação (97,54%), embora, pelo fato de 67,92% possuir vínculo escolar (ensino fundamental e ensino médio) – dentre os quais 82,91% em instituições públicas –, pode-se inferir uma maioria de adolescentes pertencente às classes econômicas médias a baixas (Silva & Botti, 2018).
De forma similar, pesquisas internacionais também identificaram o sexo feminino (78,9%) como sendo mais propenso a ser registrado e participar ativamente de páginas em redes sociais virtuais que abordam o comportamento autolesivo (Whitlock, Powers & Eckenrode, 2006 citado em Ferreira & Costa, 2018).
Esses dados corroboram a relevância da temática na atualidade, posto que circunscreve uma problemática que tem preocupado familiares, instituições e profissionais que lidam com adolescentes. Deste modo, foi a partir do encontro com adolescentes atendidos(as) num CAPS, os quais usam seus corpos como palco de suas atuações, que algumas questões se impuseram, inspirando uma dissertação de mestrado, a qual se propôs a problematizar as autolesões em adolescentes do sexo feminino, refletindo como se dá o uso do corpo para estas adolescentes. A escuta às adolescentes nos levaram, portanto, às seguintes indagações: seriam esses atos endereçados ao olhar do Outro? Haveria neles algum apelo de se construir laços com um grupo? Além de um ato singular, são também fenômenos políticos e culturais? São respostas à angústia da dor de existir ou a alguma situação traumática? São tentativas de fugir da dor de um trauma? O que os atos de cortar a própria pele (re)velam?
No rastro dessas questões e tomando por base os principais resultados da referida dissertação de mestrado, foi traçada estrutura deste artigo, que apresentará, num primeiro momento, a trajetória metodológica da pesquisa, seguida dos pilares teóricos que deram sustentação à discussão, bem como contemplaram os aspectos que definem a problemática estudada. Nesse sentido, ancorada no referencial teórico psicanalítico, a escrita discorrerá, num segundo momento, acerca do sujeito adolescente, das marcas corporais, da noção de corpo para a psicanálise. Por fim, num entrelaçamento entre os dizeres das adolescentes e os ditos teóricos, finalizamos com uma discussão teórica-prática que endossa a relevância deste estudo para as práticas e as pesquisas psicanalíticas.
Percurso Metodológico
A pesquisa que resultou neste artigo baseou-se no método qualitativo e teve como corpus de análise postagens/testemunhos/apelos de adolescentes na rede social Facebook, em grupos criados em torno do tema das escarificações. Esses grupos, em geral, são compostos por pessoas que têm interesse pelo assunto, especialmente por adolescentes que recorrem, recorriam ou pensam em recorrer ao ato autolesivo. Tendo em vista que os grupos pesquisados eram de livre acesso e as postagens de domínio público, a entrada da pesquisadora não apresentou nenhuma dificuldade, mas, considerando tratar-se de narrativas acerca de vivências tão complexas, as administradoras dos grupos foram contactadas, sendo-lhes solicitada, após apresentação da proposta da pesquisa, autorização para a permanência no grupo, como observadora.
O estudo pautou-se em preceitos da pesquisa em psicanálise, que prioriza as manifestações discursivas como via de expressão de conteúdos inconscientes. Em se tratando do ambiente virtual como campo de pesquisa, Arteiro (2017) destaca uma nova modalidade discursiva nos ambientes midiáticos, num contexto sociocultural em que as redes sociais assumem um lugar importante especialmente para os adolescentes. Pesquisar no espaço digital permite, sugere a autora, acessar algo abrangente sem perder a individualidade da discussão.
A escolha das narrativas das adolescentes foi resultado do seguinte percurso: I. Num primeiro momento, foi realizada uma pesquisa dos grupos sobre a temática da automutilação na rede social Facebook, utilizando os seguintes descritores: escarificação, autolesão e automutilação. Foram encontrados 97 grupos, dos quais foram escolhidos os cinco (5) que contavam com o maior número de participantes, conforme discriminado a seguir: “Automutilação V8” (1,7 mil membros), “SOS automutilação grupo de apoio” (5,3 mil membros), “Auto-mutilação” (2.558 membros), “Automutilação #se apresente” (2.158 membros), “Automutilação” (1.035 membros). II. Posteriormente, foi realizada uma análise dos elementos postados nos grupos – posts, depoimentos, descrição nas imagens, respostas aos posts, descrição do grupo – com a intenção de deixar-se fisgar pelo que chamasse atenção da pesquisadora, conforme proposto por Arteiro (2017). Esse momento foi nomeado de leitura flutuante, com base no pressuposto psicanalítico da escuta flutuante, em que o psicanalista está atento àquilo que sobressai como elemento inconsciente do discurso, aos não ditos, às entrelinhas do dizer. III. Na terceira etapa, foi realizada outra leitura, com o objetivo de selecionar os recortes que comporiam a discussão. Para isso, foi preciso que a pesquisadora estivesse advertida dos atravessamentos transferenciais, inerentes à pesquisa em psicanálise, para adentrar no campo intersubjetivo que o encontro com os dados produz (Arteiro, 2017). IV. Na quarta etapa, foram discutidos os recortes das falas e as imagens selecionadas, bem como realizada uma articulação com o aporte teórico da pesquisa.
O discurso e as postagens das adolescentes impeliram-nos a indagar acerca do lugar por elas atribuído às escarificações, bem como o que essas escarificações dizem, como dizem, para que dizem e para quem dizem, colocando-nos numa posição de escuta aos ditos e não ditos dos(as) adolescentes, reveladores de tentativas de sobreviver às suas dores por meio de malabarismos próprios. Dessa posição de escuta, foi possível rascunhar a trajetória seguida por muitas adolescentes, a qual tem, como ponto de partida, a entrada nas escarificações, seguida da permanência nos cortes, apontando, por vezes, possíveis saídas e escritas de novos percursos. Tínhamos, assim, na entrada, na permanência e nas saídas, eixos temáticos que guiaram a discussão.
Antes de discutirmos as narrativas das adolescentes, apresentaremos alguns pressupostos psicanalíticos, especialmente freudianos e lacanianos, acerca da adolescência, das escarificações e do corpo. Em seguida, analisaremos, a partir de cada tempo – entrada, permanência e saída –, o lugar das escarificações para os sujeitos adolescentes.
Desenvolvimento
Quem são esses Sujeitos Adolescentes, Hoje?
Falar sobre a adolescência é complexo e abrange uma série de perspectivas que envolvem construções históricas, culturais, sociais, biológicas e psíquicas. Desse modo, a adolescência não pode ser lida de forma isolada e fechada em si mesma, visto que ela está em constante transformação, na medida em que a sociedade avança e esses sujeitos lidam com os efeitos de uma época e dos discursos que incidem sobre eles.
Partindo da etimologia da palavra “adolescente”, proveniente do latim adolescens (Veschi, 2020), que é sinônimo de “crescer”, trata-se de um momento de transição, de passagem, em que há um corpo “crescente”, tanto em seus aspectos morfológicos como sociais e simbólicos. Este, portanto, passa a ser um momento, uma lacuna temporal, um momento de suspensão que tem um lugar decisivo na constituição subjetiva.
Remontando à história social da infância na sociedade ocidental, a partir de autores como Ariès (1986), Le Breton (2017) e Viola (2017), percebe-se que, do momento em que o foco passa a ser as figuras e os papéis sociais na vida privada, a adolescência passa a chamar atenção, sendo apontada como uma “idade crítica”. Desse modo, aquilo que era ignorado nas sociedades tradicionais, por volta do século XVII, passa a ser visto do ponto de vista crítico, no século XIX, período em que a puberdade é tomada como “propriedade” da medicina, com base na ideia de que, nesse momento, despertam-se a sexualidade e a violência. Assim, a forma como vemos a adolescência, hoje, foi sendo forjada no contexto ocidental e é reflexo do advento da modernidade, da revolução da ciência, da tecnologia, da industrialização, do mundo globalizado e do desenvolvimento do modelo econômico capitalista.
Dando ênfase à experiência singular, a psicanálise incide como um discurso que permite avançar na construção de uma hipótese a respeito do sujeito adolescente. Freud (1905/1996) traz contribuições a respeito da puberdade, as quais permitem uma leitura e uma aproximação da adolescência. Para o autor, no tempo infantil, a libido é autoerótica, ao passo que, com a chegada à puberdade, o investimento libidinal é direcionado na busca de um objeto sexual, o que não se dá sem um sentimento de tensão ou desprazer. Em consequência disso, existe uma pressão para modificar a situação psíquica, o que se dá de forma estranha ao sujeito, que, muitas vezes, vivencia esse momento com dificuldade e sofrimento. Outra contribuição para a clínica com adolescentes diz respeito ao que Freud (1905/1996) aponta como sendo o trabalho mais difícil nesse momento, que é o impulso ao desligamento da autoridade dos pais, uma separação que marca um momento da constituição subjetiva e, a partir disso, os sujeitos buscam elementos na cultura, o que sinaliza um importante movimento que difere do infantil. Esses dois elementos propostos por Freud elevam este tempo a um processo de elaboração subjetiva e reposicionamento no laço social, marcado pela relação com o Outro.
Nesse mesmo caminho, a peça “Despertar da primavera”, de Frank Wedekind (1890/91), interessou a Freud e a Lacan, visto que ela inaugurou uma discussão importante no que se refere aos impasses que se dão neste tempo. Os personagens da peça são jovens alemães que se encontram no final do século XIX e enfrentam impasses diante do sexual, da vida e da morte. Esses impasses são despertados pelas intrusões no corpo decorrentes da puberdade, como também por conflitos psíquicos perante um estranhamento de si e do encontro com o outro, do seu lugar na família e no laço social. Podemos identificar esses elementos nas falas dos personagens Melchior: “Eu só queria saber o que é que a gente veio fazer neste mundo!”. Também em Moritz:
Meus pais poderiam ter cem filhos melhores que eu. Mas eu estou aqui e nem sei como, e ainda sou obrigado a assumir a responsabilidade de ter nascido. Melchior, você pensou nisso . . . sobre como a gente veio parar nesse redemoinho?
Lacan (2003/1974) escreve o prefácio desta peça, ressaltando que, do encontro com o sexual, ninguém escapa ileso, num tempo em que o adolescente constata a impossibilidade de uma completude na relação com o outro, donde a proposição lacaniana acerca da inexistência da relação sexual. A marca do desencontro com o outro lança os sujeitos a um desamparo, com o qual cada um precisará se haver, encontrando saídas singulares, a exemplo de Moritz, pela via do suicídio, e de Melchior, que se vê dividido entre a vida e a morte, construindo, para sustentar a escolha pela vida, um nome próprio.
O sujeito adolescente é, portanto, aquele que se depara com questões cruciais quanto à existência. Desse modo, sua inscrição no mundo exige uma posição da qual o sujeito precisa se dar conta por si só e não à sombra de Outro, como na posição infantil. Isso exige minimamente uma separação do Outro, como lembra Alberti (2009), para que seja possível ao adolescente elaborar suas próprias noções a respeito do seu corpo e do seu lugar no mundo. Essa separação, todavia, não implica prescindir do Outro, já que o sujeito depende dele para estar imerso no mundo da linguagem. Além disso, propõe Alberti (2009), separar-se dos pais, como possibilidade de escolha, impõe que o Outro esteja lá, enquanto ponto de apoio para o psiquismo, para que dele o adolescente possa se separar. A adolescência, assim, implica um intenso trabalho psíquico de elaboração de lutos, de novos processos identificatórios, de desidealização das figuras parentais, de um posicionamento diante do mal-estar.
Nessa perspectiva, os sintomas surgem nesse tempo em resposta ao mal-estar perante esse trabalho de separação, o que os leva a reencontrar-se com o que é da ordem do traumático e do real. Assim, diante do imponderável do encontro com o real do sexo e da morte, àquilo que não se nomeia – na passagem adolescente da cena familiar para a cena social –, o agir se coloca como uma resposta possível e bastante sedutora. Além disso, a partir de um recorte social, histórico e cultural, no qual o corpo está em evidência, a autolesão ganha destaque e se apresenta como um ato que ameniza o mal-estar.
Marcando o Corpo que Dói
Mediante o trabalho psíquico que configura a adolescência, as marcas corporais e as escarificações se colocam, por vezes, como expressão subjetiva para fazer face ao mal-estar e aos conflitos psíquicos com os quais o adolescente se depara. Contudo, as escarificações nem sempre tiveram esse lugar, posto que, em algumas sociedades tradicionais, a vivência da adolescência não era tida como um tempo de elaboração psíquica. As marcas corporais faziam parte de um rito coletivo por meio do qual o adolescente ascendia na cultura. Nas sociedades tradicionais, portanto, as autolesões eram vistas como ritos de passagem, como aponta Viola (2017). Esses rituais eram dolorosos e eram experienciados como uma simbolização da passagem de um estado a outro, do lugar infantil ao adulto, como um ato simbólico de um (re)posicionamento na comunidade – como ainda ocorre em algumas tribos – e numa dada cultura, que legitimava a mudança de posição do então adolescente.
Do lugar de onde estamos problematizando as escarificações na atualidade, o ato de lesionar-se se situa muito mais como um sintoma numa cultura que parece perder a referência da palavra e na qual o ato ganha espaço como resposta ao sofrimento psíquico.
Ressaltamos, no entanto, que, embora as escarificações venham assumindo um lugar de destaque no cenário atual, especialmente em grupos de adolescentes, elas não devem ser enviesadas por leituras apenas coletivas, visto que o ato da escarificação consiste num ato singular do sujeito, que apresenta toda uma complexidade em face das dimensões subjetivas que a norteiam. Assim, no que chamamos de dimensões das práticas autolesivas, consideramos fundamental uma leitura do que movimenta as adolescentes no sentido do ato; do que as leva a nele permanecer, geralmente, de forma cada vez mais invasiva; e do que se constrói como saídas possíveis para as autolesões.
Que Corpo Trata a Psicanálise?
Esse corpo, alvo de ataques pelas autolesões, possui uma dimensão ampla, nunca podendo ser lido apenas por sua imagem e organicidade, mas também pelo atravessamento da linguagem que o determina – permitindo sua apreensão como corpo simbólico – e do gozo – nele imprimindo a marca do irrepresentável. É com a dimensão de corpo pulsional que a psicanálise se ocupará, corpo constituído na relação com o olhar e o desejo do Outro; corpo singular, que se insere na cultura e no coletivo.
A experiência da escuta e os discursos postados na internet revelam que o corpo é palco de expressão das angústias, dos descontentamentos, de reivindicações, portanto, marcadamente atrelado ao campo da linguagem. A necessidade de se utilizar do corpo, segundo Costa (2002, p. 57), indica “a nossa condição de desnaturalização”, pondo em relevo a noção de corpo pulsional, o qual demanda a construção de suportes e bordas corporais.
Para que haja uma apreensão simbólica do corpo, como unidade narcísica, o sujeito demanda a presença de outra pessoa, que o desnaturalize e o insira no mundo humano. A partir do Outro, inicialmente familiar e logo depois o laço social, é possível distinguir o que faz parte de si do que não faz, em uma relação especular que delimita bordas, fazendo-nos apreender o corpo como unidade e reconhecer suas partes.
Na psicanálise, tratamos de distinguir o ser um corpo do ter um corpo, compreendendo que a relação do sujeito com o corpo não é vista a partir de sua antologia, mas sim de sua propriedade. A única forma por meio da qual o sujeito se identifica a esse corpo é pela via do sintoma, aquele que dá corpo ao ser falante. Nada mais familiar e mais estranho do que a experiência do próprio corpo, sua natureza de imagem, de significante e de substância gozante (Zucchi, 2014).
A experiência com o corpo ganha relevo para o sujeito adolescente, que se encontra às voltas com o estranhamento de seu corpo, de sua imagem, com o seu lugar no mundo, com sua existência, com a sexualidade e os laços com os outros. Esses elementos se colocam de forma mais intensa diante de acontecimentos de difícil apreensão e da atualização e rememoração de cenas infantis. Diante de um “curto-circuito” simbólico, perante a dificuldade de contornar com palavras o mal-estar e o que se coloca como imponderável, o adolescente se depara com uma situação de angústia e desamparo, em que as urgências subjetivas encontram, muitas vezes, na atuação, uma via de escape e de apaziguamento. É nesse momento que, muitas vezes, iniciam-se os cortes, e é a partir desse ponto que apresentaremos algumas narrativas de adolescentes, para com elas tentar situar o lugar e a que respondem as escarificações em suas vidas.
Resultados e Discussões
O Início dos Cortes: Daquilo que Não é Possível Dizer
Considerando que o sujeito constitui-se e é marcado por significantes, insígnias e atributos que vêm do Outro, caberá ao adolescente, no confronto com as falhas e com a quebra da consistência imaginária do Outro, a construção de um novo lugar no mundo, atravessado pela atualização de situações traumáticas e por um processo de desidealizações. Nesse processo, as escarificações surgem, em alguns casos, como marcas no real do corpo daquilo que outrora se fez marca para o corpo simbólico. A marca do corpo tentará, nesse sentido, representar o irrepresentável.
Tomando como material as postagens de adolescentes em grupos de Facebook, o início das escarificações decorre de situações que as antecedem, sinalizadas pelas adolescentes como impossíveis de lidar, o que reflete, a nosso ver, a convocação para que o adolescente assuma uma nova posição diante das questões vividas, dado que a posição infantil não dá conta de responder às novas demandas.
No discurso das adolescentes, a maioria das queixas de não reconhecimento e de conflito direciona-se ao vínculo com as figuras parentais ou cuidadores. Antes mesmo de falarem sobre o lesar-se, sobressaem-se narrativas sobre o não reconhecimento da sexualidade, abusos sexuais, bullying na escola com conteúdos sexuais, separação dos pais, dentre outras.
A dificuldade das adolescentes perante o vivido e o não saber fazer com isso ressoam em relatos de tristeza, de solidão, de incertezas, por vezes de autodepreciação, somadas as dificuldades e os conflitos nas relações parentais e na escola, as decepções nos primeiros encontros amorosos. Em nossa leitura, diante da angústia e do desamparo, algumas adolescentes respondem por meio do agir, a exemplo das escarificações, tentativas de suicídio, isolamento, fugas de domicílio, uso de drogas, dentre outros atos que parecem atestar o que se coloca como impossível de dizer, bem como uma fragilidade de referências simbólicas que deveriam operar como espaço possível de endereçamento. Nos posts do Facebook, as adolescentes relatam depararem-se com situações difíceis, encontrando, no grupo, um espaço para o compartilhamento dessas situações. Destacamos aqui o modo como as adolescentes se utilizam do ciberespaço e como o material postado é publicado e compartilhado, expondo as experiências vividas no grupo, numa possibilidade de estabelecer laços com o outro. Além disso, os grupos parecem se colocar como um espaço de endereçamento que acolhe as palavras, fazendo freio, para algumas meninas, por meio da escrita, ao ato de cortar-se. A seguir, o trecho da postagem de uma adolescente:
Uma criança de 13 anos de idade não entende o real motivo do bullying eu não entendia eu não sabia explica se era meu cabelo minha roupa minha maquiagem só sei que doía e muito eles me machucavam e eu me machucava me arranhava lembro de uma vez ficar tao mais tao arranhada que fiquei uma semana sem sair de casa o tempo passou mudei de escola e cresci e junto comigo cresceu os cortes esqueci as unhas e os arranhares e achei dentro de um estojo uma lamina de apontador solta não pensei duas vezes e quando vi já era rotina eu sentada no chão do meu quarto radiada de laminas e lagrimas e sangue hoje tenho problemas com minha família não tenho muitos amigos e e difícil me relaciona com alguém carrego marcas de um passado infernal rasgada em meus pulsos e já tentei suicídio algumas vezes to escrevendo esse poste mais como um desabafo pois esse tempo que eu estou aqui escrevendo podia esta me machucando e o pior e me machucando por pessoas que não merecem. obrigado pela atenção.1
Esse escrito traz o relato de uma adolescente que diz o que, na sua experiência, levou-a ao início dos cortes. O primeiro ponto que ela destaca é o bullying sofrido, fazendo-a interrogar sobre o seu corpo e questionar por que é alvo da violência. Esse elemento, para ela, reverbera no surgimento das autolesões.
Em seguida, essa adolescente traz que, mesmo mudando de escola, as marcas ficaram cravadas nessa história, de modo que a possibilidade de sair da situação e apontar algo do seu desejo vai se anulando, reforçando as marcas como aquilo que não se apaga. A partir disso, a autolesão passa a fazer parte de sua rotina, acompanhada de lâminas, lágrimas e sangue.
Assim, o início dos cortes parecem revelar impasses subjetivos, no que tange ao lugar do adolescente no mundo, e é tentando decifrar seus próprios enigmas, seu lugar, seu corpo, sua sexualidade, que surgem e atualizam-se cenas traumáticas que cedem passagem para o ato. A seguir, o relato de outra adolescente:
. . . irei conta um pouco da minha história pra vocês aos 11 anos de idade eu sofria bullying e nunca disse nada para os meus pais por medo de apanha novamente sem motivos . . . eu sofria bullying meus avós me desprezado minha família me odeia meus amigos indo embora sem me diz o porquê eeeh então ao meus 13 anos, parei no hospital por tentar me mata então a cada vez mais eu me cortava e mais e mais e isso cada vem mais iria me matando por dentro.
Uma vez iniciados os cortes, a partir da intrusão de um estado de angústia, a continuidade desses cortes aponta para uma dificuldade de atravessar essas situações pela via simbólica, levando, assim, as adolescentes a se engancharem nos atos como única saída possível. Desse modo, a partir das falas das adolescentes, dois aspectos se colocam: primeiramente, o lugar das identificações com um grupo, entre pares que apresentam um vivido em comum, permitindo a partilha de histórias, a troca de experiências, a construção de laços. O segundo aspecto consiste na tentativa de dizer, pela escrita, o impossível de dizer, uma saída inventiva e criativa para o que não se pode dizer, mas que, em alguma instância, diz-se, constituindo o que apontamos como “escritas do impossível”.
Das Identificações: Fazendo Grupo é Possível Dizer Algo
A experiência corporal é também uma condição social, como refere Le Breton (1953), afirmando que o corpo passa a existir a partir das identificações que se dão no laço social. Assim, permite situá-lo como efeito dos fenômenos sociais em que o sujeito estará inserido.
Há algo no grupo que faz funcionar a partilha dessa construção corporal. Se antes os ritos funcionavam com a sociedade oferecendo elementos para que os adolescentes tivessem garantias de se inserir no laço social, hoje, com as mudanças advindas da tecnologia e das novas formas de laço, surgem também novas formas de funcionamento, trazendo especificidades para a criação dos grupos nas redes sociais. É possível perceber que o ambiente tecnológico passa a ser um elemento central nas partilhas e nas formas de fazer grupo, por meio do qual os seus membros se apoiam um no outro, permitindo a construção de modalidades de atos coletivos.
Os grupos na rede social Facebook, mais especificamente os de adolescentes que recorrem às autolesões, partilham sobre os embaraços com os quais não conseguem lidar, escancarando elementos em torno de seus atos, do encontro com o sexual, da morte e da falta. As postagens permitem trocas entre pessoas que já praticaram ou praticam atos autolesivos. Algo circula no “você não está sozinho, estamos juntos...”; algo se coloca na oferta de um suporte para o outro, no fazer-se presente. O grupo definido como de “apoio” surge para alguns como uma possibilidade de reconhecimento nas parcerias horizontalizadas, funcionando como uma tentativa de construção, por meios dos enlaces por eles ensejados, de um corpo simbólico.
Na psicanálise, a identificação é um conceito que tem uma função importante e necessária na inserção do humano, isso porque algo se incorpora do outro no corpo próprio, e a partir disso as parcerias se constroem e o sujeito se insere no laço social (Siqueira, 2009).
Nesse sentido, a identificação é constituinte do ser falante, desde o momento em que se é um bebê, passando pela construção do ideal do eu, como assinala Lacadée (2017), ganhando assim um novo status, relacionado ao significante. O significante encarna o real e seria desta forma que um traço determinaria a série de identificações posteriores.
Percebemos que o grupo tem uma função para as adolescentes, principalmente pelo viés das identificações, lugar que torna possível que se diga algo sobre os cortes, lugar, mesmo que virtual, que promove um encontro entre pares, como no exemplo a seguir:
Publicação: Eu tinha ficado quase seis meses sem me machucar, mas aqui estou eu (foto dos cortes)
Resp.: to a três semanas eu acho, tentando não fazer mais isso cmg... mas ta foda.. se quiser cvs pode mandar msg... posso tentar ajudar. Se quiser claro.
Resp.: to quase fazendo o mesmo...
Resp.: estou a quase a nove meses mais a vontade esta maior e as angústias e essa tristeza me dando cada vez mais vontade
Resp. 5: quer conversar? Estou em tratamento talvez possa ajudar.
O grupo terá funções específicas para cada um de seus membros. Neste estudo, ele se sobressai como lugar em que se depositam e se compartilham as angústias; lugar de suporte; lugar para o qual apelos de cuidado e de reconhecimento são endereçados. A forma com que as mensagens são trocadas, com falas que aproximam as vivências, localiza pontos em comum e abre a possibilidade de conversas, de partilhas, de acolhimento, como vemos no trecho a seguir: “sei como você se sente, faço isso praticamente toda semana”. Após algumas postagens, decorridas trocas de mensagens, podia-se perceber o recuo de algumas adolescentes diante da iminência do ato, além de se disponibilizarem a conversar com os pares que ali se encontravam. Apesar de laços em geral frágeis, demandas delicadas e manejos difíceis, o grupo opera de alguma forma como apaziguador para alguns, tornando possível dizer algo através dele e encontrando um outro lugar para o que antes era puro ato.
Ao mesmo tempo, é notório que há algo que escapa ao grupo e o transborda. Dessa forma, o que está além do grupo volta-se para o próprio corpo, podendo constituir uma escrita no corpo. Costa (2002) aponta que há um espaço que vai além do coletivo, ou seja, permanece no âmbito privado; lida, assim, com os restos e as impossibilidades de universalizar a experiência, como podemos observar nas anotações de diários e blogs de adolescentes.
Esse elemento se destaca nas postagens, em que se observa também o caráter de “vício”, a que algumas adolescentes se referem, expressando-se por meio da continuidade dos cortes, num movimento mortífero que presentifica a compulsão à repetição. Demarcando sua peculiaridade e distinção em relação ao início dos cortes, a insistência e a permanência neles sugerem situar o sujeito em face de uma modalidade de gozo, que impede o distanciamento e a interrupção do ato de cortar-se.
O Corpo em Ato nas Adolescentes Meninas: Algo Escapa
Apesar de, em alguns casos, o grupo fazer suplência aos cortes no corpo, há algo que a ele escapa, fazendo prevalecer a manutenção dos cortes, a despeito de uma escrita que parece se esforçar por nomear e fazer borda no que invade o corpo. O ato de escarificar-se vai se aproximando de uma compulsão, como a clínica da toxicomania, visto que as adolescentes afirmam que não conseguem parar e sentem prazer ao fazê-lo.
O ato de escarificar-se vai se aproximando de uma compulsão, como a clínica da toxicomania, visto que as adolescentes afirmam que não conseguem parar e sentem prazer ao fazê-lo.
Aqui, a dimensão do corpo se amplia para uma perspectiva do real e do gozo. Nesse ponto, os atos nesse/desse corpo insistem na repetição; as escarificações aproximam-se de um momento de suspensão do sujeito, visto que os cortes se sobressaem como um excesso não passível de significação. A continuidade dos cortes, por esse viés compulsivo, mantém o desejo e as saídas possíveis em suspenso, limitando-se a um discurso de impossibilidades e de repetições.
Assim como no que se fazia possível apreender na escuta às adolescentes no CAPS, algumas adolescentes expressam nas postagens algo da ordem de uma incompreensão, de um querer saber sobre por que continuam se cortando, fator de estranhamento para elas, que, na prática, interroga as intervenções. Além disso, algo da posição feminina, numa experiência de escuta em grupo no CAPS, ganhou destaque, na medida em que participantes meninos revelavam medo e o receio de se escarificar, pela insuportabilidade da dor.
O que se discute a respeito do feminino para a psicanálise parte da noção do enigma, como proposto por Freud (1932/1933), e do litoral, como proposto por Lacan (1971/2009). Trabalhamos com a hipótese de que a sexualidade feminina apresenta um trabalho a mais, na medida em que, para o feminino, está em jogo um gozo para além do falo (Lacan, 1972-1973/1985), ou seja, está para além da linguagem e da possibilidade de nomear. Assim, sem encontrar referência nas palavras, o ato no próprio corpo parece marcar a escrita do impossível de dizer.
Os depoimentos das meninas nos grupos do Facebook retratam o que escapa às palavras, o que as aproxima da morte, o que faz do recurso aos cortes na carne uma saída possível para a dor do existir. Nessa perspectiva, duas adolescentes escrevem os seguintes trechos:
já suportei demais, não aguento mais isso. 3 meses sem me cortar, hoje eu vou quebrar essa abstinência”; “eu só queria dormir e nao acorda mais, esse buraco dentro de mim que parece nao ter fim, ta difícil de continuar.
E, ainda, na seguinte:
Cheia de insetos eu quero viver, eu quero viver e não morrer, isso sufoca, isso sufoca, meu peito está vazioo, meu coração está frioo, minha mente está quente de tanto pensar nesse vazio, é o vazio, Me desculpe amor eu sinto dor e to avisando que não estou bem. E estou sufocando, meu peito está vazio, vazio. Eu sei é a morte dizendo que tenho que ir, é o vazio. Só outro vazio.
Na escrita das adolescentes, alguns significantes se repetem, a exemplo de “buraco” e “vazio”, os quais endossam a leitura de que o ato do corte, bem como, numa outra direção, a escrita no Facebook, parecem tentar fazer borda nisso que não se apreende, que é infinito, fonte de angústia: o buraco e o vazio. É nessa dimensão de tentativa que sustentamos a aposta na intervenção, no sentido de uma escrita do impossível que as coloque num lugar mais digno no laço social e para si mesmas.
A Escrita do Impossível
Nas postagens e nas escutas realizadas no CAPS, destaca-se uma relação com o objeto lâmina que assume um lugar problemático, quando, por exemplo, uma adolescente se refere à lâmina utilizada para cortar-se como sua “melhor amiga”. É no deslizamento do discurso, de um significante a outro, do objeto cortante que é também a “melhor amiga”, que algo do sujeito pode emergir, dando abertura para deslocamentos do objeto lâmina e para a simbolização do ato. Aposta-se, assim, no que pode se dar com a escrita de um corpo que não cole ao objeto lâmina – que a fere e a faz sangrar –, mas que permita a escrita ou um esboço de escrita do que foi impossível de simbolizar de sua história.
Araújo (2019) e Madeira (2020) enfatizam a potência da escrita de si com uma proposta de trabalho para jovens que fazem escarificações na perspectiva de uma construção autobiográfica. Já para Ferreira e Costa (2018), as escarificações consistem numa escrita no corpo, que sinalizam o caminho dos cortes como uma modalidade de escrita. Trata-se de uma escrita que precisa ser elaborada para que seja possível às adolescentes situarem-se em sua história, nos seus laços, nas relações com seus pares. Marcar o corpo produz um distanciamento do afeto que incomoda, mas ele não é suficiente para uma retificação do lugar que o sujeito pode ocupar no mundo.
Nesse momento, utilizando elementos das próprias adolescentes que conseguiram fazer uma torção no seu ato, atrevemo-nos a dizer que há algo que pode bordejar esse gozo não significantizável: a escrita do impossível. Uma escrita que aponta para a saída possível diante do impossível, ou, ainda, uma escrita que aponta para uma subversão do corte, uma torção no ato.
Identificamos, no escrito a seguir, essa tentativa de dizer do amor e da morte, esses que são impossíveis de serem ditos como um todo, sendo possível dizer apenas em partes, como tentativa de escrita do impossível:
. . . Nós caminhamos para a beirada, E vejo você lá em baixo sangrando.
Meu coração está batendo fortemente em meu peito.
Estou olhando minhas mãos pois não as sinto.
Estou frio.
Estou a cada vez mais vazio.
Então só eu sei o quanto isso me deixa em pedaço.
E tenho três “m” no peito
Não julgue ninguém.
Pois você terá o mesmo final.
Preciso de alguém.
Pois esse é meu final.
Floresci vendo as rosas me deixarem.
Floresci e vi minhas luzes se apagarem.
Tenho três “m” no peito. Amo, amor morto.
E só eu sei o quanto isso me deixa em pedaços.
Conclusão
Este trabalho percorreu um caminho: o do início dos cortes, a sua continuidade e as saídas possíveis. Os cortes têm seu início, em geral, marcado por situações de difícil elaboração, somadas ao complexo processo do adolescer, em que o Outro é posto em questão e o sujeito se vê sem bússola para encarar determinados conflitos, desembocando em construções sintomáticas que colocam o corpo no seu limite. O corpo passa a estar no centro, no palco; nele, o ato reatualiza cenas traumáticas, colocando o sujeito no seu limite, na tentativa de uma inscrição. Na repetição e insistência do ato, impõe-se a tentativa de apreender o que se coloca como enigma, que parece funcionar como uma escrita no/do corpo.
A escrita, por meio das postagens nos grupos do Facebook, e o conteúdo neles postado chamaram a atenção para a importância desse espaço digital para adolescentes que nele deixam seus relatos. Nesse sentido, a despeito das implicações subjetivas, por vezes dos prejuízos que o uso das redes sociais acarreta, o estudo mostrou que os grupos podem assumir funções importantes para algumas adolescentes: espaço de partilha, de identificação com os pares, de acolhimento para o sofrimento; possibilidade da construção de laços, via ato, que agrega adolescentes em torno de uma prática em comum; espaço possível de endereçamento.
Estudos como este e seus desdobramentos em futuras pesquisas fazem avançar a clínica com adolescentes, ao propor que, embora haja algo que esbarra e torna-se inassimilável no campo do sentido, o sem sentido emerge, por vezes, como algo passível de produzir invenções. Diante do gozo não significantizável que advém do real, o sujeito alcança o auge de sua transformação, numa criação que, embora atravessada pelo coletivo, é única e singular. Contudo, é importante mencionar também que novas discussões não pretendem esgotar as interrogações e muito menos criar fórmulas de atuação, mas pretendemos levantar pontos que nos façam refletir e, principalmente, que nos coloquem no lugar daquele que se propõe a escutar e nunca banalizar o ato, promovendo um espaço para a palavra.
De certo modo, a forma como algumas adolescentes recorrem à escrita, à música, à arte, às produções, põe-nos a pensar sobre a possibilidade de circunscrever o ato por outra dimensão que marque o corpo de forma diferente, utilizando-o enquanto instrumento de produção, a despeito do caráter destrutivo das autolesões. Ou, ainda, abrindo espaço, na insistência do gozo que retorna no corpo, para escritas possíveis.
Referências
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Recebido em: 10/05/2024
Última revisão: 12/09/2024
Aceite final: 16/09/2024
Sobre os autores:
Marina Diniz Luna do Nascimento [autora para contato]: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia – Salvador, BA. Doutoranda em Psicologia pela linha de pesquisa de contextos de desenvolvimento, clínica e saúde na Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista de doutorado CAPES, pesquisadora colaboradora do Grupo de Trabalho (GT): Psicanálise, Política e Clínica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Psicanalista. E-mail: marinaluna.psi@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7825-5175
Edilene Freire de Queiroz: Pós-doutorado na Université de Aux-Marseille I. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora Associada da Université Catholique de l’Ouest – Angers. Membro-fundadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Lider do Grupo de Pesquisa do CNPq: Psicanálise e interlocuções: Clínica, Política e Cultura. Desenvolve pesquisas na área de Psicologia Clínica e Psicanálise, com ênfase em tratamento e prevenção, investigando principalmente sobre psicopatologia e sobre a clínica da adoção e filiação. Professora titular e membro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e do Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise. Psicanalista. E-mail: edilenefreiredequeiroz@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9782-3254
Paula Cristina Monteiro Barros: Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), em cotutela com a Université Paris Diderot – Paris 7. Professora da Graduação em Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia Clínica na UNICAP. Membro do Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da UNICAP e do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Juventudes. Psicanalista. E-mail: paula.barros@unicap.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0548-692X
1 Todos os trechos das postagens das adolescentes foram preservados no modo como estavam publicados, não tendo sido feitas alterações ou correções gramaticais.
doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v1i1.2187
Dossiê: Psicanálise e Saúde